Multas não impedem crimes ambientais, artigo de Maurício Gomide Martins
[EcoDebate] Os burocratas do Brasil, como sempre, continuam a malhar em ferro frio para as situações ecológicas que pedem rapidez e toda atenção. De outro lado, as empresas destrutivas do ganha-ganha que só agem na ilegalidade, por serem muito lucrativas, continuam a sorrir de satisfação e levam uma vida mansa e despreocupada quanto às conseqüências legais de seus atos que, na prática, é nenhuma.
Um célebre político mineiro, falando sobre a eficiência na administração pública, disse que “não basta despachar o papel; é preciso resolver a questão”. Pura teoria, para enganar eleitores.
A estrutura burocrática governamental se assenta no princípio, já consagrado e sedimentado no subconsciente do servidor, em todos os níveis, de que o importante em suas funções é justamente o de despachar o papel. Não importa que haja na natureza plantas com folhas de cor amarela ou vermelha. Se a instrução normativa, gerada com base em lei e vinda de nível hierárquico superior, diz que todas as folhas devem ser verdes, esse papel recebe uma carimbada inapelável de “negado”.
No exercício da função pública, geralmente a capacidade intelectual se atrofia pelo não uso. Pensar? Seria um sacrilégio, uma grave insubordinação. Pensar para quê? A lei diz tudo sobre um determinado assunto! A gênese desse estado mental se parece muito com os mecanismos de formação dogmática na crença religiosa: começa com a renúncia da aptidão mental.
Nesse oceano burocrático, o “certo” é não assumir responsabilidade alguma, exceto quando a bolada de dinheiro vivo da corrupção seduz os olhos e os bolsos dos gananciosos. Dependendo do volume, até ministros se deixam apaixonar pelo metal sonante. Mas isso é considerado um “desvio de comportamento” e ocorre apenas “eventualmente, no correr de cada semana”. Realmente, é um desvio de padrão.
Mas, em condições normais entre os subalternos, a consciência dorme tranqüila em berço esplêndido, e os carimbos fazem a sua dança formal e legal. Isso garante a estabilidade no emprego e, involuntariamente, a consolidação burocrática do trabalho inútil e improdutivo. Submissão à lei é a expressão chave para se compreender a situação de fato e de espírito vigente no Brasil. A lei é soberana e é quem manda. Lei é lei, e pronto. Em outra ocasião, falaremos especificamente sobre a lei, essa caixinha de segredos.
Os magistrados despacham com vistas à lei, não à justiça, à consciência, à lógica. Lei mandou? Cumpra-se. Esses augustos servidores públicos servem à sua deusa vendada, tranquilamente, e vão para o repouso do lar com a consciência em paz.
As leis em geral prevêem uma multa a ser aplicada pelo agente fiscalizador para a entidade que agir em desacordo com elas. Numa dessas ações, registrando leis, parágrafos, itens, artigos, alíneas letras e demais filigranas, a multa é lavrada em papel adequado e entregue contra recibo ao responsável pela infração. Geralmente são muito elevadas, fora da capacidade de pagamento do infrator. Pronto. O Poder Público cumpriu sua parte e se deu por satisfeito. Não resolveu o problema, mas cumpriu a lei, despachou o papel e lavrou a multa.
O agente público sabe que essa penalidade jamais será paga, mas isso não importa. Cumpriu a lei, que manda punir com o instrumento adequado. Sua consciência está em paz consigo e perante seu chefe de repartição.
A empresa penalizada, quando da formação da sua estrutura, prevenida, já se munira da defesa adequada e formou um departamento jurídico a quem é entregue o documento do ônus. É aquela história… Entrou na área jurídica, não sai nunca mais. A função do causídico da empresa compreende dois objetivos: Contestar, obtendo o cancelamento do gravame ou sua redução para valor ridículo, e – o mais importante – procrastinar ”ad perpetuam” o encerramento do processo.
O governo também tem seu departamento jurídico, e as partes vão se embaraçar numa maçaroca formada, perante os tribunais, pelas vielas tortuosas, espíritos virtuais e interpretações malévolas das leis. Esse é um processo trabalhoso, demorado, com mil possibilidades de recursos de toda ordem, dentro de um segmento de tempo cósmico. Até que um dia, o processo simplesmente some no meio de outros milhões de casos pendentes. Pronto. Eis o efeito da multa.
Acontece que o punido, tomando as medidas legais que a situação exige, está livre para continuar a agir predatória, ilegal e lucrativamente, sem ser incomodado. O máximo que lhe pode acontecer é receber nova multa. Ora, tão inofensiva e sem efeito prático quanto a primeira. Pode até colecionar multas. É a mesma coisa. O importante para ele é não ser obstado em sua atividade lucrativa. Continua a destruir florestas, envenenar rios, caçar animais silvestres, derramar petróleo nos mares, e milhares de eventos criminosos. Enquanto isso, a Natureza vai sendo dilapidada, empobrecida e ficando cada vez mais anêmica.
Resumo da história: o Poder Público cumpre seu dever de zelar pela preservação do planeta, o criminoso continua a destruir e poluir, a sociedade é informada das ações “saneadoras e moralizadoras” do governo. E o ecossistema continua a ser ignorado.
Não importa se a lei é imoral ou ilegítima. Sendo lei, ela passa a ocupar o pedestal supremo, situação que a torna sacrossanta. Mas um fato está acima de qualquer convenção social: a reação da Natureza. Ela desconhece leis, acordos, ética, compaixão, justiça, e todas as normas humanas. Ela também cumpre leis supremas que não foram elaboradas por humanos, as leis da Natureza. Essas, sim, vêm de uma força sobrenatural e as penalidades são severas, imediatas e irreversíveis.
Temos notícias de aplicação de multas todos os dias. Isso é fartamente noticiado. Tornou-se rotina. Nunca vimos informação de que tais gravames tenham sido pagos. Talvez estejamos mal informados a respeito.
Nesses casos de atividades prejudiciais para o meio ambiente, se o governo agisse rigorosamente, com ações efetivas e sem observância dos melindres da lei, tais procedimentos teriam resultado imediato e exemplar.
Invertendo as posições, ficaria a cargo dos punidos o recurso de apelar para as leis e suas complicações intermináveis. O ecossistema agradeceria imensamente.
Maurício Gomide Martins, 82 anos, ambientalista e articulista do EcoDebate, residente em Belo Horizonte(MG), depois de aposentado como auditor do Banco do Brasil, já escreveu três livros. Um de crônicas chamado “Crônicas Ezkizitaz”, onde perfila questões diversas sob uma óptica filosófica. O outro, intitulado “Nas Pegadas da Vida”, é um ensaio que constrói uma conjectura sobre a identidade da Vida. E o último, chamado “Agora ou Nunca Mais”, sob o gênero “romance de tese”, onde aborda a questão ambiental sob uma visão extremamente real e indica o único caminho a seguir para a salvação da humanidade.
Nota 1: sobre o mesmo tema leiam ainda: No topo da lista nacional dos piores arrecadadores Ibama só recebe por 0,2% das multas
EcoDebate, 06/01/2011
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