Anjos Bons, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)
[EcoDebate] O povo baiano já definiu uma forma carinhosa de se dirigir a Ir. Dulce: Anjo Bom.
É bom lembrarmos que aqui é a Bahia de todos os Santos, também de todos os demônios.
Dulce foi uma pessoa mais contraditória que aparece à primeira vista. Dedicou-se de corpo e alma, com todas suas forças, para dar alguma dignidade aos que viviam e vivem na miséria em Salvador. Isso mesmo, a belíssima cidade ainda guarda pobreza em quantidade, mesmo que já não exista mais Alagados e tantas outras paisagens infames.
Nunca se preocupou de onde vinha o dinheiro para seu trabalho. Se necessário, pedia aos donos do poder. Por isso, eles fizeram questão de aproximar-se dela, para instrumentalizar sua imagem, mesmo que governassem a Bahia com mão de ferro e produzissem miséria.
Aparentemente apolítica, tornou-se um ícone da direita baiana e também da Igreja conservadora. Afinal, para muitos, é assim que um cristão deve servir aos pobres. Mas, ela era mais esperta do que os seus instrumentalizadores imaginavam. Quando necessário, foi rebelde, ocupando casas, levando doentes para ambientes onde não eram desejados, criando problemas dentro da congregação. Era acusada de preferir mais os pobres e a rua que sua comunidade.
A Igreja teve outros anjos bons. D. Hélder sonhou com um milênio sem miséria. D. Luciano, Mauro Morelli e outros, seguindo o sonho de D. Hélder, criaram o “Mutirão pela Superação da Fome e da Miséria”, CNBB.
No campo a luta veio de forma organizada, em Pastorais Sociais, como a da Terra, dos Pescadores, além das urbanas como a Operária, do Menor, do Migrante, etc. A Pastoral da Criança salvou e salva milhões de crianças nesse país e no resto do mundo.
Aqui no sertão estamos conseguindo vencer a sede, a fome, a migração e tantas mazelas que afligiram gerações e gerações de nordestinos com a simples captação da água de chuva. As Pastorais são parte integrante desse esforço hercúleo.
Mas, falo também dos anjos sem religião. Por mais de trinta anos tivemos na CPT da Bahia Marta Pinto dos Anjos. Advogada, sem convicção religiosa. Quando íamos rezar um pai-nosso, segurava nossas mãos, abaixava a cabeça e silenciava. Conheci poucas pessoas tão dedicadas aos pobres do campo na Bahia como Marta. Aposentou-se, em seis meses faleceu vítima de câncer.
O que sempre chamou a atenção em Marta é que não precisa ser cristão, nem esperar pela vida eterna para se fazer uma verdadeira dedicação pela justiça e pela superação da miséria. Assim, existem milhares e milhões. Eles e elas estão nos movimentos sociais, mesmo dentro de certos governos.
Ir. Dulce é sim um anjo bom. Onde está uma pessoa em necessidade, ali está um universo.
Entretanto, pessoas como ela, assim como Teresa de Calcutá, surgem onde a miséria é abundante. E a miséria sobra onde a injustiça superabunda. Não vamos encontrar essas santas em Berlim ou Copenhague. Lá existe saúde pública que funciona, educação, enfim, uma política social onde são desnecessárias santas como elas. Portanto, elas também são frutos de um contexto perverso.
Mas, a santidade do Anjo Bom é verdadeira, porque sua generosidade foi verdadeira.
O pior não é a opção assistencial – tantas vezes necessária -, é a indiferença.
Roberto Malvezzi (Gogó), articulista do EcoDebate, é membro da Equipe Terra, Água e Meio Ambiente do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano).
EcoDebate, 26/05/2011
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