Desmontar carros e reciclar tudo, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] O governo de São Paulo pretende, em dois anos, implantar as primeiras “desmontadoras de veículos” – informou este jornal (21/2) -, na tentativa de enfrentar o problema da “mobilidade zero” na capital, diagnosticado pelo secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia, Guilherme Afif Domingos. E começará pelos carros e motos reprovados na inspeção veicular e que tenham dívidas fiscais – cerca de 30% a 35% da frota total. Só nos pátios estão mais de 100 mil veículos apreendidos por irregularidades e dívidas.
Os números já não chegam a espantar. Na capital, são 7 milhões de veículos registrados. No País, 35,3 milhões, aos quais em cinco anos se deverão acrescentar 25 milhões. Em 2010 foram 3,5 milhões de carros novos vendidos (inclusive com isenção de impostos), compondo o quarto maior mercado mundial. Só a Polícia Militar aplicou, em 2010, quase 750 mil multas de trânsito na capital (ao todo foram mais de 6 milhões de infrações). Espera-se que este ano sejam 20% mais (Estado, 21/2) e que a receita com elas chegue a R$ 638,9 milhões. No ano passado, de mais de R$ 500 milhões de receita com multas, R$ 170 milhões foram concedidos em subsídios a empresas de ônibus, para “renovação da frota e compensações tarifárias”.
Num panorama como este, com 45% das pessoas na capital se deslocando em automóveis (Estado, 10/9/2010), só se poderia mesmo chegar à saturação – e, afinal, à proposta de “desmontar veículos”. Mas ela terá de ir além dos pátios repletos de veículos irregulares. E um bom exemplo pode ser encontrado pelas autoridades na Suécia, onde o ônus do “desmonte” e da reciclagem cabe aos proprietários dos veículos, e não ao Estado (e à sociedade toda). Nesse país, ao comprar um carro novo, o proprietário já paga por um certificado de reciclagem, que passará de mão em mão se o veículo for vendido. O proprietário que entender haver chegado a hora da reciclagem, leva o carro a uma empresa autorizada e recebe o valor desse certificado. A empresa começa por retirar todos os fluidos e óleos para reciclagens especiais; depois, tudo o que ainda pode ser utilizado (pneus, vidros, peças etc.) é vendido a terceiros, com garantia de prazo; em seguida, a carcaça é amassada e enviada a outra empresa, que a pica e destina os resíduos a fornos de siderúrgicas, base para asfalto de rodovias e outras aplicações. O país já faz isso com mais de 90% dos veículos que chegam ao fim da vida útil, e espera chegar em breve a 100%.
É um bom exemplo, que deveria ser levado, aqui, também a outras áreas de resíduos. Porque, apesar de acertos da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), os avanços serão difíceis se não se implantar o princípio de que o ônus da solução deve caber a quem gera os resíduos – domiciliares, comerciais, industriais, da construção etc. E isso não está na lei. Ela dá prazo para que Estados e municípios façam seus planos diretores para a área e definam programas de coleta seletiva. Mas como se fará isso, se quase 60% dos municípios brasileiros (3.369, segundo o IBGE) nem sequer têm aterros e depositam resíduos em lixões, alegando falta de recursos? No Estado do Rio são 72 dos 92 municípios. Em São Paulo, 156 dos 645 municípios – e isso em dois dos Estados com mais recursos.
Há algum tempo calculou-se que implantar um aterro para 2 mil toneladas diárias custa R$ 350 milhões. Como o Brasil produz mais de 200 mil toneladas diárias de resíduos domiciliares e comerciais, isso significaria, a grosso modo, que precisamos de áreas equivalentes a mais de 100 desses aterros. Que custariam mais de R$ 35 bilhões. Como o PAC deste ano prevê um total de R$ 1,5 bilhão para a área de resíduos (se não houver contingenciamento), seriam mais de 20 anos só para implantar aterros. Sem falar nos investimentos necessários para a reciclagem em todos os municípios (prevista na PNRS para dentro de quatro anos). E para a implantação de logística reversa nos vários setores (pilhas e baterias; lixo eletroeletrônico; pneus; agrotóxicos; lâmpadas fluorescentes; vidros etc.).
É preciso repetir e insistir: só haverá solução se o gerador de resíduos pagar pela coleta e destinação – como se faz nos países que mais avançaram nessa área, principalmente na Europa. São Paulo chegou a criar uma taxa para os resíduos domiciliares e comerciais na administração Marta Suplicy, mas recuou (e a ex-prefeita chegou a dizer aos jornais que a criação da taxa foi seu “maior erro político”).
Da mesma forma, a acertada decisão de dar preferência na política nacional a cooperativas de catadores (eles já seriam 1 milhão hoje) corre riscos, se não se avançar para a implantação de sistemas financiados em que elas disponham de equipamentos para a coleta (caminhões com espaços separados para lixo seco e lixo orgânico) e recebam das prefeituras por tonelagem coletada os mesmos valores hoje atribuídos a empresas que fazem esse trabalho.
É preciso, também, financiar para as cooperativas usinas onde o lixo orgânico seja compostado e transformado em fertilizante (utilizável em jardins, contenção de encostas etc.). O lixo seco, depois de separado na usina, pode ser transformado em telhas (a partir de massa de papel e papelão decompostos, revestida de betume); o PVC, em mangueiras pretas; o vidro pode ser moído e vendido a recicladoras, assim como o alumínio de latas.
Onde se fez isso, gerou-se muito trabalho e renda para uma corporação a quem o País já deve muito, pois, trabalhando de sol a sol, sem nenhuma proteção, ela encaminha a empresas quase tudo o que se recicla de papel, papelão, vidro, pet, alumínio e outros materiais. Em alguns lugares onde isso foi feito, o lixo encaminhado, no final, a aterros, foi reduzido a 20% do total – o que é enorme economia de recursos e de dinheiro para o poder público (e para a sociedade, que paga os impostos).
Se não for assim, corre-se o risco de o novo plano não avançar.
JORNALISTA – E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo
EcoDebate, 14/03/2011
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