Dois modelos em disputa no Cerrado: agroecologia e agronegócio
Durante os dias 15, 16 e 17 de março, geraizeiros , quilombolas, indígenas, pesquisadores, agrônomos, comunicadores e militantes de movimentos sociais participaram da Oficina Territorial Diálogos e Convergências do Norte de Minas Gerais, na cidade de Montezuma (MG). A exemplo das atividades já realizadas no pólo de Borborema, na Paraíba, e no Planalto Serrano de Santa Catarina, a oficina teve com objetivo promover um diálogo entre as experiências agroecológicas da região na preparação para o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar e Economia Solidária, previsto para acontecer ainda no primeiro semestre de 2011.
Os participantes da oficina conheceram no primeiro dia as experiências de duas comunidades – a de Americana, uma área de assentamento, e a de Vereda Funda, cuja população está conquistando o reconhecimento do direito à terra que já ocupam historicamente.
A história do assentamento Americana começa com a reivindicação de camponeses da região de que a área seja destinada para a reforma agrária, quando descobrem que a terra estava indo a leilão. Diante da reivindicação, o Incra chegou a avaliar que a terra não poderia ser destinada a assentamento por se tratar de uma área de brejo e, consequentemente, com poucas possibilidades de cultivo. Na década de 80, o processo de desmatamento da área avançou muito, inclusive para alimentar as carvoarias da região. Mas quem visita hoje o assentamento Americana não entende as considerações do Incra, já que a variedade de alimentos decorrente da produção e do extrativismo é notável. Os camponeses ocuparam a terra em 2000, com a argumentação de que era possível viver e trabalhar ali, e com a ajuda do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA NM) construíram um laudo provando o contrário do que o Incra dizia. Um ano depois, o instituto realizou a desapropriação da área e as 76 famílias que hoje vivem no local. Dez anos depois de criado o assentamento, as famílias não receberam sequer o crédito de habitação, para a construção das casas.
Mas a falta de apoio do poder público não intimida alguns assentados, que construíram as casas mesmo sem recursos do governo e exigem que, embora tarde, os recursos públicos venham para os ajudarem a implementar os avanços necessários. O agricultor Aparecido de Souza, diretor da cooperativa Grande Sertão, criada pelos assentados, conta que o assentamento foi criado com uma proposta baseada no modo de vida dos povos tradicionais da região, chamados de geraizeiros, trabalhando o uso e o manejo sustentável do cerrado. Ele diz que os assentados estão tendo que passar por um processo de sensibilização. “Hoje o pessoal está mais sensibilizado, mas não é fácil porque muitos passaram a vida toda morando com fazendeiros e fazendo carvão, então, só sabem fazer carvão”, diz. Os resultados desse processo já são visíveis: passeando pela área é possível ver que bem próximo às árvores típicas do cerrado, como o pé de pequi, estão plantadas várias espécies de milho, feijão, abacaxi, mandioca. Em cima da mesa da casa de Aparecido, onde o grupo que participava da oficina foi recepcionado, estavam à mostra as frutas típicas do cerrado e o aproveitamento delas, como os óleos de pequi e rufão, dois frutos ricos em nutrientes e, especialmente o último, com muitas propriedades medicinais, e também ervas medicinais cultivadas pelos assentados como a carqueja e o pau fede. Como forma de se organizarem, os assentados criaram também o Grupo Extrativista do Cerrado que é responsável por manter viva a concepção do assentamento baseada no agroextrativismo.
A cooperativa Grande Sertão está construindo, com o auxílio técnico e financeiro de outras organizações, uma agroindústria no local, que deve ficar pronta até o mês de julho. A construção já está avançada e a proposta é de que neste local consiga produzir mais e melhor os óleos, farinhas e doces dos frutos do cerrado. Eles planejam que na agroindustria haja espaço também para um banco de sementes e um salão de eventos. Os assentados contam que a estrutura atenderá às famílias do Grupo Extrativista do Cerrado e também de outras comunidades próximas. “Mas para vir terá que trabalhar com agroecologia”, alertam os agricultores.
Luta contra a monocultura e pela água em Vereda Funda
O entorno da comunidade Vereda Funda, no município de Rio Pardo de Minas, também no norte de Minas Gerais, está cercado por plantações de eucalipto. Ao todo, os eucaliptos dominam cerca de 15 mil hectares. Até pouco tempo, as terras da comunidade, onde hoje volta a nascer o Cerrado, também serviram à monocultura. Os moradores contam que no final da década de 70, durante a ditadura civil-militar, é que a terra começou a ser ocupada por empresas que plantavam eucalipto. Mas, após alguns anos do cultivo, a população foi percebendo os prejuízos: cerca de sete nascentes secaram totalmente ou não tinham mais força para fazer a água chegar até o Rio, as formigas invadiram os quintais e houve muita erosão – as consequências do monocultivo da árvore. “Passou a faltar água até para fazer comida. Tivemos que tirar água barrenta da cisterna e ela teve que ser coada em pano três vezes antes de ser consumida”, lembra o morador da comunidade e diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas Elmy Soares. Ele conta que a situação se agravou de tal forma que as famílias tiveram que ser abastecidas de água com caminhão pipa.
Diante das dificuldades, a população de Vereda Funda resolveu que daquele jeito não dava mais para continuar. Refletiram conjuntamente que a abundância de alimentos que tinham antes e formas de plantios que passaram de geração para geração, como o cultivo de café sombreado (na sombra dos quintais das casas), estava se perdendo. Muitos moradores antigos da região já tinham ido embora do lugar e até um rio (o rio da Ponte Grande) havia secado. Com a ajuda de pesquisadores e organizações como o CAA, conseguiram saber que o contrato que a empresa plantadora de eucalipto tinha feito com o governo do estado estava terminando e iniciaram uma grande batalha para retomar a terra que era deles há mais de um século. “Uma hora nós pensamos: estamos aqui só rezando e o que vamos fazer? Descobrimos que o contrato vencia em 2003 e que a terra era do estado, então era mais fácil. Aí já tinham cortado o eucalipto, estavam começando a plantar de novo e tínhamos que impedir”, relata Elmy.
Daí em diante os moradores começam a se organizar mais fortemente,e a receber ajuda de movimentos sociais como o MST. Depois de alguns anos de mobilizações, audiências públicas e ocupações, conseguiram a terra de volta. Pelo relato de Elmy é possível perceber que o processo não foi fácil. “Construímos um grande rancho de pindoba, muito bonito, para fazer as reuniões, mas tacaram fogo no rancho. Construímos de novo e, pela segunda vez, colocaram fogo. Por fim, desistimos e fizemos as reuniões em uma casa mesmo”, lembra.
Apenas quatro anos depois, em 2009, é que a Assembléia Legislativa de Minas Gerais aprovou uma lei que destina partes das terras da comunidade Vereda Funda para o Incra. Posteriormente, a área deve virar um assentamento para a população que lá reside, o que não aconteceu até hoje. Mas mesmo sem o título de propriedade da terra, os moradores de Vereda Funda já começaram a trabalhar para que o Cerrado volte a nascer na região, embora reconheçam que ainda há muito trabalho pela frente. Foram os próprios camponeses de Vereda Funda que demarcaram a terra que é deles há muitos anos. Apenas parte do que foi reconhecido como área total da comunidade foi destinada a eles. Das terras da Vereda Funda, onde os moradores também estão construindo uma sede para ajudar no beneficiamento da produção, é possível ver o contraste entre a área de cerrado que já está crescendo e a monocultura do eucalipto, bem próxima dali. Um exemplo da regeneração do bioma é a quantidade de animais que voltou a aparecer – pacas, tatus e até lobo guará, que tipicamente habitam o cerrado. Elmy explica que há “bicho até demais”, porque a Vereda Funda agora é praticamente o único lugar da região que oferece a biodiversidade necessária para estes animais sobreviverem.
O agricultor relata que com os anos de plantação de eucalipto o desenvolvimento dos cultivos ficou prejudicado, pois há excesso de formigas e a terra sofreu muita erosão.”O nosso sonho maior de recuperar as nascentes já está acontecendo. Todas elas já tem água de novo. As chácaras de café estão voltando e a maioria das famílias já vende de novo um pouquinho de café”, relata o agricultor, orgulhoso. Arcilo dos Santos, também geraizeiro da Vereda Funda, conta que naquele mesmo dia havia plantado várias sementes de Ingá – uma arvore grande – para “sombrear” toda a área dele e expandir o cultivo do café sombreado. Ele também comemora a volta da água: “Não vai ter mais aquele ‘aguão’ disparado que tinha antes, mas a água vai voltar”, completa, no jeito de falar dos geraizeiros.
Reportagem de Raquel Júnia, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Fotos: Lívia Duarte/Agência Pulsar e Raquel Júnia
EcoDebate, 30/03/2011
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