Uma abordagem ecossistêmica da qualidade de vida, artigo de André Francisco Pilon
Todos os anos, as Nações Unidas promovem o Dia Mundial do Habitat. Problemas crônicos são recorrentemente lembrados: o bilhão de pessoas carentes sem moradia, a condição de jovens sem escolaridade e emprego, que vagam pelas ruas, à mercê de uma cultura ligada aos símbolos de consumo, que favorece a criminalidade e privilegia a ganância.
Ambientes naturais e construídos, valores essenciais à convivência, são progressivamente solapados por poderosas forças políticas, econômicas e tecnológicas. Os problemas, definidos de forma fragmentada e reduzida pelas manchetes dos mass media, interesses de mercado e formatos acadêmicos, assemelham-se a bolhas em um caldo efervescente.
Enquanto isso, os mais favorecidos, protegidos em seus redutos e viaturas blindadas, propagam incessantemente que crescimento econômico é sinônimo de qualidade de vida (para quem?). A “classe média emergente”, cooptada pelos mass media e pelo consumismo, adquire, por sua vez, carro próprio e disputa vagas em shopping centers e em “feriadões” na praia, atribuindo a violência das ruas ao caráter de pessoas malvadas.
Uma sociedade pautada pelos mass media, pela publicidade, pelo consumo, por políticas públicas avessas à educação como formação de caráter e desenvolvimento de espírito cívico aceita qualquer expediente para “chegar lá” e só pode resultar em indivíduos imediatistas, descompromissados com o bem público, sequiosos de dinheiro e poder. Quanto mais gente for “incluída” nesse sistema de coisas, mais ele se fortalece e se reproduz.
O governo, sob o falso pretexto de racionalidade e “enxugamento”, terceiriza serviços e obras, canalizando os fundos públicos para consultorias, assessorias e contratos mal executados e superfaturados, manipulados por lobbies de toda espécie, que logo manifestam sua “gratidão”. Menos dinheiro seria gasto com a reestruturação do Estado e um quadro qualificado de servidores.
Em sociedades assimétricas, caracterizadas por diferenças de poder entre pessoas físicas e pessoas jurídicas, as corporações exercem influência considerável sobre as políticas públicas e instituições do Estado, flexibilizando e distribuindo responsabilidades ao longo de sua estrutura hierárquica, raramente envolvendo o conjunto de seus acionistas, considerados meros investidores no mercado de ações.
Mecanismos de bloqueio, estabilizados por instituições favoráveis, grupos de interesses, crenças estabelecidas, investimentos irrecuperáveis e custos baixos, impedem firmemente a adoção de inovações e “práticas verdes” em diferentes áreas (transportes, energia, agrobusiness), levando à dependência de trajetórias e ao entrapment; é uma luta árdua contra os sistemas econômicos, técnicos, políticos, científicos e culturais prevalentes.
Aceitação de normas éticas, construção da paz, equilíbrio ambiental exigem uma série de experiências sociais eticamente interpretadas e ordenadas, uma capacidade de desenvolver interesses moralmente relevantes como base de direitos e obrigações, um amplo conhecimento cultural universalmente racionalizado, uma empatia com as pessoas, incluindo aquelas consideradas como estrangeiras, ou mesmo hostis.
A solidariedade não se restringe apenas aos mais carentes, mas implica democracia participativa, desenvolvimento de lideranças, organização e facilitação de atividades de grupos de cidadãos comprometidos com uma visão integrada dos vários aspectos da qualidade de vida, hoje prejudicada pelo apartheid social, econômico e cultural e pela crescente violência observada nos centros urbanos, tanto nos chamados países emergentes como nos não-emergentes.
A “construção da paz”, os direitos e deveres devem ser entendidos como culminação de um processo, em que a aceitação das normas éticas derivem de um conjunto de experiências sociais moralmente relevantes ao longo da vida, em que o “capital cultural”, a identidade pessoal, não sejam frutos do “privilégio” de pertencer a grupos que buscam o domínio mediante a violência e a criminalidade, seja ela de rua ou de gabinete.
As cidades não podem continuar como centros privilegiados para expansão de lucros e acumulação de capital com prejuízo da qualidade de vida. É necessária a construção de um novo tecido social e não apenas colocar remendos em tecidos já rotos. Além dos motivos e expectativas individuais, as instituições têm um papel decisivo ao induzir os eventos e contribuir para novos paradigmas de crescimento, poder, riqueza, trabalho e liberdade.
A educação integral implica o desenvolvimento das letras, das artes, da filosofia, dos valores que dão sentido à existência humana. A inclusão cultural não pode ser dada apenas pelos mass media, pela indústria fonográfica ou por uma escola voltada exclusivamente para a profissionalização e os interesses do mercado. Quando voltaremos a ser cidadãos, no pleno sentido, ao invés de simples consumidores e usuários?
André Francisco Pilon é professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP
Artigo socializado pelo Jornal da USP.
EcoDebate, 10/03/2011
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