Em função de… artigo de Maurício Gomide Martins
[EcoDebate] É interessante a expressividade da linguagem humana. Além de as palavras mudarem o seu significado, segundo o contexto ou o posicionamento na oração, a própria construção da frase muda o sentido da idéia pensada. Há ainda as expressões ambivalentes e as contraditórias, calcadas em um sentido consensual, sempre – o que é interessante frisar – em função dos interesses dos humanos.
Com respeito a esses últimos conceitos, identificamo-los como os que incorporam uma semântica já consagrada pelos usos e que podem ser distinguidos, mediante uma análise racional, perguntando-se: Em função de quê?
Na técnica investigativa policial, ante um crime e como base para início de um raciocínio, pergunta-se: A quem interessa este crime? Na análise de uma informação ou de uma instrução, deve-se ajustá-la à condicionante em função de, para que se possa absorver e compreender com exatidão a mensagem recebida.
Para melhor esclarecimento dessa situação, vamos construir um desentendimento de comunicação:
— Joaquim, faça o favor de abrir a cortina.
— Mas, Maria, ela já está aberta.
— Não está, não. Ela está fechada. Abra-a.
— Bom, então você quer que a feche. Pronto, está fechada.
— Não, agora está aberta, justo como lhe havia pedido.
O que se pode entender como cortina aberta? Se restringirmos nossa ideação apenas à cortina, não haverá dúvidas. Cortina aberta é quando está na posição estendida, sem formar gomos, cobrindo a visão de algo. Cortina fechada é o contrário: recolhida, sanfonada, deixando o vão à mostra.
No teatro, costuma-se descrever:
“Para começar o espetáculo, abriu-se a cortina e a orquestra apareceu.”
No entendimento restrito, acima informado, poder-se-ia dizer: “…a cortina se fechou e a orquestra apareceu”.
Na expressão de que tratamos, vejamos que na idéia sobre cortina está subentendida a paisagem, o foco de visão, que pode ser a janela, o palco ou uma tela de cinema. Assim, quando Maria diz para abrir a cortina, sua ideação verdadeira é: “… abrir a visão da janela”, (fechando a cortina). No teatro, diz-se: “… a visão da orquestra se abriu”, (com o fechamento da cortina).
Nas considerações acima, queremos dizer que a comunicação de pensamento não é fácil, porque a ideação não leva em conta o fator em função de. Nas expressões citadas, abrir ou fechar a cortina é uma ação subordinada a finalidades diferentes e subjetivas, tais como janela, paisagem, visão, claridade, espetáculo.
Outro exemplo corriqueiro:
— Farmacêutico, você tem ai um remédio bom para gripe?
— Você quer um remédio bom para você ou para a gripe?
A frase foi formada em função do interesse do doente. Isso está subentendido. No campo do ambientalismo, há milhares de frases usuais desse tipo, mentalizadas sempre em função das conveniências humanas, incrustadas na lógica tendenciosa do instinto antropocêntrico. Isso gera argumentações falsas, sem suporte na realidade do nosso mundo.
Verifiquemos uma notícia comum, publicada quase diariamente nos jornais:
“Ontem, na Avenida Pinheiros, um caminhão carregado com 12 toneladas de cimento se desgovernou e bateu contra um ônibus e diversos automóveis. Na violenta ocorrência foram derrubadas diversas árvores do canteiro central, mas ninguém se feriu.”
Se formulada em função dos cuidados para com a Natureza, a redação deveria ser mais ou menos assim:
“… Na violenta ocorrência ninguém se feriu, mas lamentavelmente foram atropeladas e mortas tantas árvores.”
Notícias do cotidiano:
“No Estado do Amazonas, na vila Tal, recentemente construída pelo governo para alojar os operários que vão construir a usina do Rio Jaquará, as formigas estão atacando avidamente a pacífica população, principalmente as crianças, ocasionando sofrimentos e inquietudes.”
“Na África, na região Tal, os elefantes vêm atacando as famílias de colonos que se instalaram em novas fronteiras agrícolas, onde cultivam diversos cereais destinados à sua subsistência.”
Sim, as formigas atacam, os elefantes atacam. O pensamento está construído em função de os interesses egocêntricos dos agentes ativos e destrutivos. Ou seriam, em ambos os casos, os animais humanos que atacaram o habitat das formigas e elefantes, restringindo-lhes seus territórios?
Evidentemente, precisamos pensar também em função de os interesses vivenciais de todas as criaturas do planeta. Precisamos reconhecer que o mundo não é somente dos humanos. Pertence para uso e usufruto, harmoniosamente, de todos os seres viventes. Deixemos de conformar nossas idéias apenas em torno do antropocentrismo. Isso desmerece e descaracteriza nossos méritos intelectuais.
Quando externamos nossos pensamentos ecológicos, devemos situar-nos na posição do todo, do planeta, do meio ambiente, de tal forma que, se os interesses humanos são contrariados, isso se dá por conseqüência de raciocínio correto, sem interferência do instinto da espécie humana. É o exercício da inteligência.
Não nos esqueçamos. Nas comunicações, em geral, há sempre uma condicional implícita: Em função de. Na verdadeira identificação dos interesses legítimos dos fatos está a exatidão da informação recebida.
Maurício Gomide Martins, 82 anos, ambientalista e articulista do EcoDebate, residente em Belo Horizonte(MG), depois de aposentado como auditor do Banco do Brasil, já escreveu três livros. Um de crônicas chamado “Crônicas Ezkizitaz”, onde perfila questões diversas sob uma óptica filosófica. O outro, intitulado “Nas Pegadas da Vida”, é um ensaio que constrói uma conjectura sobre a identidade da Vida. E o último, chamado “Agora ou Nunca Mais”, sob o gênero “romance de tese”, onde aborda a questão ambiental sob uma visão extremamente real e indica o único caminho a seguir para a salvação da humanidade.
EcoDebate, 02/12/2010
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