Nossa política de mobilidade tem como base a exclusão social. Entrevista com Nazareno Stanislau Affonso
Quando analisa a política de mobilidade no Brasil, o diretor do Instituto RUAVIVA diz que estamos na contramão da história. E pergunta: “De quem é a responsabilidade de uma morte causada por um veículo que anda a mais de 120 km/hora? Eu diria que é de quem autorizou e de quem fabricou, e não do motorista”.
Confira a entrevista.
Cinco horas da tarde no centro de São Paulo. Para a maioria dos brasileiros, imaginar essa situação significa pensar na imagem de ruas completamente congestionadas, com velocidade média de 18 km/hora na Marginal Tietê, por exemplo. A maior cidade brasileira já virou sinônimo de caos no trânsito. E o problema já é uma realidade em todas as grandes cidades do país, e tão incômodo e estressante quanto em São Paulo. Enquanto isso, o Brasil investe quatro bilhões de reais para que os bancos possam financiar a produção de mais carros. “Para mudar essa cultura, primeiro é preciso fazer uma mudança estrutural no conceito de mobilidade”, diz Nazareno Stanislau Affonso, que nos concedeu a entrevista a seguir, por telefone, onde tratou da questão da cultura do automóvel no Brasil.
Nazareno Stanislau Affonso é coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (MTD) e do escritório da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) de Brasília. Também é diretor do Instituto RUAVIVA e é integrante do Conselho das Cidades e da Coordenação do Fórum Nacional da Reforma Urbana.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Brasil demorou 50 anos para produzir 50 milhões de veículos e deverá fabricar outros 50 milhões nos próximos 15 anos, segundo a Anfavea. Qual é o significado para a vida nas cidades?
Nazareno Stanislau Affonso – Significa a concretização de uma política de mobilidade absolutamente arcaica, antiambiental, que ameaça o ser humano. O problema é que não há recursos das cidades para comportar esse aumento de frota. Se estampássemos hoje a frota de veículos como está, teríamos que investir maciçamente para que as pessoas que se deslocam com carro continuassem a fazer isso com o mínimo de qualidade. Essa política é, do ponto de vista ambiental, completamente suicida. Já do ponto de vista econômico, essa política é predatória, porque retira investimentos de um sistema que é para todos, para atender interesses de 30% das viagens no Brasil. Quem mora hoje nas cidades médias e grandes já está vivendo uma mobilidade insuportável para quem tem carro. Quem não tem carro, o problema é ainda maior, porque você aumenta o tempo de viagem, aumenta o custo do transporte. Os dados que temos, de uma pesquisa feita há mais de dez anos, mostram que o aumento do congestionamento aumenta a tarifa em mais de 15%. Nossa política de mobilidade tem como base a exclusão social. Além disso, há o genocídio no trânsito. Isso não ocorre tanto pelo crescimento da frota, mas pela liberalidade aos crimes de trânsito.
IHU On-Line – A partir de que momento o país optou pela mobilidade em quatro rodas e por que razões?
Nazareno Stanislau Affonso – Ele opta no governo Juscelino Kubitschek, quando vem aquela ideia de substituição e importação, as montadoras foram trazidas para o Brasil e criou-se aquele vício de desenvolvimento nacional, dando a ilusão de que cada brasileiro teria o seu carro. Nossa política é uma cópia do modelo estadunidense que tem como base a dispersão das cidades, construindo cada vez mais loteamentos distantes, aumentando o custo urbano. Um modelo diferente da Europa que, mesmo dependente do automóvel, as cidades são mais concentradas, têm políticas urbanas. Esse é o nosso problema: nós copiamos o modelo de mobilidade que foi planejado pelas montadoras. A General Motors planejou o fim do transporte público na década de 1920, montou uma política de destruição e vai quebrando o transporte público. Aqui fizemos algo parecido quando destruímos os bondes para liberar espaço nas vias para os automóveis e tirar uma opção de transporte público de qualidade.
IHU On-Line – A rua se transformou no espaço por excelência dos carros e as pessoas foram expulsas da rua. Sempre foi assim?
Nazareno Stanislau Affonso – Não. Muitas cidades não tinham nem divisão entre rua e calçada porque os veículos, cavalos e outros não eram elementos de ameaça ao ser humano. Quando você coloca neste espaço um veículo e vai desenvolvendo cada vez mais a velocidade de forma indiscriminada, está incentivando a violência no trânsito, por exemplo, temos algumas cidades brasileiras em que a estrada permite, como velocidade máxima, que um carro avance até 120 km/hora. E os carros são construídos para poderem chegar a 240 km/hora. É raro o carro que não faça, no mínimo, 180 km/hora. De quem é a responsabilidade de uma morte causada por um veículo que anda a mais de 120 km/hora? Eu diria que é de quem autorizou e de quem fabricou, e não do motorista. Então, começamos a ter não um veículo, mas uma arma que é dada ao ser humano para ele poder ameaçar outros. A rua passa a ser um espaço de ameaça constante à vida. Existe uma frase que diz: “Se mede a democracia de um país pela largura de suas calçadas”. O carro começou a “comer” os canteiros centrais e as calçadas, as bicicletas começaram a ser ameaçadas de forma assustadora, assim como os pedestres. Os índices de morte no trânsito são de cem pessoas por dia, e entre 300 e 600 ficam com alguma deficiência. E não há política para restringir essa chacina nas ruas.
IHU On-Line – E como mudar essa cultura?
Nazareno Stanislau Affonso – Para mudar essa cultura, primeiro é preciso fazer uma mudança estrutural no conceito de mobilidade. Antes, nós tínhamos as mobilidades em pedaços, falávamos de trânsito, calçada, bicicleta, de pessoas portadoras de deficiência. Hoje, a política de mobilidade coloca tudo no mesmo saco e, quando se faz isso, começamos a ver a iniquidade de usar um espaço público com extremo favorecimento para o transporte individual. A maior parte das vias é usada pelo automóvel. Se você pega as vias onde passa o ônibus em Porto Alegre, em função das vias exclusivas para transporte público, terá 30%, mas São Paulo não passa de 10%. As medidas para que haja uma mudança estão nas mãos do governo. Em primeiro lugar, precisamos de uma política de estacionamento. Essa palavra é um tabu, porque, para mim, esse deveria ser o primeiro pedágio urbano que qualquer cidade deveria fazer. Deveríamos eliminar estacionamento de carros em qualquer parte da via. Isso tem que ser política pública, o governo tem que dizer onde pode e onde não pode ter estacionamento. Segundo: esse estacionamento tem que gerar recursos para um fundo de transporte público de qualificação de calçadas, ciclovias, faixas e outros tipos de modais.
IHU On-Line – E onde está o excesso?
Nazareno Stanislau Affonso – Está na utilização do sistema viário que não paga estes privilégios. Está na utilização indiscriminada do sistema viário, que, em algumas cidades, os carros invadem calçadas e praças, e não há fiscalização. Para mudar isso, em primeiro lugar tem que haver uma política de estacionamento, taxando os estacionamentos. A segunda política que é fundamental é retirar o transporte público do congestionamento dos automóveis. Isto significa que devem ser construídas vias exclusivas para o transporte público, não só como Porto Alegre já tem. Devem ser feitos o que hoje são chamados de corredores, que ultrapassem os pontos de parada ou, em muitos casos, se tenham duas vias para os ônibus, ao invés de uma só. E, para isso, é preciso retirar do automóvel os privilégios de usar todo o sistema viário e deixar o ônibus no congestionamento. Nas vias existentes, tem que ser limitado o acesso do automóvel, para isso já temos sistemas de controles, como os controles eletrônicos que, se o carro entra, é multado, existem barreiras físicas. Estas vias que têm estacionamento podem servir para aumentar calçadas, para fazer um corredor de ônibus, aí já mudamos a cidade inteira, não para aumentar o sistema viário dos automóveis, mais uma via de rolamento. Esta política vai ampliando a acessibilidade para quem anda de bicicleta. A bicicleta tem autonomia, em cidades planas, de 12 km, e deve se mudar uma cultura dentro das empresas, com banheiros e locais para estacionar. As calçadas devem ser acessíveis para as pessoas portadoras de deficiência. Os veículos de transporte público devem ser de qualidade, e isso já temos a lei, até 2014 todos os ônibus têm que ser acessíveis. Hoje não se pode procurar mais nenhum ônibus que não tenha elevador ou não seja acessível. Temos que mudar o perfil da frota, por exemplo. O governo federal precisa começar a investir em transporte público. Se ele continuar favorecendo a indústria do jeito que faz, controlando o preço da gasolina para ela não aumentar e chegar aos preços reais, o problema só vai aumentar.
IHU On-Line – A crise ecológica pode ser uma oportunidade para se repensar a cultura do automóvel, ou apenas substituiremos a fonte energética de propulsão dos motores. Qual é a sua percepção?
Nazareno Stanislau Affonso – O problema do efeito estufa não se resolve reduzindo a poluição. Efeito estufa é uma coisa, poluição é outra. Então, o combate ao efeito estufa não tem como ser feito sem a redução do uso do automóvel nas cidades. É inevitável que, em dez, quinze anos, o automóvel não ocupe o lugar que tem hoje. Veículos elétricos pequenos, com outro tipo de combustível, andar com produtividade total são coisas que precisamos e, ainda assim, será necessário construir políticas públicas sobre sua circulação em áreas centrais. Não há como escapar de uma política radical sobre o condicionamento do automóvel e até sobre sua fabricação.
IHU On-Line – O senhor avalia que deveríamos ter uma legislação mais rigorosa relacionada à publicidade dos carros?
Nazareno Stanislau Affonso – Essa política hoje é absurda. Para mim, nós tínhamos de ter uma política completamente dura contra qualquer propaganda que incentivasse a violência no trânsito. O governo precisa ter um posicionamento mais duro, pois isso é uma coisa muito simples de se fazer. Quando uma propaganda incentiva a violência no trânsito, a empresa tem que ser multada. O único jeito de controlar é assim, multando. Enquanto tivermos uma comissão que só faz análise, as coisas não vão funcionar. O problema não está nas propagandas de venda de carro, mas sim no governo que disponibilizou quatro bilhões aos bancos para financiarem a produção de veículos.
IHU On-Line – É possível projetar como nos deslocaremos dentro de dez anos?
Nazareno Stanislau Affonso – Ainda é uma incógnita, mas, em dez anos, é possível que as maiores cidades tenham sistemas estruturais. Espero que possamos começar a sonhar com esses sistemas. Temos aí a Copa, e, por isso, vai ser difícil o governo fechar os olhos para a questão. Vai ter que ser transporte público mesmo. Eu tenho esperança que, em dez anos, possamos sonhar em instituir uma política de estacionamento. Para isso, estamos trabalhando para que a sociedade civil se engaje e possamos ter como enfrentar esse problema que foi construído de forma a promover essa política para o automóvel. Até os Estados Unidos já começaram a construir políticas e estruturas para organizar o lugar dos carros nas cidades, e na Europa já há políticas claras de gestão do automóvel. O Brasil ainda está na contramão da história.
(Ecodebate, 21/12/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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