Eventos extremos da natureza: Represas evidenciam que é preciso ter pressa, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] É inacreditável e ameaçadora a lentidão com que reage – quando reage – o poder público, no Brasil, diante de fenômenos rápida e progressivamente mais frequentes e mais intensos, como têm sido os “desastres naturais” provocados por chuvas volumosas, em curto espaço de tempo – abalando estruturas rodoviárias (pontes, aterros, pistas, barrancos) e, cada vez mais, estruturas urbanas. Está mais do que evidente que essas estruturas mais antigas não foram calculadas para suportar o peso, a pressão, o volume, a rapidez com que chega a água.
Da mesma forma, não se consegue reagir adequadamente aos fantásticos volumes de água que se acumulam nas cidades e não conseguem vazão suficiente em rios e canais estreitados, canalizados, assoreados. Piscinões não suprem os espaços que se tornam necessários pela impermeabilização do solo urbano e pelas redes de drenagem insuficientes e entupidas.
Para constatar a lentidão e/ou anomia do poder público basta lembrar o que foi relatado há poucos dias (4/2) pelo Portal do Meio Ambiente: tramitam pelo Senado, alguns deles há anos, 48 projetos de lei que tratam de “formas para prevenir mortes e prejuízos causados por eventos extremos da natureza”. Nenhum deles está perto de discussão final e aprovação. Nem mesmo o que torna obrigatória a realização de estudos geológicos, geotécnicos e topográficos em encostas de morros ou áreas sujeitas a inundação, apresentado pelo falecido senador Romeu Tuma. Se já existisse ou fosse cumprido, teria evitado centenas de mortes nas serras do Rio de Janeiro e em várias áreas de São Paulo, Minas e outros Estados. Este jornal também noticiou (7/2) que há 170 anos a cidade de São Paulo tem projetos para evitar inundações.
Nas últimas semanas, a Austrália deu exemplos de como a competência e a prevenção minimizam danos desse tipo. Na inundação da área de Brisbane, que atingiu 200 mil casas, o número de mortos foi reduzido a poucas pessoas, com os avisos prévios e a retirada de moradores. Logo em seguida, no mais violento ciclone em 92 anos, com ventos superiores a 300 quilômetros por hora, 10 mil pessoas foram evacuadas a tempo de Mission Beach, em Queensland, sem um morto sequer. E não é só. A conta da destruição de 30 mil casas será dividida entre os australianos de maior renda (mais de US$ 50 mil anuais), que pagarão um imposto de 0,5%. A arrecadação prevista de US$ 1,8 bilhão cobrirá 40% do prejuízo estimado (Estado, 28/1).
A Grande São Paulo e adjacências deveriam estar muito atentas à situação que se esboça na área de represas e barragens. O Departamento Nacional de Produção Mineral interditou a empresa mineradora responsável pela barragem que se rompeu em Analândia e carregou pontes no Rio Corumbataí e trechos de rodovias – além de obrigar Rio Claro e Piracicaba a suspenderem a captação de água nesse manancial. Em Franco da Rocha, a abertura das comportas de uma barragem tornou-se inevitável, diante da ameaça de rompimento, quando em duas horas a entrada de água passou de 15 metros cúbicos por segundo para 140 metros cúbicos por segundo e levou o reservatório a 97% de sua capacidade ocupada (Folha de S.Paulo, 14/1). A cidade de Franco da Rocha foi inundada. Também a Represa Jaguari-Jacareí teve de abrir comportas quando a vazão que ali chega passou rapidamente de 0,4 para 40 metros cúbicos por segundo. Vários bairros foram alagados. A Represa Itupararanga, com as comportas abertas, inundou partes de Sorocaba e Votorantim. E tudo isso compõe um quadro em que as chuvas previstas para janeiro na região (220 milímetros) chegaram a 660 milímetros (em janeiro de 2010, o índice de 461 milímetros já fora o maior em 77 anos), segundo a Sabesp (29/1).
O desfecho desastroso dos “eventos extremos” poderia perfeitamente ser evitado. O professor Luiz F. Vaz, do Instituto de Geociências da Unicamp, lembra, neste jornal (24/1), que estudos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas e do Instituto Geológico há mais de 20 anos já calcularam o volume de chuva acumulada que deflagra deslizamentos, e que pode ser transmitido a tempo aos sistemas de defesa civil. Cidades que os usam têm evitado males maiores. Estudos das Universidades de British Columbia, de Hamburgo e de Utrecht, além do US Geological Survey, já criaram um primeiro mapeamento da permeabilidade do solo, capaz de trabalhar a até cem metros de profundidade (antes iam a um ou dois metros) e de identificar pontos suscetíveis de deslizamentos.
Outros estudos demonstram que, embora obras desde a década de 80 tenham rebaixado o leito do Rio Tietê, implantado várzeas e construído piscinões, aumentado a profundidade e a largura, ao custo de R$ 2 bilhões, sua capacidade de receber água (vazão de até 1.100 m3/segundo) ainda é bem inferior a vazões frequentes na época de chuvas intensas, que podem chegar a 1.750 m3/segundo. Só 50 dos 134 piscinões previstos foram concluídos. Sem falar que é quase impossível controlar o volume de sedimentos carreados por grande parte dos 70 rios, córregos e afluentes que estão sob o asfalto. Não bastasse, pesquisadores do Instituto de Biociências da USP acabam de demonstrar que a água que abastece 4,5 milhões de pessoas na Grande São Paulo, proveniente das Represas Billings e Guarapiranga, está contaminada por metais (cobre, cádmio, cromo, chumbo, níquel) em volume até 30 vezes superior ao máximo admitido. Riscos para a saúde. Não espanta que pesquisa do Ibope (Estado, 20/1) diga que 51% dos paulistanos se sintam muito inseguros na cidade e gostariam de mudar-se; só 15% se sentem seguros.
O poder público precisa dar-se conta da inevitabilidade dos “eventos extremos”, de sua intensidade progressiva, da necessidade urgentíssima de rever padrões de construção, de mapear todas as áreas de risco e de ter sistemas capazes de prevenir a tempo. É o mínimo.
Washington Novaes é jornalista.
Artigo originalmente em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 14/02/2011
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