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A retomada do desenvolvimentismo, entrevista com o economista André Cunha

“Temos de pensar a cara do mundo nos próximos anos e o papel que o Brasil virá a ter, ou seja, desafios velhos estão repostos hoje e isso tem a ver com a nova rotação do mundo”, constata André Cunha, em entrevista concedida à IHU On-Line, concedida por telefone.

Segundo o economista, a ascensão da China e da Índia representa um mercado em potencial para o Brasil, pois, em função do processo de urbanização desses países, a tendência é de que o valor das commodities se mantenha elevado.

Por outro lado, a nova conjuntura geopolítica coloca o país em um dilema: continuar exportando commodities ou investir na industrialização. De acordo com André Cunha, “seria extremamente perverso, para o processo de desenvolvimento do Brasil, o país abrir mão de ter uma estrutura produtiva diversificada e densa. O desafio é preservarmos a indústria brasileira”. Para isso, menciona, “o país não precisa abrir mão das exportações de commodities”.

André Moreira Cunha possui graduação em Ciência Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado e doutorado na mesma área pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Sua dissertação analisou Empresas Transnacionais na Economia Brasileira dos anos 80 e 90. Foi professor visitante na Universidade de Leiden, na Holanda, e docente da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pesquisador associado do Centro de Estudios Brasileños del Instituto Universitario de Investigación Ortega y Gasset, na Espanha.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que modelo de desenvolvimento está em curso no Brasil?

André Moreira Cunha – O Brasil, a partir da crise do modelo nacional-desenvolvimentista dos anos 1980, entrou numa longa trajetória de baixo crescimento, expressa, principalmente, na inflação alta. O que tem marcado o período recente, dos anos 2000, 2004 em diante, é uma retomada do dinamismo, do crescimento econômico acima do que vínhamos crescendo há quase um quarto de século, e uma aceleração deste ritmo de expansão combinada com uma performance em termos de inflação bastante melhor do que a média histórica.

A novidade, comparada ao período do milagre econômico, é que o crescimento vem acompanhado de uma melhoria substantiva na distribuição de renda, que sempre foi o Calcanhar de Aquiles do processo de desenvolvimento brasileiro. A estabilização de preços, a dinâmica de redistribuição por meio de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, o aumento do poder de compra do salário mínimo acima da inflação favoreceram esse cenário. Por isso, diria que o segundo mandato do presidente Lula é um momento onde se permite uma inflexão desenvolvimentista.
Podemos caracterizar a transição do primeiro para o segundo governo Lula como um período de maior conservadorismo, o qual se justificava pela instabilidade da transição. Não gosto de usar a expressão herança maldita, mas, objetivamente, quaisquer variáveis macroeconômicas de desempenho do conjunto da economia do final do período FHC eram ruins: a economia não gerava emprego, os salários estavam crescendo menos do que a inflação, havia muita informalidade no mercado de trabalho, situação fiscal ruim, endividamento crescendo em função das taxas de juros elevadas. Há uma inflexão a partir da virada do primeiro para o segundo mandado. Isso aconteceu num contexto em que a economia internacional apresentava um bom desempenho. Há aí uma mudança na estrutura da economia mundial com a ascensão da China, da Índia, que implicaram em um aumento da demanda por matérias primas. O preço das commodities dispararam a partir de 2002 e teve um ciclo de altas até 2008¸ quando foi interrompido pela crise internacional, mas já retomou seu dinamismo.

Retomada do desenvolvimentismo

A inserção da economia brasileira no segundo mandato do governo Lula é um embrião de uma retomada de um desenvolvimentismo. A síntese que traduz esse processo é o crescimento de incorporação de camadas de menor renda num patamar de maior poder aquisitivo. A recuperação do crédito foi muito importante nesse período. Tínhamos uma relação crédito x PIB, no final do governo FHC, de 25%; hoje este valor está em 50% – ainda é pouco se comparado a outros países, mas é uma recuperação que se deve, em parte, à atuação do Estado. Diria que o Brasil hoje aposta na constituição de um mercado de consumo, na redistribuição de renda, num adensamento das classes médias. Essas ideias se legitimam na crise de 2008, porque, quando veio a crise, o alicerce do mercado interno mais dinâmico segurou a economia brasileira. Diferentemente de outros períodos em que, por qualquer instabilidade externa, o Brasil já desmoronava, dessa vez isso não ocorreu. Isso tem a ver com as melhorias que são anteriores ao governo Lula, mas que foram potencializadas no governo dele.

IHU On-Line – De que políticas econômicas o país precisa para continuar crescendo?

André Moreira Cunha – O Brasil sofreu uma estagnação durante muito tempo e tentou recuperar algum grau de estabilidade macroeconômica, abandonou completamente o horizonte de recuperação a longo prazo. Parte dessa recuperação envolve retomar investimentos de infraestrutura, a capacidade de o setor público investir ainda é muito baixa. Esses são desafios colocados para o próximo mandato. Provavelmente, a presidente eleita irá intensificar o esforço de ampliação da capacidade do Estado investir em infraestrutura e é importante criar possibilidades para que o setor privado também amplie investimento. Durante a campanha, Dilma falava na desonerarão de impostos sobre investimentos. Então, um conjunto amplo de ações deverá ser levado adiante. O governo Dilma tende a ser um governo de continuidade dessa aposta no mercado interno, na redistribuição de renda, na criação de uma base de consumo forte a partir das classes médias, com uma ênfase grande em investimentos.

IHU On-Line – Nesse processo de crescimento, o Brasil ainda precisa continuar se industrializando ou deve investir na exportação de commodities a partir da ascensão da China? As exportações de commodities, hoje, têm um caráter diferente do que tiveram em outros anos?

André Moreira Cunha – Temos de pensar a cara do mundo nos próximos anos e o papel que o Brasil virá a ter, ou seja, desafios velhos estão repostos hoje e isso tem a ver com a nova rotação do mundo. A China espanta a todos pela intensidade com que o seu processo de transformação vem ocorrendo e os efeitos que são produzidos globalmente por esta transformação. Estou entre aqueles que consideram que esse irá durar por alguns anos. Se essa hipótese se traduz, a probabilidade é de que essa dinâmica de manutenção de preços elevados de matérias primas terá oscilações, como de costume, mas com uma tendência de alta porque as transformações em função do processo de urbanização da China e da Índia existirão por um longo período. Provavelmente assistiremos isso por uma geração. Isso nos coloca num dilema: por um lado, de fato, o Brasil pode ter uma complementaridade com a China, porque ela é uma potência na área de agronegócio, na área energética – somos quase que sugados nessa dinâmica como uma economia complementar a este novo centro de expansão que é a China e que, por sua vez, nos deseja não só como fornecedores das matérias primas, mas também como mercado de consumo das suas manufaturas. Por outro lado, essa questão coloca um desafio sob a indústria brasileira. Seria extremamente perverso, para o processo de desenvolvimento do Brasil, o país abrir mão de ter uma estrutura produtiva diversificada e densa. O desafio é o Brasil preservar a indústria brasileira. Dificilmente o país terá condições de concorrer no mercado internacional em escala, preço e, por isso, será preciso encontrar nichos de mercado. Isso não significa que o país deva deixar de lutar para que a indústria possa crescer e se diversificar. A agricultura não criará empregos para todo mundo: plantar soja, exportar minério de ferro não gera emprego para uma população de 200 milhões de pessoas. O país precisa de uma indústria, de um setor de serviços e não precisamos abrir mão das exportações de commodities.

Sustentabilidade

Outro desafio será preservar a biodiversidade, com explorações mais sustentáveis. Esse é um desafio que se coloca para os próximos governos, mas isso não será feito espontaneamente. A tendência é que haja uma valorização do real e o governo terá de adotar algumas estratégias. Alguns diriam que isso é protecionismo, e é justamente disso que se trata. Não pode ser um protecionismo que reproduza erros do passado, que acabem fazendo com que a indústria brasileira se acomode. O empresário tem de estar permanentemente instigado a inovar, investir em melhorias e a possibilidade de perder o seu mercado é um mecanismo que incentiva a busca de modernização. O protecionismo pode produzir um efeito perverso de ineficiência, então, se protege uma indústria artificialmente.

O ambiente de negócios tem de ser melhorado. Segundo levantamento do Banco Mundial, o Brasil tem um sistema burocrático para abrir e fechar empresas, e uma performance negativa: é um país que trabalha contra o empreendedorismo. Então, o Estado tem muito a avançar neste aspecto. Temos de trabalhar para reduzir a taxa de juros. Isso será uma obsessão da nova presidente. O discurso dela é de que não será feito um ajuste fiscal radical porque isso compromete o bom andamento do serviço público. Critico colegas que defendem o ajuste fiscal porque é preciso investir em educação, em segurança, saúde e para isso é preciso gastar. Houve um aumento de gastos que vinham sendo baixo nos últimos anos. Entretanto, não dá para manter esse ritmo de os gastos estarem crescendo mais do que a renda do país. Ela irá tentar fazer com que os gastos cresçam menos do que o PIB ao longo dos próximos anos.

IHU On-Line – Quais os desafios da industrialização num momento em que as questões ambientais se tornam imprescindíveis? É possível conciliar industrialização com uma política de baixo carbono?

André Moreira Cunha – A matriz energética brasileira é uma das mais limpas do mundo. Se formos comparar com a matriz energética chinesa, por exemplo, 70% dela é baseada em combustíveis fosseis. O Brasil apostou – e isso foi equivocado – em um complexo automotivo: a matriz de transporte é baseada no transporte ferro-rodoviário e no transporte individual nas grandes cidades. O país precisa investir em bens públicos: saneamento, transporte urbano, pois temos uma qualidade de vida ruim nos centros urbanos. Temos de repensar a retomada do transporte ferroviário, seja de carga ou de passageiros. Por que uma cidade como Porto Alegre não poderia ter os bondes modernos de volta? Essa seria uma oportunidade. Quando olhamos o conjunto da indústria, vemos segmentos em que o Brasil pode ser competitivo: bicombustíveis é um setor. A indústria tem de produzir equipamentos para isso. O pequeno agricultor familiar pode se modernizar e a indústria brasileira pode potencializar isso. A demanda por produtos que tenham característica de preservação ao meio ambiente é quase uma imposição para as próximas décadas. O Brasil tem condições de liderar esse processo e de apostar nos setores que são intensivos em tecnologia, nanotecnologia, biotecnologia. Os chamados problemas ao mesmo tempo trazem soluções em potencial que podem criar vias alternativas de expansão para a economia brasileira.

IHU On-Line – O crescimento econômico atual, de 7,5%, é sustentável a longo prazo?

André Moreira Cunha – Sabemos que não é. Esse é um crescimento sobre a base fraca de 2009. A média de 2008 a 2010 é 5,5%. Nos próximos anos, o país crescerá por volta de 5%. Sempre há riscos de interrupção. Resistimos bem à primeira onda de impactos da crise de 2008 e vamos continuar a sentir a recuperação das economias modernas. Vejo como provável que, ao longo dos próximos anos, vamos crescer em torno de 5%.
Temos de pensar na qualidade desse crescimento econômico: queremos construir uma sociedade melhor ou pior da que vivemos hoje? Se é melhor, temos de pensar um horizonte de longo prazo. Digo para meus alunos de Introdução à Economia que em menos de 50 anos não haverá nenhuma grande mudança. Demoramos 500 anos para colocarmos as crianças no ensino fundamental – somente agora, na virada do milênio é que praticamente 100% das crianças chegaram à escola. Estamos melhorando num ritmo lento e os outros países estão melhorando mais rapidamente do que nós. Se o Brasil olha para a sua própria trajetória, corre o risco de achar que estamos muito bem, mas na verdade não é isso. O Brasil, se crescer muito nos próximos anos, irá recuperar o tempo perdido.
O que vimos nos últimos oito anos é um ensaio de desejo de mudar essa rota.

IHU On-Line – Qual deve ser a postura do Brasil diante das reservas de pré-sal? Exportar ou fazer produtos de valor agregado? Elas devem ser utilizadas para industrializar o país, afim de financiar a transição do Brasil para uma economia com menor emissão de carbono, ou para fortalecer as exportações?

André Moreira Cunha – Sérgio Buarque de Holanda dizia que o Brasil é o país do milagre: de tempos em tempos, surgiu o café, depois que a mineração desapareceu; o ouro de Minas na decadência da cana-de-açúcar; a indústria foi uma saída diante da crise do modelo primário exportador e agora estamos diante de um novo momento em que a natureza nos brinda com recursos que, potencialmente, são benéficos. Obvio que há potencialidade de vender esses produtos agregando valor, mas também sempre vem pressão do outro lado, ou seja, o dinheiro imediato, que vem da venda de produtos in natura. Mediar as duas coisas parece ser o desafio do Brasil e, fazendo isso, ter em mente que está todo mundo correndo atrás de um novo modelo energético, do substituto do petróleo. Por volta de 50 anos, poderemos atuar e ter esse recurso para ampliarmos os investimentos em tecnologia, área social. Se o que está no papel se concretizar, poderemos ver um otimismo.
IHU On-Line – A estimativa de alguns economistas é de que Dilma governe num contexto internacional menos favorável. Quais os desafios econômicos da presidente eleita, Dilma Rousseff?
André Moreira Cunha – Gosto de mostrar um número: o crescimento brasileiro menos o crescimento mundial. O mundo cresceu 5%, o Brasil cresceu 6%. Então o Brasil foi o melhor do mundo. O mundo caiu 1%, o Brasil caiu 0,5%. Então, foi o melhor do mundo.

Alguns alegam que no período FHC, diversas crises internacionais prejudicaram o crescimento, mas muitos países cresceram mais que a média mundial.
O período será de maior instabilidade, a recuperação dos países será mais lenta, irá se acentuar a tendência de aumento da importância das economias emergentes. Por outro lado, há novos players, novas visões de mundo, novos interesses geopolíticos. O mundo será mais complexo.

(Ecodebate, 30/11/2010) Entrevista de Patrícia Fachin, publicada pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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