A ‘religião’ do livre mercado e os limites profundos do capitalismo
O novo livro de Hans Küng intitula-se Onestà. Perché l’economia ha bisogno di un’etica [Honestidade. Por que a economia precisa de uma ética] e será publicado no dia 2 de março (tradução ao italiano de Chicca Galli, 372 páginas).
A reportagem é do jornal Corriere della Sera, 25-02-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aqui, antecipamos um trecho dedicado à “economia responsável”. Onestà é um ensaio contra a religião do livre mercado e pela redescoberta dos valores que poderiam tornar a economia mais justa e mais eficaz.
A última crise, defende Küng, confirmou isso: o capitalismo não é uma ciência e, como o socialismo, tem limites profundos que correm o risco de levar a sociedade ao colapso. O teólogo, ao qual, em 1979, a Congregação para a Doutrina da Fé revogou a autorização de ensinar a teologia católica, analisa, de um lado, a globalização e a evolução dos mercados e, de outro, se interroga sobre conceitos-chave como justiça, equidade, remuneração.
Küng acredita em uma ética mundial, válida também para a economia, baseada em dois princípios: a reciprocidade (não fazer aos outros o que não queres que seja feito a ti) e a humanidade (todo ser humano deve ser tratado humanamente).
Com a editora Rizzoli, o teólogo suíço publicou vários livros, dentre os quais Ebraismo (1993),
Cristianesimo (1997), Islam (2005). No ano passado, também pela Rizzoli, foi publicado Ciò che credo [Aquilo em que creio].
Eis o texto.
Responsabilidade, na sua acepção comum, indica o empenho a responder a um evento e a avaliar conscientemente deveres e consequências nas decisões conflituais. No século XX, o conceito de responsabilidade tornou-se um conceito-chave da ética. Nos nossos dias, o presidente Barack Obama, no seu discurso de posse – para tomar distância da era Bush – invocou “uma nova era da responsabilidade”. Ele só podia intuir que tipo de fardos sobre-humanos essa responsabilidade carregaria sobre ele como presidente: a guerra no Iraque, que ofende o direito internacional, aquela guerra inútil do ponto de vista estratégico no Afeganistão, a oposição interna à reforma da saúde, a crise financeira e econômica mundial, enfim a “catástrofe natural” sem precedentes da “maré negra” no Golfo do México, provocada pelos homens.
Tudo isso ocorreu também em consequência da falta de responsabilidade: justamente no caso do vazamento do petróleo no mar, a irresponsabilidade concernia, de um lado, às empresas comprometidas com a extração, que ignoraram diligências e advertências; de outro, aos órgãos de vigilância corruptos, uma herança de George W. Bush Jr., o ex-presidente próximo da indústria petrolífera. Mas já foi demonstrado: a irresponsabilidade, na economia, não se paga; a responsabilidade é exigida também por razões econômicas.
O sociólogo Max Weber propôs uma ética da responsabilidade. Uma tal ética, segundo ele, também não é “sem convicções”, mas se interroga sempre de modo realista sobre as “consequências” previsíveis das nossas ações e assume as suas responsabilidades: “Portanto, a ética da convicção e a da responsabilidade não são absolutamente antitéticas, mas se completam reciprocamente e só conjugadas formam o verdadeiro homem, aquele que pode ter a ‘vocação política'”. Sem a ética da convicção, a ética da responsabilidade degeneraria em uma mera ética do sucesso, privada de princípios morais, para a qual todo meio é lícito para alcançar o objetivo. Sem ética da responsabilidade, a ética da convicção degeneraria no mero cuidado de uma interioridade satisfeita consigo mesma.
Na Declaração para uma Ética Mundial do Parlamento das Religiões Mundiais (Chicago, 1993), ao término da parte dedicada ao segundo princípio fundamental, encontra-se a seguinte frase: “A autodeterminação e a autorrealização são perfeitamente legítimas – desde que não sejam separadas da responsabilidade para com os próprios semelhantes e para com o planeta Terra”. Assumindo os movimentos dessa declaração, o filósofo Hans-Martin Schönherr-Mann explica assim a responsabilidade: “Não só querer o Bem, mas também, no juízo ético, considerar racionalmente as consequências das próprias ações em relação ao seu objetivo. O indivíduo deve refletir sobre o que faz e sobre as consequências do que está fazendo. Não é suficiente nem respeitar as leis nem se ater a determinadas normas morais. A responsabilidade torna-se a palavra-chave de uma ética da globalização em um mundo pluralista de sistemas de valores em concorrência”.
Ainda no final dos anos 70, o filósofo alemão-americano Hans Jonas analisou a fundo o “princípio de responsabilidade” e o reformulou para a nossa civilização tecnológica, à luz da situação completamente mudada do mundo depois da Segunda Guerra Mundial, tendo presente a existência futura da espécie humana, que hoje está posta seriamente em perigo. O homem deve ser responsável globalmente pelo bio-, lito-, hidro- e atmosfera do planeta. E tal responsabilidade inclui – pense-se apenas na crise energética, no exaurimento dos recursos naturais, no crescimento demográfico – uma autolimitação do ser humano e da sua liberdade no presente por amor à sua sobrevivência no futuro: requer-se assim uma ética de novo tipo, uma ética da preocupação pelo futuro (que nos torna perspicazes) no respeito à natureza.
No meu livro Projeto de Ética Mundial (Paulinas, 2001/1990), assumi essa visão de Hans Jonas, com duas modificações. A primeira é que, com a responsabilidade em relação ao mundo, deve-se levar em consideração também a responsabilidade do ser humano com relação a si mesmo. Não se trata só de ser responsável pelo ambiente, pelo próximo, pela posteridade, mas sim também com relação ao próprio ser humano, que é um fim em si mesmo e tem uma responsabilidade com relação à sua pessoa. Dito com palavras elementares, isso significa: o ser humano deve se tornar mais humano! Para o ser humano, é bom aquilo que lhe permite conservar, promover, realizar o seu ser humano. O ser humano deve desfrutar o seu potencial humano para realizar uma sociedade o máximo possível humana e um ambiente intacto, de modo diferente de como ocorreu até agora. E pode fazer muito mais do que está fazendo. Nesse sentido, o princípio realista de responsabilidade e aquele “utópico” de esperança (Ernst Bloch) caminham no mesmo passo.
Depois da Segunda Guerra Mundial, encontramo-nos vivendo uma nova mudança de paradigma: da época moderna, passamos para uma pós-modernidade, cujos contornos já estão delineados, mas à qual ainda não foi dado um nome que a defina. Essa mudança de paradigma não tem como consequência uma simples decadência de valores, como lamentam os pensadores conservadores, mas sim uma mudança de valores: de uma ciência eticamente livre a uma ciência eticamente responsável; de uma tecnocracia dominante sobre o ser humano a uma tecnologia ao serviço da humanidade do homem. Uma transformação da sociedade, portanto, não contra a ciência, a tecnologia, a indústria e a democracia, mas sim em associação com essas forças sociais às quais, tempos atrás, se atribuía um valor absoluto e que, ao contrário, hoje, são relativizadas.
Os valores específicos da modernidade industrial – diligência (em latim: indústria!), racionalidade, ordem, conscienciosidade, pontualidade, sobriedade, operosidade, eficiência – não devem ser simplesmente abolidos, mas sim reinterpretados em uma nova constelação e combinados com os novos valores do pós-moderno: com a imaginação, a sensibilidade, a emocionalidade, o calor, a delicadeza, a humanidade. Não se trata de negações e condenações, mas de contrapesos e projetos alternativos.
Nesse contexto – e é essa a segunda modificação com relação à visão de Hans Jonas – as religiões e as ideologias mundiais não devem ser ignoradas, mas sim integradas. Uma análise da situação mundial que não leve em conta as religiões do mundo é deficitária de partida. Segue-se disso que a palavra de ordem do terceiro milênio, concretamente, deveria ser: responsabilidade da sociedade inteira com relação ao próprio futuro, responsabilidade pela contemporaneidade, o ambiente e também pelo ser humano em si mesmo, a posteridade. Os responsáveis das diversas regiões, religiões e ideologias do mundo são convidados a pensar e a agir no contexto global e a levar em conta, ao mesmo tempo, pessoas reais.
Ora, justamente a economia mundial frequentemente não é determinada pelo agir responsável, mas pela irresponsabilidade. Desejo ilustrar isso com dois exemplos concretos: a avidez do lucro, que se manifesta de modo totalmente novo exatamente nestas últimas décadas, e a falsidade difundida da política. Nem a avidez do lucro nem a falsidade são um fato meramente privado, mas podem se tornar um problema sistêmico. Por isso, é preciso falar sobre elas expressamente com base em casos reais. “Passion to perform”, a paixão de realizar: deve ter sido um brilhante consultor de comunicação quem pôde convencer o maior banco alemão a apresentar o conjunto das suas atividades sob esse slogan. Até a crise econômica, ninguém havia relacionado o conceito de “paixão” com o setor bancário. Alguém pode se perguntar: paixão de quem? Do grupo ou das filiais locais, dos top manager ou dos consultores individuais? E paixão por quê? “Paixão” significa mais do que um “estado de excitação” passageiro, indica um estado de ânimo emotivo que a razão frequentemente se esforça para governar. Existe uma paixão criativa, mas também uma paixão cega, destrutiva, existe o entusiasmo. Paixão por que, então?
Mas é claro, responderiam alguns empregados do banco, é a paixão de ganhar o máximo possível. E isso não é um mal em si mesmo. É até algo positivo, no caso de um banco que se demonstrou capaz de resistir à crise sem ajudas estatais. Porém, se um banco, mesmo agora que a crise está bem longe de ser superada, busca de novo rendimentos de 25% excluindo a taxação, muitos se perguntam: como pode fazer isso sem sem ir ao encontro de riscos muito altos? A despeito de quem se obtém tais ganhos? Por que não bastam 12% ou 15% como na economia real? Para muitos clientes, que perderam partes consideráveis do seu patrimônio, no entanto, esse desejo de lucro deixa um gosto amargo. Não é por acaso que, durante a crise, a palavra avidez (“greed”) estava na boca de todos. Ora, “desejar ardentemente alguma coisa” é uma características profundamente humana, e um desejo muito forte e sentido também pode ter uma valência positiva ou uma negativa. A “curiosidade”, o desejo de aprender algo novo ou a “vontade de saber”, que é fundamental para todo estudioso, são constantes do comportamento humano. Assim como é, sob um outro aspecto, aspirar a produzir ganhos, a aproveitar o incremento das entradas e das vantagens a elas correlacionadas. Mas essa não é a avidez no sentido autêntico do termo, mas deve ser entendida quase sempre de modo negativo: como desejo descontrolado, desmedido, insaciável. Não importa qual seja o seu objeto, trata-se de posse, de ganho, de poder, de sexo: o querer ter sempre mais, sem consideração por ninguém, é o contrário de uma virtude cardeal e é, em todo o caso, um vício difundido em nível global. E isso não favorece de fato a estabilidade financeira!
(Ecodebate, 10/03/2011) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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