O oceano não é infinito, alerta a oceanógrafa Sylvia Earle
Referência em oceanografia, Sylvia Earle denuncia a degradação dos oceanos causada pelas petroleiras, pela poluição e pela pesca predatória. Para conhecermos melhor os mares, propõe uma nova era de exploração oceânica, estratégica na geopolítica atual, em que territórios submarinos já são objeto de disputa.
A reportagem é de Cláudio Angelo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 17-10-2011.
É provável que você nunca tenha ouvido falar de proclorococos. E é quase certo que morrerá sem ter visto um. Por uma boa razão: essas criaturas marinhas medem um milésimo do diâmetro de um fio de cabelo, e sua existência era desconhecida até 1986. Essas microalgas de nome complicado estão presentes no seu cotidiano de modo simples, insuspeito – e crucial. “Eles produzem o oxigênio de uma em cada cinco lufadas de ar que você respira”, explica a oceanógrafa Sylvia Earle.
Apesar de serem tão essenciais, os proclorococos e outras centenas de milhares de espécies que habitam os oceanos não têm lobby organizado, nem direito de greve, nem representação parlamentar.
E têm aguentado calados todo tipo de ofensa imposta pela humanidade, da sobrepesca à acidificação dos mares pelas emissões de gás carbônico. Do lixo que transformou uma área do Pacífico do tamanho dos EUA num sopão de plástico aos megavazamentos de petróleo como o da plataforma Deepwater Horizon, que explodiu em 2010 no golfo do México.
Para sua sorte, o mar e seus habitantes têm na americana Sylvia Earle, 75, sua principal porta-voz.
Vida anfíbia
Conhecida em seu país como “Her Deepness” (ou “Sua Profundeza”, um trocadilho com “Her Highness”, “Sua Alteza”), Earle acumula quase seis décadas de vida anfíbia.
Foi a primeira mulher a comandar um grupo de “aquanautas” que viveu durante duas semanas num módulo da Nasa a 15 metros de profundidade e primeiro ser humano a mergulhar a 380 metros usando apenas um traje especial. Já passou mais de 6.000 horas debaixo d’água, em lugares que vão do luminoso e multicolorido Caribe a abismos oceânicos em permanente escuridão. É da estirpe de cientistas como Jacques Cousteau (1910-97), que levaram o mar até a casa das pessoas décadas antes dos programas de tubarão da TV a cabo e do Google Earth.
Foi graças a uma invenção de Cousteau – o aqualung, equipamento para mergulho autônomo – que Sylvia Alice Earle descobriu as profundezas, em 1953. Na época, elas não eram lá muito profundas: seu primeiro mergulho, como estudante de biologia da Universidade da Flórida, não passou de cinco metros. As instruções para usar o equipamento se resumiam a duas palavras: “Respire naturalmente”. “Mas isso bastou para ter a oportunidade de ficar lá, sentir a ausência de peso”, conta ela. “Quando você está mergulhando de snorkel, seu tempo é muito limitado. Ter a chance de ficar e fazer contato com outras criaturas foi uma dádiva.”
Drama
O drama de Earle e seus colegas exploradores é constatar que seus melhores mergulhos foram os primeiros. “Sou testemunha de o quanto o mundo mudou, por isso não posso ficar calada, nem ser complacente”, disse à Folha, diante de uma xícara de café frio num hotel de Porto Alegre.
“Her Deepness” passou pelo Brasil em setembro, para participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, na capital gaúcha. O tema da palestra foi a transformação do mar pelos seres humanos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, que ela relata em seu último livro, “The World is Blue – How Our Fate and the Ocean’s Are One” [o mundo é azul – como o nosso destino e o do oceano são um só, Random House, 320 págs., R$ 38,80], lançado nos EUA em 2010 e ainda sem tradução para o português.
Segundo Earle, para a humanidade o mar é “tão vasto e resistente que simplesmente não importava o que nós tirássemos dele ou despejássemos nele”. No pós-Guerra, porém, o avanço das tecnologias de exploração permitiu descobertas como a dos procolorococos, apenas um pequeno vislumbre da importância dos oceanos para a manutenção da vida na Terra.
No mesmo período, a ação humana causou mais dano aos mares do que em toda a história até então. “E a velocidade está aumentando”, alerta a pesquisadora.
Ela enumera um mar de tragédias: 95% das populações de espécies como o bacalhau e o atum-azul já foram eliminadas; metade dos corais de águas rasas está em declínio desde os anos 1950; mais de 400 “zonas mortas”, regiões asfixiadas por poluentes à base de nitrogênio vindos da terra firme, já se formaram em áreas costeiras no mundo todo; o excesso de gás carbônico produzido pela queima de combustíveis fósseis e absorvido pelos oceanos vem mudando a química marinha em escala global, tornando a água mais ácida e prejudicando a vida de corais, moluscos e microrganismos que formam carapaças de calcário -ironicamente, os principais responsáveis por sequestrar e fixar esse mesmo gás carbônico. Há 15 anos, a acidificação dos oceanos não havia sido sequer prevista.
Ameaça dupla
Os combustíveis fósseis são uma ameaça dupla. Não só pelos efeitos indiretos, ou seja, o aquecimento global, mas também porque as grandes bacias sedimentares oceânicas (como as de Santos e de Campos, na costa brasileira) são a nova fronteira de exploração. E vazamentos como o ocorrido nos EUA em 2010, que espalhou 5 milhões de barris no mar do golfo do México, são “inevitáveis”, nas palavras de Earle.
“Tenho profunda admiração e respeito pelos feitos de engenharia das petroleiras. Fundei três companhias de desenvolvimento de equipamentos para explorar o oceano, então tenho noção do quão extraordinário é conseguir fazer o que eles fazem”, diz. “Não só acessar águas profundas a 2.500, 3.000, acho que a Shell está furando a 4.000 metros. Isso é só o começo, depois eles furam de 2 a 4 km abaixo do leito oceânico. Mas não sabemos as consequências. Estamos furando no escuro.”
Para ela, antes de iniciar a produção, países e empresas deveriam conhecer o fundo do mar. “À medida que a exploração parece inevitável, pelo menos no curto prazo, primeiro deem uma olhada”, diz. “Vão lá embaixo e procurem entender como a região era antes. Não dá para fazer uma operação nessa escala sem impacto.”
Abrolhos
Ela já tem por onde começar esse programa de exploração: Abrolhos, no litoral da Bahia. O governo recentemente derrubou uma liminar judicial que impedia a concessão de blocos de petróleo no entorno do parque marinho que abriga o maior banco de corais do Atlântico Sul.
“Seria maravilhoso que o Brasil tomasse a dianteira nesse processo”, diz. E como o país faria isso? “O Brasil poderia dar o tom ao explorar de verdade as áreas onde se está propondo perfurar, e deixar que o público saiba o que existe lá, e explorar primeiro.”
Sylvia Earle sublinha que “não se trata de dizer não à exploração de petróleo, mas que, “depois que você souber o que existe lá, você pode escolher não perfurar, porque o custo-benefício pode não ser sensato. Neste momento, nas águas profundas do Brasil, o que existe ainda é um mistério. Além de óleo e gás, o que mais existe ali que possa ser considerado, ou de um valor mais alto do que o que queremos extrair?”, especula.
“Em Abrolhos, já sabemos que a diversidade dos corais é tão especial que, pelo menos até agora, foi dada proteção a esses recifes. Por boas razões. Não sabemos como repor essas coisas depois que elas são eliminadas.”
Corrida submarina
A tecnologia para um programa ambicioso e global de exploração oceânica já existe, e está cada vez mais sofisticada. Um de seus principais marcos é uma esfera de titânio gigante que hoje repousa num gramado à beira-mar no Whoi (Instituto Oceanográfico de Woods Hole), nos EUA, e vira e mexe serve de banheiro às gaivotas, para desespero do engenheiro Bruce Strickroot, antigo parceiro de Earle.
A esfera é a antiga cápsula tripulada do submergível Alvin, equipamento do governo americano que desde 1964 explora os abismos oceânicos. Strickroot, seu piloto, gosta de dizer que o Alvin é mais longevo do que todos os programas espaciais. A um custo anual de apenas US$ 2 milhões, rendeu muito mais ciência por dólar investido do que a exploração espacial.
O submarino participou das descobertas dos vestígios do Titanic e das fossas hidrotermais, vulcões ocultos a 3 km de profundidade ao redor dos quais habitam criaturas que, por serem tão distintas de qualquer outra forma de vida, alimentaram nos cientistas especulações sobre vida em outras regiões do Sistema Solar. “As pessoas me perguntam qual é a criatura mais extrema que eu já encontrei lá embaixo”, conta Strickroot. “Sempre respondo: nós.”
Golfinhos captam a presença do submarino e tentam se “comunicar” com ele, afinando seus sonares na frequência dos instrumentos da engenhoca.
“Eles ferram completamente a nossa navegação com essa brincadeirinha”, ri o piloto. “Às vezes somos rodeados por 200 deles, e você percebe claramente que eles estão se divertindo” -às custas dos humanos. O Alvin está sendo completamente refeito no estaleiro do Whoi. A nova cápsula, que segundo Strickroot provavelmente é “a esfera mais perfeita já fabricada pelo homem”, tornará o submarino capaz de descer a 4.500 metros já em 2012, e, no futuro, a 6.000 metros – profundidade à qual só meia dúzia de veículos atinge hoje.
Geopolítica
Uma dessas naves, a russa Mir, recentemente deixou cabelos em pé na geopolítica mundial ao levar seres humanos pela primeira vez ao fundo do mar sob o polo Norte, em 2007, e plantar no leito oceânico uma bandeira russa. O degelo do Ártico, decorrência do aquecimento global, tem levado os países da região a uma corrida por recursos minerais. A Rússia reivindica o polo como sua zona econômica exclusiva.
Sylvia Earle conta que soube do feito quase em tempo real, pelo piloto da Mir, Anatóli Sagalevitch. “Eles estavam comemorando no convés e me ligaram: ‘Sylvia, sentimos sua falta! Fizemos uma descoberta incrível para a ciência. Mas foi nossa descoberta… ua-ha-ha'” (imita uma risada malévola).
O Alvin reformado integra uma nova geração de submarinos tripulados capazes de descer a grandes profundidades. Dois outros veículos privados, em fase final de construção, se preparam para descer até a fossa das Marianas, o ponto mais profundo do oceano, no Pacífico, a 11 km da linha d’água.
Um deles está sendo projetado pela Virgin, empresa do bilionário britânico Richard Branson. Outro, do cineasta canadense James “Avatar” Cameron, teve consultoria de Earle, entre outros cientistas. Na prancheta, à espera de financiamento, está um terceiro submarino, cuja cápsula deve ser de vidro. Foi projetado pela empresa Deep Ocean Exploration and Research, fundada por Earle. “Este será o primeiro veículo a ir até lá embaixo e ficar, parar e explorar”, explica Her Deepness. “O veículo de Branson não é capaz de parar, é feito um avião. Isso é ótimo, dá para cobrir uma área grande, é emocionante. E deveríamos fazer isso. Mas precisamos explorar em minúcias.”
Opinião pública
A exploração, porém, parece estar em baixa na mente de uma opinião pública saturada de documentários no Discovery Channel e de cientistas mais interessados em desvendar o DNA dos organismos que já conhecemos do que em encontrar novos. Exploradores como Earle são uma espécie tão ameaçada quanto as que ela quer salvar.
Segundo Strickroot, tem caído o número de submissões de propostas de pesquisa que usam o Alvin (qualquer cientista nos EUA pode disputar horas de uso do veículo). “Temos ótimos usuários, mas o público geral tem perdido o interesse”, conta. Como nos EUA o que não interessa ao público não recebe verbas do Congresso, teme-se que a exploração marinha seja atingida pelos cortes orçamentários que fizeram minguar os programas espaciais tripulados.
“Nas últimas décadas houve um movimento de afastamento da presença humana dos céus e também do oceano. Mas o fato é que não há substituto para a presença humana, seja na Lua, seja nas profundezas do mar”, afirma Earle. “Apenas 5% do oceano já foi visto, que dirá explorado.”
Pesca
Sylvia Earle também prega contra outro tipo de exploração econômica: a pesca. O consumo “desnecessário” de frutos do mar, diz, causa rupturas em ecossistemas inteiros e na química do oceano (que depende da estabilidade de cadeias alimentares que vão do plâncton às baleias).
Consumo desnecessário? “Oitenta por cento das calorias que alimentam o mundo vêm do milho, do arroz e do trigo. Em termos de proteína, a soja tem aumentado muito em volume. Quanto ao peixe, é preciso pensar seletivamente: quem obtém essas proteínas? O mercado de luxo de atum, de lagosta, de salmão, de camarão. Vão para as cidades, não para alimentar gente faminta.”
Quer dizer que não precisamos comer peixe? “Não. É sério. E, até meados do século 20, não comíamos. Já os peixes de rio, criados em cativeiro, têm sido comidos na China por mais de mil anos. Peixes herbívoros.
Bagres. A Amazônia seria uma excelente biblioteca se quiséssemos achar alvos para a aquicultura, sistemas fechados como aquários. Não vejo futuro na aquicultura de mar aberto: há muito risco de introdução de espécies invasoras. A tendência hoje não é criar herbívoros, mas carnívoros, o que não faz o menor sentido.”
Ela compara a criação de peixes como o salmão e o atum a uma bolha financeira, cuja alavancagem é mantida pela ilusão de infinitude do ecossistema oceânico.
“Não dá para alimentar nem mesmo 1 bilhão de pessoas com atum ou peixe-espada, criaturas que precisam de 25 toneladas de carne para produzir uma tonelada. Não são peixes que crescem em um ano; um atum-azul leva 14 anos para amadurecer. E alguns desses peixes de águas profundas, como a merluza negra, são décadas. É uma insanidade.”
Preço
Earle afirma que não estamos pagando o preço real desse consumo: “É preciso calcular quantas plantas fazem um peixe que alimenta o salmão. Quando você fala com um criador de salmão, ele diz: ‘Ah, é cinco ou seis para um’.” Para ela, a conta não fecha: “Se você pegar um empréstimo cinco ou seis vezes maior do que o seu lucro, vai à falência.”
Her Deepness diz que não come peixe nem frutos do mar há anos. “Comia, mas hoje sei que não posso. Precisamos nos reconciliar com a realidade de que as nossas vidas dependem da natureza, dos sistemas naturais. Há uma quantidade limitada de ambientes naturais que podemos converter aos nossos propósitos de curto prazo, sejam eles óleo e gás ou florestas para plantar soja ou dendê.” Para ela, estamos começando a entender que não sabemos repor essas coisas: “Você não pode construir um atum depois que ele se acabou. Noventa por cento dos atuns-azuis estão extintos. Se eles se extinguirem, como você os trará de volta? Você perguntou sobre alimentar pessoas com proteínas do mar. Achávamos que o mar era a resposta, mas não é”.
A entrevista é interrompida por um assessor gaúcho tão polido quanto desalmado. Sem terminar o café, Earle se levanta e conta que está animada para voltar ao Brasil no ano que vem, para a conferência ambiental Rio +20. Quer mergulhar em Abrolhos. Enquanto se afasta, promete retomar a conversa em 2012. “Debaixo d’água. Debaixo d’água.”
(Ecodebate, 19/10/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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