As condições de trabalho nos canteiros de obras das hidrelétricas. Entrevista José Guilherme Zagallo
Apesar de terem recebido mais de mil autuações do Ministério Público do Trabalho por causa do descumprimento des leis trabalhistas, as obras da construção das hidrelétricas do Complexo do Rio Madeira não foram interditadas. O descumprimento da legislação trabalhista é recorrente nos canteiros de obras que chegaram a concentrar 20 mil trabalhadores no auge da construção.
De acordo com José Guilherme Zagallo, advogado e relator da Plataforma Dhesca, os trabalhadores reclamam das precárias condições de trabalho, do tratamento diferenciado entre os funcionários e da infraestrutura dos alojamentos. “Disseram que existe uma espécie de incentivo a um cartão fidelidade para aqueles trabalhadores que não faltam ao trabalho, não adoecem, não folgam. Eles recebem um pagamento adicional. Ficamos preocupados porque ações como essas podem estimular os trabalhadores a omitirem doenças e a trabalharem sem condições para não ter redução de renda”, assinala Zagallo na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
A população que vive no entorno das obras do Complexo do Rio Madeira, Santo Antonio e Jirau, também está sendo afetada pela construção das hidrelétricas. “Eles dizem que a renda piorou com o início das obras em função da diminuição do pescado e também porque a área agrícola para a qual eles foram remanejados é inferior a que possuíam. Eles foram removidos para um grande conjunto habitacional distante da beira do rio”, conta.
Na avaliação de Zagallo, o descumprimento da legislação trabalhista ocorre porque os consórcios responsáveis pela construção das obras querem antecipar o funcionamento das hidrelétricas. Ele explica: “Se o consórcio antecipar a conclusão das obras, a energia que é gerada nessa antecipação pertence ao dono do empreendimento e ele pode vendê-la ao mercado livre, ampliando a rentabilidade do seu investimento”.
José Guilherme Zagallo é conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é a Plataforma Dhesca? Que atores sociais participam desta organização e como ela tem acompanhado os trabalhadores das Usinas do Rio Madeira?
José Guilherme Zagallo – A Plataforma Dhesca é uma iniciativa da sociedade civil, mais especificamente do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, inspirada na experiência das relatorias de direitos humanos da ONU. Os relatores são voluntários, escolhidos para mandatos de dois anos, em um conselho de seleção que tem entidades da sociedade civil, mas também participam pessoas de agências multilaterais com sede no Brasil, como as agências da ONU, do próprio Ministério Público Federal, da comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Senado.
A Plataforma Dhesca realiza missões de monitoramento. O projeto começou em 2001 e hoje está na quinta geração de relatores, a qual termina no final do ano. A partir de denúncias apresentadas pela sociedade civil, realizamos missões de monitoramento sobre eventuais violações: já foram realizadas mais de 100 missões. Especificamente em relação ao tema das hidrelétricas, realizamos, em 2007-2008, uma missão de monitoramento no Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, quando foi concedida a licença ambiental.
Atuamos novamente na questão das hidrelétricas em 2010, quando saiu a concessão da licença ambiental de Belo Monte, e, este ano, após a revolta de Jirau.
IHU On-Line – Em relação ao meio ambiente, quais são as principais denúncias feitas pela sociedade civil?
José Guilherme Zagallo – Normalmente as missões acontecem após os incidentes ambientais. Mas também realizamos missões preventivas, como ocorreu em 2005, no Maranhão, contra uma iniciativa de construir três grandes usinas siderúrgicas na ilha de São Luis. A Plataforma fez uma missão de monitoramento e constatou que haveria uma lesão muito grande para as pessoas e para o meio ambiente, culminando pela não construção destas usinas.
Já acompanhamos conflitos ambientais em Pernambuco, em função da plantação de cana-de-açúcar. Acabamos de lançar um relatório sobre a extração de urânio em Caitité, na Bahia, que tem contaminado os lençóis freáticos.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho em uma usina hidrelétrica? Qual a situação dos trabalhadores das usinas do Rio Madeira, Jirau e Santo Antônio? Em que contexto eles trabalham e quais são as condições de trabalho?
José Guilherme Zagallo – Normalmente as usinas hidrelétricas são obras de grande porte, sobretudo essas que estão sendo construídas, porque tentam barrar rios que têm um volume de água muito elevado, como é o caso do Xingu, que chega a ter, em época de cheia, mais de 24 mil m³ de água por segundo.
A obra de Belo Monte, se concretizada, prevê a presença de 20 mil trabalhadores. Jirau e Santo Antônio tinham, respectivamente, 19 mil e 21 mil trabalhadores no pico da obra. Quando a obra é finalizada, há um decréscimo em relação a este número. As condições de trabalho, no caso específico de Jirau e Santo Antônio, são muito ruins. Cada uma das obras já foi autuada mil vezes pelo Ministério Público do Trabalho em função do descumprimento de normas de segurança e saúde do trabalho.
Ambas as hidrelétricas respondem ações do Ministério Público pelo descumprimento destas normas, sobretudo no que diz respeito ao intervalo de repouso entre as jornadas de trabalho e repouso semanal. As pessoas trabalhavam direto, sem obedecer aos limites da legislação de pelo menos 11 horas entre uma jornada e outra. Sete trabalhadores já morreram nessas obras.
IHU On-Line – Os trabalhadores têm acesso a alojamentos, condições de moradia?
José Guilherme Zagallo – Sim. No caso da obra de Santo Antônio, muitos trabalhadores residem em Porto Velho, porque a obra é próxima da cidade. No caso de Jirau, eles estão a 100 km de Porto Velho. Então, a maioria dos trabalhadores reside em alojamentos.
Esses alojamentos, até a greve de 2010, comportavam oito pessoas e não tinham refrigeração, portanto, as condições eram precárias. Após a greve realizada em 2010, foram instalados ar- condicionados; houve alguma melhoria na condição da infraestrutura física.
Os trabalhadores reclamam de tratamento diferenciado entre os funcionários: aqueles que eram contratados em outros estados, diretamente pela empresa, tinham, por exemplo, a cada noventa dias, uma folga maior, que os possibilitava visitar os familiares. Aqueles que eram contratados por terceirizados, eram considerados como se fossem originários da região e, portanto, não tinham o direito a esta folga prolongada. Esta diferença de tratamento entre os trabalhadores foi um dos motivos da revolta de Jirau.
IHU On-Line – Quem são esses trabalhadores? Eles têm experiência na área de construção civil? Eles têm consciência das péssimas condições de trabalho?
José Guilherme Zagallo – Eles têm consciência, mas dada a demanda de mão de obra, as empresas admitem pessoas sem experiência, o que é um fator de risco, porque eles não são suficientemente treinados para o trabalho que desenvolvem.
IHU On-Line – Existe assistência médica nos canteiros de obras?
José Guilherme Zagallo – Existe um atendimento emergencial nos acampamentos. O problema maior é que, como existe uma concentração muito grande de pessoas, os acampamentos comportam muitos trabalhadores. Oito trabalhadores por quarto, como acontece nos alojamentos de Jirau e Santo Antônio, facilita a proliferação de viroses.
IHU On-Line – Existe alguma legislação específica para este tipo de trabalho?
José Guilherme Zagallo – Existem as normas regulamentárias do Ministério do Trabalho, mas são genéricas. A mesma regra que vale para a construção de um prédio de um cinco andares, vale para a construção de uma hidrelétrica e seus 20 mil trabalhadores.
IHU On-Line – O senhor tem contato com os trabalhadores das usinas? O que eles dizem? Quais são, em sua avaliação, as maiores dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores de usinas?
José Guilherme Zagallo – Quando estivemos em Porto Velho, entrevistamos trabalhadores que participam de sindicatos. Eles fizeram relatos que consideramos preocupantes: disseram que existe uma espécie de incentivo a um cartão fidelidade para aqueles trabalhadores que não faltam ao trabalho, não adoecem, não folgam. Eles recebem um pagamento adicional. Ficamos preocupados porque isto pode estimular os trabalhadores a omitirem doenças e a trabalharem sem condições para não ter redução de renda. Essa situação está sendo investigada pelo Ministério Público.
IHU On-Line – Quais são as principais violações das leis trabalhistas nos canteiros de obras das hidrelétricas?
José Guilherme Zagallo – A comunidade da região alega problemas nas compensações, nas indenizações das pessoas que foram removidas. Quase todos os ribeirinhos foram afetados. Eles dizem que a renda piorou com o início das obras em função da diminuição do pescado e também porque a área agrícola para a qual foram remanejados é inferior a que possuíam. Eles foram removidos para um grande conjunto habitacional distante da beira do rio. Imagina um pescador que tem que carregar suas tralhas para a beira do rio para exercer o seu ofício; isso influencia na condição de sua vida.
No processo de construção das hidrelétricas, foi subdimensionado a migração populacional. A população atual de Porto Velho é 22% acima do que havia sido previsto no estudo de impacto ambiental. De um modo geral, os serviços públicos não estão preparados para enfrentar a demanda. Em abril, quando estivemos na região, encontramos aproximadamente 195 crianças fora da escola. Esse número já deve ter aumentado. Provavelmente essas crianças perderam o ano de estudo, o que é inadmissível.
IHU On-Line – Algumas notícias mencionam que houve trabalho escravo nos canteiros de obras das hidrelétricas. O senhor tem conhecimento de casos como esses?
José Guilherme Zagallo – Houve uma fiscalização por parte do Ministério do Trabalho, que encontrou um contingente de trabalhadores em condições análogas a de escravo em uma das obras. Houve autuação e foi feito um acordo para o pagamento das verbas rescisórias. O contingente de trabalhadores localizados foi pequeno, mas é preocupante na medida em que o governo considera as obras do Rio Madeira como exemplos de realização de empreendimentos sustentáveis. Entretanto, empreendimento sustentável não pode ter sequer um trabalhador em condição análoga à de escravo.
IHU On-Line – O que dificulta o cumprimento das leis trabalhistas em obras de usinas hidrelétricas, por exemplo?
José Guilherme Zagallo – As obras receberam mil autuações e, portanto, deveriam ter sofrido um processo de interdição. Então, ao mesmo tempo em que se identifica o exercício da fiscalização estatal, percebe-se que essa fiscalização está sendo insuficiente, porque a legislação é violada. O Estado brasileiro precisa se preparar para lidar com grandes empreendimentos.
IHU On-Line – Quais foram os desdobramentos da revolta dos trabalhadores de Jirau?
José Guilherme Zagallo – Depois da revolta, os trabalhadores conseguiram antecipar uma negociação: conseguiram receber um reajuste salarial acima da inflação e, sobretudo, tiveram uma uniformidade no tratamento em relação às folgas. Houve um compromisso de que haveria um tratamento mais justo, menos invasivo e agressivo por parte da empresa.
O Estado participou dessas negociações: aconteceram reuniões no gabinete da Casa Civil, com a participação das centrais sindicais. De modo geral, as condições de trabalho tiveram uma melhora. Infelizmente, mesmo depois da revolta, um trabalhador morreu em função de um acidente de trabalho na construção da hidrelétrica do Rio Madeira. Isso mostra que ainda não existem condições ideais para a construção das hidrelétricas.
IHU On-Line – Como o consórcio formado pela transnacional francesa Suez, pela Camargo Corrêa e pela Eletrosul reagiram diante das manifestações de protesto dos trabalhadores de Jirau, no início do ano?
José Guilherme Zagallo – Primeiro, eles tentaram desqualificar os protestos, disseram que eram atos de vândalos, de trabalhadores infiltrados, com conotações de pessoas interessadas em realizar furtos nos caixas eletrônicos. Isso tudo está sob investigação. Mas o fato objetivo é que esta foi a segunda revolta dos trabalhadores. Eles já haviam se manifestado em 2010, na hidrelétrica de Santo Antônio, em função do elevado índice de autuações.
O descumprimento da legislação mostra que, diferentemente do que foi divulgado pelos consórcios, as condições de trabalho nas obras de Jirau e Santo Antônio eram muito precárias. Tem algo de errado em uma obra que é autuada mil vezes.
No caso específico de Santo Antônio e Jirau, as duas obras foram antecipadas porque, no modelo atual, se o consórcio antecipar a conclusão das obras, a energia que é gerada nessa antecipação pertence ao dono do empreendimento e ele pode vendê-la ao mercado livre, ampliando a rentabilidade do seu investimento. Se a antecipação da obra fosse feita com condições de saúde e segurança para os trabalhadores, não haveria problema nenhum, pois seria fruto da eficiência e da maior produtividade do empreendedor. No entanto, quando a obra é finalizada com antecedência, desconsiderando a saúde do trabalhador, traz a suspeita de que parte dessa antecipação se deu à custa de condições de saúde e segurança inferiores ao mínimo legal.
IHU On-Line – Quais são as suas preocupações em relação à construção de Belo Monte?
José Guilherme Zagallo – A grande preocupação dos movimentos nacionais de direitos humanos é que o que aconteceu em Jirau e Santo Antônio se repita, em uma escala ampliada e piorada, em Belo Monte. Se a violação de direitos aconteceu com tanta intensidade em uma cidade que fica a 150 km de Porto Velho, capital de Rondônia, o que acontecerá em Altamira, que fica a 1000 km de Belém? Altamira é uma cidade que tem condições precárias e deve dobrar de tamanho em função das obras. O estudo de impacto ambiental de Belo Monte indica que, dos 100 mil habitantes atuais, Altamira deve duplicar a sua população, receber outros 100 mil habitantes.
Já se fala em construção de hidrelétricas no Rio Tapajós próximo a Santarém. É realmente muito preocupante essa intenção do governo de ampliar a oferta de energia elétrica, exclusiva ou prioritariamente pela construção de grandes hidrelétricas. O último leilão de energia mostrou que a energia eólica, em nosso país, já é competitiva. Então, o governo tem condições de investir em energias alternativas.
(Ecodebate, 15/09/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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