A construção de barragens gera injustiças ambientais, entrevista com Eduardo Ruppenthal
Quando começa o processo de construção de uma hidrelétrica, “dois mundos entram em choque”, pois são empreendimentos de capital alheio/fora/estranho às comunidades atingidas, acredita Eduardo Ruppenthal
“As hidrelétricas, grandes obras por excelência, requerem a ocupação de amplos territórios, na maioria das vezes em detrimento de segmentos sociais vulneráveis, tais como as populações rurais, ribeirinhas e comunidades étnicas”, afirma o biólogo Eduardo Ruppenthal, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele explica que “em função de uma visão hegemônica de ‘desenvolvimento e progresso’, que tem orientado o processo de modernização do Brasil e sua inserção no processo contemporâneo de globalização econômica – principalmente aprofundado no segundo governo Lula com os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) 1 e 2 –, comunidades rurais são desconstituídas do meio ambiente que, por gerações, como bem material e simbólico, vêm assegurando a manutenção e a reprodução de seus modos de vida, têm a terra como patrimônio da família e da comunidade, defendida pela memória coletiva e por regras de uso e compartilhamento de recursos”. Ao refletir sobre as consequências que as hidrelétricas estão provocando para a produção agrí¬cola do Rio Grande do Sul, Ruppenthal considera que elas contribuem “para a desterritorialização de comunidades rurais, sendo que uma das consequências é o êxodo rural. E quase sempre, mudança de modelo agrícola, passando da ‘agricultura do nativo’ para a agricultura convencional”. E conclui: “a mudança da atual lógica energética só acontecerá com a mudança das estruturas da sociedade brasileira”.
Eduardo Luís Ruppenthal é mestrando em Desenvolvimento Rural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Possui graduação em Ciências Biológicas – Ênfase Ambiental pela UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira as hidrelétricas afetam os agricultores gaúchos?
Eduardo Ruppenthal – A construção de hidrelétricas no Rio Grande do Sul possui as mesmas similaridades às outras em qualquer lugar, tanto no Brasil (hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, Belo Monte no Rio Xingu, etc.) como em outro lugar no Mundo. As hidrelétricas, grandes obras por excelência, requerem a ocupação de amplos territórios, na maioria das vezes em detrimento de segmentos sociais vulneráveis, tais como as populações rurais, ribeirinhas e comunidades étnicas, em função de uma visão hegemônica de “desenvolvimento e progresso”, que tem orientado o processo de modernização do Brasil e sua inserção no processo contemporâneo de globalização econômica – principalmente aprofundado no segundo governo Lula com os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) 1 e 2 –, comunidades rurais são desconstituídas do meio ambiente que, por gerações, como bem material e simbólico, vêm assegurando a manutenção e a reprodução de seus modos de vida, têm a terra como patrimônio da família e da comunidade, defendida pela memória coletiva e por regras de uso e compartilhamento de recursos. Quando começa o processo de construção de uma hidrelétrica, “dois mundos entram em choque”, pois são empreendimentos de capital alheio/fora/estranho às comunidades atingidas. O setor elétrico (Estado e empreendedores públicos e/ou privados), a partir de uma ótica de mercado, entendem o território como propriedade e assim, uma mercadoria possível de valoração monetária. Neste sentido, a construção de barragens tem sido geradora de injustiças ambientais, uma vez que os custos dos impactos socioambientais recaem sobre as comunidades atingidas, sendo que, antes e durante o processo, não são sujeitos ativos na decisão dos significados, destinos e usos dos recursos naturais ali existentes.
IHU On-Line – Quais hidrelétricas no Rio Grande do Sul possuem mais agricultores atingidos?
Eduardo Ruppenthal – Não há como saber especificamente se são todos agricultores ou quantos são agricultores, mesmo que a maioria seja agricultor. Vejamos:
População atingida pelas UHEs (RS/SC)
Itá – 4.500 famílias
Foz do Chapecó – 3.500 famílias
Machadinho – 2.200 famílias
Barra Grande – 1.500 famílias
Campos Novos – 700 famílias
Monjolinho – 400 famílias
Mais ou menos 12.800 famílias, aproximadamente 60 mil pessoas, num total de 50 municípios atingidos por estas seis obras, somando 728 mil pessoas.
IHU On-Line – Como os agricultores têm enfrentado a questão de viver e trabalhar na terra a partir da construção de hidrelétricas no Estado?
Eduardo Ruppenthal – São várias etapas até este momento. As etapas anteriores são fundamentais para a continuidade de viver e trabalhar no campo. Em todo processo, os atingidos são alijados das decisões centrais, como no caso da possibilidade da não construção da obra. Sendo que são avisados que serão atingidos e, portanto, retirados, aceitando ou não. O único momento de diálogo é nas audiências públicas. Porém, além de muitas vezes realizadas distantes do local de moradia dos atingidos, é uma arena montada (regras) para que o “discurso do progresso e desenvolvimento” seja vencedor. Para isso, o empreendedor usa de todas as formas de convencimento, político e econômico, principalmente no município e região. Promessas não faltam. Outra característica no processo é a falta de informação por parte dos órgãos competentes, principalmente públicos. Por parte do empreendedor, divulga somente o seu ponto de vista. Os atingidos são obrigados a sair do local a ser inundado. O primeiro passo é a luta pelo direito de ser reconhecido como atingido. Existe violação, pois não há reconhecimento de vários direitos. E um deles é o acesso à terra. E isso é uma etapa fundamental para ter força proporcional nas negociações com o empreendedor. Pois se negociar sozinho, essa negociação é dificultada, se reconhecida, ainda mais quando não se tem a posse da terra, sendo que nesta região ainda existem muitos meeiros ou parceiros. Por isso da importância da atuação coletiva em movimentos sociais, como no caso do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que surgiu nesta região na década de 1980.
Os agricultores
No caso dos agricultores, especificamente na Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai, por sua característica geográfica, formada por vales, a agricultura possui características peculiares, principalmente na produção. Na região da minha pesquisa, a hidrelétrica de Barra Grande, os atingidos praticavam a “agricultura do nativo”, assim chamada na região, que utiliza muito a coivara (roçada e queimada). Ao mesmo tempo em que é da subsistência da família, cultivos para a alimentação, o excedente é vendido. Sendo que neste regime agrícola se produz muito, de forma orgânica, com sementes próprias e tração quase sempre animal. O deslocamento das famílias atingidas para áreas com características diferentes (geografia, solo, clima etc.) faz com que haja mudança na produção agrícola, sendo que novos cultivos são introduzidos, principalmente soja e milho, demandada pelo mercado. Assim, há também o uso de insumos químicos, agrotóxicos, compra de sementes e mecanização. Sendo que é necessário ajuda técnica e capacidade de conseguir administrar a nova propriedade rural, já que o crédito é disponibilizado e ocorre o consequente endividamento. Muitas vezes, existe o abandono do campo e a família vai se instalar na área urbana, em local ou cidades maiores. O subemprego é o destino da maioria dos trabalhadores e trabalhadoras.
IHU On-Line – Quais as consequências que as hidrelétricas estão provocando para a produção agrí¬cola do Rio Grande do Sul?
Eduardo Ruppenthal – Dificilmente tem como avaliar isso. Ainda mais em termos de produção agrícola. Mas, em geral, contribui para a desterritorialização de comunidades rurais, sendo que uma das consequências é o êxodo rural. E quase sempre, mudança de modelo agrícola, passando da agricultura do nativo para a agricultura convencional.
IHU On-Line – Que alternativas o Brasil poderia oferecer às hidrelétricas para a produção de energia limpa e suficiente? Que outras fontes poderiam ser apontadas aqui?
Eduardo Ruppenthal – Se tivessem interesse mesmo, tanto sob a perspectiva social como ambiental, haveria medidas que poderiam ser imediatas e enfrentariam as crises financeiras, climática e energética. A descentralização das fontes de produção de energia é fundamental para constituir um novo modelo de matriz energética. Falo aqui de energias renováveis, alternativas locais, descentralizadas e na mão das comunidades. E necessariamente serão muito diferentes conforme as condições de cada localidade e região geográfica do país. Mas cito:
• Temos enorme potencial para as energias eólica e solar. O Brasil é um país solar, 280 dias por ano de sol. Energia solar para a eletricidade, como também aquecimento da água nas indústrias e residências substituindo o chuveiro elétrico (não existe nenhum país do mundo com tanta gente tomando banho quente com chuveiro elétrico como no Brasil). Se fossem instalados painéis solares em um quarto da área do reservatório de Itaipu, seria possível produzir tanta energia quanto a Usina de Itaipu produz.
• Moratória às grandes hidrelétricas. É preciso realizar um estudo detalhado das bacias hidrográficas brasileiras a ser elaborado por pesquisadores das universidades brasileiras, em um projeto para a bacia Amazônica livre de hidrelétricas.
• A repontecialização das já existentes tem um custo muito menor do que construir novas hidrelétricas. Estudos indicam que poderiam aumentar em 30% a atual energia produzida. Mas, atualmente, isso não é de interesse dos governos e muitos menos das empreiteiras, as grandes interessadas.
• Conservação da energia nas linhas de transmissão. Perdemos 15% da energia, enquanto o Japão reduziu para 1%.
• A produção de agrocombustíveis, mas no quadro da agricultura familiar, rural e orgânica, e não uma produção em grandes indústrias. E autonomia para consumo local.
• Outras fontes são: biomassa (bagaço de cana ou outro subproduto vegetal no caso de outras culturas) como combustível para usinas termelétricas, além de ainda aproveitar o calor gerado para outras aplicações industriais dentro da usina; biogás, o qual contém metano, pode ser utilizado diretamente para queima ou indiretamente, alimentando geradores de energia elétrica.
• Acesso universal e utilizar a cobrança social do uso da água e energia, aumentando a tarifa para as grandes indústrias consumidoras.
• Fim do Programa Nuclear Brasileiro para a produção de energia elétrica.
• Reestatização do setor elétrico.
Isso é uma grande inverdade propagandeada pelo setor elétrico. Segundo um dos maiores especialistas da área no Brasil, Célio Bermann (várias entrevistas e artigos publicados pela IHU On-Line), professor de pós-graduação em Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, a energia hidrelétrica não é limpa e nem barata (http://bit.ly/bJNACA). Ele cita uma pesquisa que mediu e estipulou as emissões de quatro usinas hidrelétricas da Amazônia, transformando-as em vilãs do aquecimento global. De acordo com os números, todas as quatro usinas pesquisadas emitem mais gases de efeito estufa (GEE) do que termelétricas de mesma potência. Segundo Bermann, estes estudos mostraram que Balbina , Tucuruí e Samuel , as três maiores hidrelétricas construídas na região amazônica até agora, emitem gases de efeito estufa mais ou menos na mesma proporção que usinas a carvão mineral. Para ele, isso pode parecer uma surpresa, mas explica que nos primeiros dez anos de operação de uma usina da Amazônia, a matéria orgânica, a mata, apodrece porque a água a deixa encoberta permanentemente. E o processo de apodrecimento é muito forte, acidifica a água e emite metano, que é um gás 21 vezes mais forte que o gás carbônico, principal gás do efeito estufa.
“Isso é conhecido pela ciência, mas não é considerado porque não é de interesse de quem concebe essas usinas. O que interessa é a grande quantidade de dinheiro que vai ser repassado para as empresas construtoras de barragens, turbinas e geradores. O restante, o problema ambiental, as populações que serão expulsas, a cultura indígena que está sendo desconsiderada, isso não entra na conta”, afirma Bermann, 2010
(Ecodebate, 09/03/2011) Entrevista realizada por Graziela Wolfart, publicada pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Só não tendi direito uma coisa, fazer agricultura do nativo com queimada das encostas dos morros é orgânico?