A luta pela reavaliação de agrotóxicos no Brasil. Entrevista com Letícia Rodrigues da Silva, Anvisa
Segundo Letícia Rodrigues da Silva, gerente de normatização e avaliação da Anvisa, a instituição colocou 14 ingredientes ativos em reavaliação em 2008. Três anos depois, apenas seis reavaliações foram concluídas, sendo que cinco, com ações judiciais.
A reavaliação de agrotóxicos no Brasil ainda faz parte de um processo lentoe frágil. Produtos que receberam a certificação de uso da Anvisa, Ibama e do Ministério da Agricultura somente são reavaliados novamente quando estudos internacionais apontam para riscos à saúde humana. Segundo Letícia, um dos motivos que dificulta este procedimento é a inexistência de investimento para linhas de pesquisa sobre o tema.
“As pessoas que trabalham nos órgãos governamentais têm feito o possível e o impossível para avaliar, regular e controlar esses produtos. Entretanto, temos várias fragilidades”, desabafa, em entrevista à IHU On-Line concedida por telefone. Entre as dificuldades, ela aponta o quadro deficitário de funcionários responsáveis pelo procedimento de avaliação e reavaliação dos agrotóxicos. “Nos EUA, que é o segundo maior mercado de agrotóxicos do mundo, as agências de proteção ambiental têm 800 funcionários para avaliar produtos agrotóxicos. No Brasil, por outro lado, se reunirmos todos os técnicos do Ibama, do Ministério da Agricultura e da Anvisa, não somamos o total de 80 técnicos”.
Letícia Rodrigues da Silva é especialista em Regulação e Vigilância Sanitária, gerente de normatização e avaliação da Anvisa e responsável pelas reavaliações toxicológicas dos agrotóxicos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como e por que a indústria de agrotóxicos se proliferou no Brasil?
Letícia Rodrigues da Silva – O uso de agrotóxicos no mundo começou com a Revolução Verde ocorrida na década de 1970 e, no Brasil, por volta de 1975. Nesta época foi desenvolvido o Plano Nacional de Defensivos Agrícolas, que incentiva o uso de agrotóxicos e, inclusive, disponibilizava créditos para produtores rurais que quisessem utilizar esta tecnologia. Indústrias também receberam incentivos para se instalarem no Brasil. A partir disso, se fortaleceu e se disseminou o uso de agrotóxicos no país. Nos anos 1990, houve um movimento mundial de reestruturação dessas empresas e, no final dos anos 2000, aconteceram muitas fusões e incorporações em função do esgotamento da matriz petroquímica. Desde então, muitas dessas empresas químicas começaram a atuar no ramo de sementes transgênicas e aí teve a consolidação de outro tipo de mercado: as empresas que eram grandes ficaram ainda maiores ao adquirirem empresas pequenas. Por volta de 2007 em diante, passou a se ter a entrada de empresas chinesas no mercado de agrotóxicos. Essas indústrias têm fábricas na China e trazem grande parte de seus produtos de lá em função da redução do custo de mão de obra e dos custos de produção desses produtos.
Atualmente, seis empresas são responsáveis por 65% do mercado brasileiro e, treze empresas são responsáveis por 90% do mercado nacional. Isso se repete no âmbito mundial, onde o mercado é ainda mais concentrado: seis empresas são responsáveis por 70% do mercado.
IHU On-Line – Quais são os critérios adotados no Brasil para registrar agrotóxicos? E qual a participação do setor de saúde pública neste processo?
Letícia Rodrigues da Silva – O registro de agrotóxicos é um ato compartilhado entre Ministério da Agricultura, Anvisa e Ibama. O Ministério da Agricultura faz a avaliação de eficácia agronômica dos produtos agrotóxicos; o Ibama faz a avaliação do impacto ambiental desses produtos; e a Anvisa analisa o impacto desses produtos à saúde humana. São exigidos estudos para todas essas avaliações e, na Anvisa, são exigidos estudos feitos com animais de experimentação para verificar que efeitos esses produtos podem causar à saúde humana. Quando os três órgãos dizem que o produto tem condições aceitáveis, respectivamente em suas áreas de competência, para saúde, para o ambiente e eficácia agronômica, é concedido o registro. Se um dos três órgãos manifesta posição contrária, o produto não pode ser registrado no país.
A lei 7802, de 1989, estabelece alguns requisitos e determina que são proibidos registros de agrotóxicos que tenham características mutagênicas, teratogênicas, carcinogênicas e que causem efeitos hormonais, danos ao aparelho reprodutor etc. Quer dizer, a lei determina alguns critérios para proibir o registro de substâncias inadequadas. Entretanto, os estudos dos efeitos de agrotóxicos são feitos em condições ideais de uso, de temperatura, clima e, quando esse produto passa a ser utilizado no campo, pode apresentar efeitos diferentes: às vezes se mostra ser mais tóxico, tem efeitos que não aparecem nos animais de experimentação, mas aparecem nos seres humanos posteriormente ao uso. Então, há uma limitação científica neste processo. Por mais que se busquem situações realistas de uso, outros fatores podem interferir na exposição de agrotóxicos.
IHU On-Line – Como e com que frequência são feitas as reavaliações toxicológicas dos agrotóxicos no Brasil? Como avalia o processo de reavaliação dos agrotóxicos no país? Ele ainda é dependente de pesquisas internacionais?
Letícia Rodrigues da Silva – As reavaliações toxicológicas são feitas sempre que há detecção de estudos que apontam para riscos à saúde, quer dizer, quando outros países começam a efetuar proibições, restrições e quando organizações internacionais alertam para riscos. Ainda existe um número pequeno de pesquisas sobre produtos agrotóxicos feitas no Brasil, especialmente estudos epidemiológicos, de exposição com trabalhadores. Inexistem linhas de financiamento de pesquisa para isso e, quando se faz pesquisa, encontram-se efeitos relacionados ao uso de agrotóxicos, a ingredientes ativos específicos ou a vários tipos de produtos ou grupos químicos diferentes e efeitos graves à saúde humana. Várias pesquisas estão sendo desenvolvidas no sentido de apontar efeitos de depressão, de transtornos psiquiátricos, dentre outros, em populações expostas a agrotóxicos. Ao fazer a reavaliação de um produto, utilizamos todas as pesquisas feitas em relação a ele. Nesse sentido, a reavaliação é uma salvaguarda. Por outro lado, ela também joga para o órgão público a responsabilidade de juntar os dados dos danos que esses produtos estão causando. Esse processo inverte o princípio da precaução, já que as empresas deveriam assegurar que seu produto apresenta todas as condições de segurança e não o órgão regulador ter que comprovar que o produto causa danos. Esta é uma limitação da lei. Entretanto, a grande maioria de projetos de lei existentes desde 1989 até hoje foram para afrouxar a legislação de agrotóxicos e não para torná-la mais rígida ou restritiva.
IHU On-Line – Quais as principais fragilidades da legislação brasileira em relação à regulação e a reavaliação de agrotóxicos? Como vê a posição do Brasil em relação ao rigor do uso desses produtos?
etícia Rodrigues da Silva – As pessoas que trabalham nos órgãos governamentais têm feito o possível e o impossível para avaliar, regular e controlar esses produtos. Entretanto, temos várias fragilidades e uma delas é o número de técnicos envolvidos na avaliação dos agrotóxicos. Nos EUA, que é o segundo maior mercado de agrotóxicos do mundo, a agência de proteção ambiental têm 800 funcionários para avaliar produtos agrotóxicos. No Brasil, por outro lado, se reunirmos todos os técnicos do Ibama, do Ministério da Agricultura e da Anvisa, não somamos o total de 80 técnicos. Esse é um número pequeno de pessoas envolvidas na regulação e hoje o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Essa é a primeira fragilidade, que chamaria de fragilidade de recursos humanos.
A outra fragilidade é que a lei que rege a questão dos agrotóxicos não determina nenhum prazo para a renovação de seu registro, diferentemente do que ocorre com os registros de medicamentos que, a cada cinco anos, são renovados. Na área de agrotóxicos, uma vez que o registro foi concedido, ele fica concedido para todo o sempre e a única medida feita ao longo do tempo é a reavaliação.
A reavaliação tem se demonstrado um processo lento e demorado porque o órgão governamental é único responsável pela reavaliação. Cabe a ele juntar todas as informações para fazer a reavaliação, publicar uma nota técnica, onde são elencados os estudos que demonstram as inseguranças associadas ao produto, observar o devido processo legal, deixar as notas em consulta pública e, depois, ficar suscetível a pressões políticas e à judicialização do processo. A Anvisa colocou 14 ingredientes ativos em reavaliação no ano de 2008 e até agora conseguimos concluir seis dessas reavaliações, com cinco ações judiciais. Embora o processo já tenha sido concluído do ponto de vista administrativo, ele continua sendo discutido do ponto de vista judicial. Então, os técnicos da Anvisa têm de ficar fazendo notas técnicas, dar suporte técnico para a defesa e a contestação. É um processo muito desgastante. Por isso é importante que haja o controle social dos agrotóxicos. Os estudos da Fiocruz e de diversas universidades demonstram que a contaminação não afeta apenas o trabalhador rural, mas se dissemina entre os consumidores e inclusive por meio de contaminação ambiental da água e do ar. Todos os anos os resultados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos, coordenado pela ANVISA e integrado pelas vigilâncias dos estados, demonstram a contaminação dos alimentos vendidos nos supermercados. Muitas vezes as áreas onde estão inseridas as cidades são muito próximas das áreas de lavouras. Então, por vento e diferentes formas de contaminação, toda a população acaba sendo exposta a esses produtos.
IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, no próximo mês, a Anvisa divulgará os resultados anuais do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos, que em 2010 apontou irregularidades em 30% das amostras de produtos agrícolas. Pode adiantar algo?
Letícia Rodrigues da Silva – O Programa de Análise de Resíduos Agrotóxicos é coordenado pela Anvisa e feito por todos os estados da federação. Ele funciona da seguinte forma: os estados coletam amostras de 18 culturas alimentares (batata, banana, cebola etc.) no supermercado; essas amostras são enviadas para laboratórios e eles analisam se os alimentos estão contaminados por agrotóxicos, por qual tipo e em que quantidade.
Não sei dizer qual foi o resultado do plano de 2010, mas esses dados demonstram, de modo contínuo, contaminação de algumas culturas por agrotóxicos. No ano passado, foi detectado um significativo número de irregularidades, tais como uso de agrotóxicos em quantidade superior à permitida, uso de agrotóxicos não autorizados para a cultura específica e o mais grave, que agrotóxicos proibidos no Brasil estão sendo utilizados.
IHU On-Line – A Anvisa tem algum programa para verificar os agrotóxicos falsificados?
Letícia Rodrigues da Silva – Não, porque apenas conseguimos saber a especificação do produto registrado. Não temos como saber quais são as substâncias que existem nos produtos que entram no país por meio do contrabando ou são fabricados no fundo de quintal.
Temos feito fiscalizações nas fábricas e, de 13 empresas fiscalizadas, 11 tinham alterado as formulações sem a autorização da Anvisa. Elas registravam uma formulação e depois substituíam componentes daquela formulação e produziam produtos com outra classe toxicológica.
IHU On-Line – Que atores sociais mais pressionam a Anvisa para regular determinados produtos?
Letícia Rodrigues da Silva – Nós quase não recebemos pedidos por parte da sociedade ou de organizações e movimentos para que os órgãos do governo controlem de forma mais rigorosa essas substâncias. Recebemos frequentemente pedidos para liberação do produto X, Y, Z, de diferentes atores como, por exemplo, cooperativas, sindicatos, prefeituras, parlamentares, empresas. Costumamos dizer que é preciso que a sociedade se aproprie deste tema e diga que risco ela está disposta a correr em face da produtividade, que haja controle social.
Todos os anos surgem pelo menos dois ou três projetos de lei para tirarem as competências da Anvisa e do Ibama. Este ano, tramitou pelo Senado um projeto de lei que propunha que a avaliação dos agrotóxicos fosse feita apenas pelo Ministério da Agricultura. Nesse sentido houve uma manifestação da sociedade.
IHU On-Line – Como o cidadão pode identificar produtos contaminados por agrotóxicos?
Letícia Rodrigues da Silva – Frutas, verduras e legumes produzidos na estação tendem a ter menos agrotóxicos do que aqueles produzidos em estufas. Sempre que possível, o consumidor pode tentar descobrir se os produtos possuem rastreabilidade, quer dizer, saber onde o alimento foi produzido. Em várias redes de supermercados já existe esse sistema de rastreabilidade. Na gôndola onde o produto está, há um número ou uma etiqueta para identificar a sua origem. Quando se verifica uma irregularidade, é possível encontrar quem produziu aquele alimento. Também é importante variar a alimentação e consumir alimentos que possuam certificação de produção orgânica.
IHU On-Line – Até 2012 a Anvisa pretende proibir a produção e comercialização de agrotóxicos que contenham o ativo metamidofós. Quais os riscos deste ativo? E qual sua expectativa em relação a essa possível proibição?
Letícia Rodrigues da Silva – O metamidofós está com um programa de descontinuidade de uso estabelecido para quase todas as empresas. Apenas uma indústria está recorrendo judicialmente e está produzindo o produto no país. As demais já cancelaram as fabricações e a importação também foi cancelada. A comercialização deste ativo ainda está permitida até 2012, ficando mais um prazo para uso e, posteriormente, o uso não será mais permitido. Esse cronograma de descontinuidade foi estabelecido para que não se tenha estoque remanescente do produto e nem incremento de uso ilegal.
O metamidofós está associado à desregulação endócrina, a efeitos imunotóxicos, e causa prejuízos ao desenvolvimento embriofetal. Ele está proibido em países da África, na China, Indonésia, Japão,Paquistão, Comunidade Européia e teve o cancelamento voluntário do registro nos Estados Unidos, após ter sido colocado em reavaliação naquele país.
(Ecodebate, 06/07/2011)Entrevista realizada por Patricia Fachin e publicada pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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