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Notícia

Associação Brasileira de Antropologia (ABA): Nota da CAI sobre a UHE Belo Monte

A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem novamente a público expressar a sua profunda preocupação quanto a forma como vem sendo encaminhada a implantação da projetada hidroelétrica de Belo Monte, contrariando estudos técnicos e procedimentos legais estabelecidos.

Em nota emitida em outubro de 2009, chamávamos a atenção para:

1 – a conclusão de estudos realizados por uma Comissão de Especialistas, alertando que os impactos sobre os povos indígenas da região não se limitavam de maneira alguma a chamada “área diretamente afetada”, mas podem atingir seriamente os recursos ambientais e as condições de vida e bem estar de outras terras indígenas, situadas fora daquela faixa estrita. Nas terras indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande/Maia, Juruna Km17, Apyterewa, Araweté, Koatinemo, Kararaô, Arara, Cachoeira Seca e Trincheira Bacajá habitam diversas coletividades cujos modos de vida e culturas poderão receber impactos negativos, sem mencionar indígenas que estão nas cidades e os índios isolados. Até aquele momento – e pior até hoje! – sequer tais impactos estão adequadamente dimensionados.

2 – estudos técnicos conduzidos por especialistas da própria FUNAI resultaram em um parecer que atrelava a viabilidade da obra ao cumprimento, entre outras, de três condicionantes básicas: a) que se defina uma vazão mínima (“hidrograma ecológico”) que garanta a sobrevivência dos peixes e quelônios e a navegabilidade das embarcações dos povos indígenas que ali vivem; 2) que sejam apresentados estudos sobre os impactos previstos no Rio Bacajá, na beira do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente sofrerá graves alterações (a serem melhor analisadas); 3) que sejam estabelecidas garantias efetivas de que os impactos decorrentes da pressão antrópica sobre as terras indígenas serão devidamente controlados (vide Parecer Técnico n° 21 – Análise do Componente Indígena dos Estudos de Impacto Ambiental, de 30 de setembro de 2009).

3 – segundo o documento acima serão atraídos para a região pelo menos 96.000 pessoas, o que agravará a pressão sobre os recursos naturais das Terras Indígenas (TIs) – que já é critica na região por conta de outras obras previstas, como a pavimentação da Transamazônica BR-163 e a construção da linha de transmissão de Tucuruí a Jurupari. O aumento populacional que o empreendimento trará afetará também as comunidades indígenas porque vai incentivar um consequente aumento da pesca e caça ilegal, da exploração madeireira e garimpeira, de invasão às TIs e de transmissão de doenças.

No ano que se seguiu surgiram novas e importantes manifestações no mesmo sentido que propugnávamos, estabelecendo novas condicionantes e insistindo nas recomendações sobre a oitiva dos indígenas e no cumprimento de todas as disposições legais.

Em 01 de fevereiro de 2010, o Presidente do IBAMA emitiu uma licença ambiental parcial, condicionada ao cumprimento de 40 condicionantes, dentre as quais a apresentação de manifestação da FUNAI, atestando a “aprovação dos programas voltados aos indígenas e demais condições elencadas no Parecer Técnico nº 21/CMAM/CGPIMAFUNAI” (Licença Prévia IBAMA 342/2010, item 2.28). Apesar dessas recomendações, até o presente momento não se configura o atendimento destas condicionantes, nem a apresentação de programas específicos voltados para a salvaguarda das condições de vida e bem estar dos indígenas.

Em abril de 2010, a Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Ambientais/Plataforma DHESCA, observou que “ o projeto atual da usina de Belo Monte contém graves falhas e impactos irreversíveis sobre a população que vive às margens do rio Xingu, particularmente os ribeirinhos e indígenas. A mais grave violação aos direitos humanos detectada durante a Missão foi a não-realização das Oitivas Indígenas, obrigatórias pela legislação brasileira e pela Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2002 (…). Apesar dos milhares de indígenas e 24 grupos étnicos da Bacia do Xingu afirmarem publicamente que não foram, em nenhum momento, ouvidos durante o licenciamento de Belo Monte, a FUNAI atestou previamente a viabilidade da usina hidrelétrica mesmo havendo necessidade de estudos complementares, que poderiam vir a concluir o contrário e insiste que estes grupos teriam sido ouvidos. O direito constitucional de realização de Oitivas Indígenas foi sumariamente violado” (p.2).

Em abril de 2010, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública, argüindo a falta de regulamentação do artigo 176 da Constituição Federal: “§ 1º – A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.” (Constituição Brasileira, Art 176). Em direção semelhante há uma outra Ação Pública – que denunciava “irregularidades graves na emissão da licença prévia”, constatadas no Parecer Técnico emitido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis / IBAMA (nº 114/2009 COHID/CGENE/DILIC/IBAMA. 23/11/2009), dentre as quais a ausência de análises aprofundadas das “questões indígenas” – aguardando ambas seu julgamento na 9ª. Vara da Justiça Federal no Estado do Pará.

Em 15 de setembro de 2010, o Relator Especial da Organização das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos Povos Indígenas, James Anaya, observou que “dada a magnitude Associação do projeto Belo Monte e seus potenciais efeitos sobre as populações indígenas, é necessária a realização de consulta adequada a estes povos para obter um consenso sobre todos os aspectos que os atingem” (Human Rights Council Fifteenth Session. Report by the Special Rapporteur on the situation of human rights and fundamental freedoms of indigenous people, James Anaya, A/HRC/15/37/Add.1, p.35, parágrafo 53).

Na nota que emitimos em 2009, já havíamos registrado a manifestação do cacique Raoni em 14/10/2009, que exigia a presença de autoridades para informar e discutir o projeto, evidenciando que o imprescindível diálogo e interlocução sobre o assunto havia sido inteiramente insuficiente. Registramos também a manifestação de repúdio das lideranças Kayapó, em 26/10/2009, ao posicionamento da FUNAI, convocando para a realização de uma grande assembléia nas cabeceiras do rio Xingu.

Em 03 de dezembro de 2010, durante o Encontro Ciências Sociais e Barragens, realizado na Universidade Federal do Pará, em Belém, caciques e lideranças dos Povos Indígenas Arara e Juruna da Volta Grande do Xingu, Kayapó Metuktire, Txukarramãe do Parque Indígena do Xingu e Gavião da Montanha divulgaram uma nota pública reafirmando a posição contrária à construção de Belo Monte e solicitando ao Presidente da República do Brasil respeito pelos Povos Indígenas e pelas leis brasileiras que os amparam. Josinei Arara, presente no Encontro, ratificou a disposição do seu Povo para ir à guerra ou à morte para impedir esta barragem. Nesta ocasião, o Cacique Raoni pediu que em nome da paz não seja construída a barragem de Belo Monte.

Em 20 de dezembro de 2010, em vídeo gravado, José Carlos e Josinei Arara informaram que jamais receberam visita da FUNAI, para falar ou esclarecer sobre as condicionantes indígenas incluídas na Licença Prévia de Belo Monte (disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KoDm3SHeEys). Igualmente, o líder Ozimar Pereira, Juruna, afirmou que não houve qualquer ação relativa à fiscalização e à ampliação da Terra Indígena Paquiçamba. Ambos ratificam a falta de conhecimento de ações relativas ao cumprimento das condicionantes e reiteram a absoluta falta de participação dos indígenas nos processos relativos ao licenciamento da obra.

Em 11 de janeiro de 2011 a FUNAI, em cumprimento de sua missão de proteção aos índios isolados, veio a emitir portaria de interdição de uma área, denominada Ituna/Itatá, entre os rios Xingu e Bacajá, a 50 km da área do projeto da Usina Hidrelétrica Belo Monte. Lá foram confirmadas notícias sobre a presença de índios sem contatos regulares e pacíficos com os regionais, bem como sem a proteção de equipes técnicas da FUNAI. O que evidencia claramente o grau de desconhecimento das autoridades (e inclusive dos organismos técnicos) sobre a região e confere as iniciativas de tentativas de aceleração do empreendimento um caráter particularmente dramático.

Poucos dias depois, no entanto, o IBAMA, através de um ato administrativo aparentemente rotineiro, veio a conceder permissão para o desmatamento de 238, 1 hectares destinados à instalação do canteiro de obras, de alojamentos de trabalhadores e abertura de estradas (Autorização de Supressão de Vegetação nº 501/2011).

Em 20 de janeiro de 2011, a FUNAI, em lacônicos dois parágrafos, afirmou não haver “óbice para emissão da licença Instalação-LI das obras iniciais do canteiro de obras da UHE Belo Monte, considerando a garantia de cumprimento das condicionantes”. Tal pudica ressalva, aqui grifada, vem a tomar uma outra forma no parágrafo seguinte. Aí o IBAMA, caracterizado como “órgão licenciador”, é solicitado a colaborar com a FUNAI nas “ações de comunicação e proteção da Terra Indígena Paquiçamba, observada a situação de vulnerabilidade que esta poderá ser submetida” (Ofício nº013/2011/GAB-FUNAI). Que extraordinária delicadeza para lembrar que A T.I. Paquiçamba está situada no limite da área de instalação do mencionado canteiro!

Em 26 de janeiro de 2011, o presidente substituto do IBAMA concedeu a Licença de Instalação (nº770/2011), autorizando a instalação do canteiro, alojamentos para trabalhadores, abertura de estradas e outras obras de infra-estrutura da construção, novamente acompanhada de condicionantes. E, mais grave, apoiado na inexistência de “óbice” da FUNAI, não faz qualquer menção específica às condicionantes referentes aos Povos Indígenas.

Em 27 de janeiro de 2011, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará ajuizou ação civil pública em que pede a suspensão imediata da licença, acima mencionada, para instalação dos canteiros de obras da hidrelétrica de Belo Monte. Para o MPF, a licença é totalmente ilegal porque não foram atendidas pré-condições estabelecidas pelo próprio IBAMA para o licenciamento do projeto, incluindo a regularização fundiária de áreas afetadas e programas de apoio a indígenas. (Processo nº 968-19.2011.4.01.3900 – 9ª. Vara Federal em Belém).

A Norte Energia, consórcio responsável pela construção da UHE, solicitou um empréstimo-ponte de R$ 1,087 bilhão ao BNDES. Em esclarecimento ao Ministério Público Federal (MPF) o BNDES reiterou seu posicionamento de não financiar “qualquer intervenção no sítio em que está prevista a construção da usina sem que tenha sido emitida a licença de instalação do empreendimento como um todo”. Os recursos provenientes do BNDES não poderiam portanto serem utilizados senão após o início efetivo das obras (e não da pura instalação do canteiro), exigindo a Licença e Instalação Final, e não aquela de instalação do canteiro (ora concedida pelo IBAMA) (vide site www.amazonia.org.br, 03-02-2011).

Por outro lado a Associação dos Povos Indígenas Juruna do Xingu km 17 – APIJUX KM 17, a Associação do Povo Indígena Arara do Meia – ARIAM, juntamente a dezenas de organizações e associações da sociedade civil, também em 27 de janeiro de 2011, assinaram uma “nota de repúdio” à concessão da Licença de Instalação, na qual responsabilizam “o Governo Brasileiro por qualquer gota de sangue que venha a ser derramada nesta luta”.

Em 28 de janeiro de 2011, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, enviou carta à Presidente do Brasil, denunciando a postura “negligente e desrespeitosa” do Governo brasileiro, a cooptação de indígenas e reafirmando a disposição de lutar ao lado dos Povos Indígenas do Xingu.

A compreensível resistência dos indígenas, que foram até agora desconsiderados enquanto parte do planejamento e do processo decisório, poderá deflagrar conflitos de grande monta, onde a vida dos próprios indígenas e de funcionários governamentais estarão em risco, bem como o patrimônio e a segurança de terceiros poderão ser também duramente atingidos. Novas campanhas difamatórias contra os direitos indígenas poderão alimentar-se de acontecimentos deploráveis que resultam do açodamento, omissão e descumprimento das normas legais cabíveis.

Devemos aqui reiterar dois pontos essenciais desta questão. Primeiro, é fundamental observar que os encaminhamentos e decisões relativas a UHE de Belo Monte estão descumprindo uma disposição legal, a Convenção 169, amplamente acatada no plano internacional e já incorporada pela legislação brasileira – a de que as populações afetadas sejam adequadamente informadas sobre o empreendimento e todas as suas conseqüências, exigindo-se que sejam antecipadamente consultadas e segundo procedimentos legítimos e probos. Segundo, as condicionantes estabelecidas pelos pareceres técnicos da FUNAI e do próprio IBAMA precisam ser rigorosa e imediatamente atendidos, antes que o empreendimento venha a passar a fases mais avançadas de viabilização. Isto deverá ser verificado por avaliadores autônomos.

Cabe voltar assim a alertar a opinião pública e as autoridades máximas do governo brasileiro para o descaso e a precipitação com que tem sido conduzida a aprovação e implementação do projeto, dentro de uma estratégia equivocada e perigosa de criar supostos “fatos consumados”, sem levar em conta os dispositivos legais e as ponderações técnicas. A prosseguir desta maneira o empreendimento poderá trazer consequências ecológicas e culturais nefastas e irreversíveis, configurando para o Governo Federal uma situação social explosiva e de difícil controle. Além de, no cenário internacional, colocar o país na contra mão do respeito aos direitos das populações indígenas, como também de outros segmentos afetados igualmente por grandes projetos.

Rio de Janeiro, 05 de fevereiro de 2011.

João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI/ABA

Fonte: ABA – Associação Brasileira de Antropologia

EcoDebate, 09/02/2011


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