Os oceanos formam um vasto universo sobre o qual o homem quase nada sabe
Homem ainda está longe de descobrir todas as espécies que vivem nos oceanos – É essa a principal lição deixada pelo Censo da Vida Marinha, megaprojeto que mapeou durante 10 anos as plantas, os animais e os micro-organismos presentes na água salgada do mundo. Ao anunciar os primeiros resultados, no mês passado, os responsáveis pela iniciativa disseram ter descoberto cerca de 1,5 mil espécies. E esse número pode chegar a 5 mil, depois que todo o material coletado for analisado, como explicou ao Correio o líder do estudo, Ronald O’Dor, professor de biologia da Universidade de Dalhousie, no Canadá.
Os números podem impressionar um leigo, mas os especialistas sabem que eles representam uma parcela quase insignificante do que os oceanos têm a oferecer. Reportagem de Max Milliano Melo, no Correio Braziliense.
Estudos indicam que as espécies marinhas ainda desconhecidas pelo homem não estão na casa dos milhares, mas dos milhões. “Há uma enorme incerteza sobre o número de espécies a serem descobertas. Um milhão é uma estimativa mínima, mas alguns estudos têm sugerido que são pelo menos 9 milhões apenas nos recifes”, diz a pesquisadora do Museu de História Natural dos Estados Unidos Nancy Knowlton, que participou do projeto pesquisando a biodiversidade presente nos corais. Em outras palavras, é possível afirmar que a máxima “conhecemos mais o espaço do que o fundo do mar” não é um exagero.
A razão para tanto desconhecimento está nas dificuldades técnicas e nos altos custos das pesquisas em ambientes marinhos, especialmente em grandes profundidades. “Investigar os oceanos é uma tarefa não somente árdua, mas muito cara. Um dia de navio com um submersível ou mesmo um robô pode custar mais de US$ 100 mil”, revela a professora do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lúcia Campos, que integra o grupo de 15 brasileiros que participou do megaestudo. O’Dor confirma a informação. “A exploração do oceano é muito cara, quase comparável à exploração do espaço. O quebra-gelo alemão Polarstern, plataforma de pesquisa avançada muito utilizada na realização do Censo, custa 1 euro por segundo para funcionar”, completa. Não por acaso, o investimento total no Censo, financiado por instituições do mundo inteiro, foi de US$ 650 milhões.
As comparações entre o fundo do mar e o espaço não ficam apenas nos custos. A dificuldade técnica para acessar alguns dos recantos mais profundos é semelhante à encontrada nas pesquisas sobre o Universo. “Para se ter uma ideia da dificuldade do ponto de vista técnico, imagine que você está numa nave espacial a 10 mil metros de altitude, mas não pode aterrissar, a menos que utilize um veículo pequeno, como um robô, que tem restrições tecnológicas e tempo limitado para estar fora da nave-mãe”, descreve Lúcia. “É assim a pesquisa no fundo do mar. Você traz amostras para a ‘nave-mãe’ e tenta montar um quadro de como deve ser a vida lá embaixo. E muitas vezes essas amostras chegam deformadas. Mesmo assim, aos poucos, você vai montando um quebra-cabeças”, completa.
Localização
Dentro de um universo tão grande, os cientistas acreditam que alguns locais devem ser priorizados pelos grupos de pesquisa. Para Nancy Knowlton, a maioria da diversidade desconhecida está localizada em dois locais específicos dos oceanos: “Certamente boa parte vive no mar profundo, porque é uma região extremamente grande e muito pouco explorada. Outro lugar são os recifes de coral, que em geral abrigam uma diversidade muito grande. Prova disso é que nosso projeto conseguiu encontrar mais espécies desconhecidas de caranguejo do que todas as existentes atualmente na Europa”.
O’Dor explica que as regiões abissais — onde a profundidade do oceano é superior a 2 mil metros — possuem uma das maiores biodiversidades do planeta, grande parte dela inexplorada. “A lama das planícies abissais cobre quase 60% da área da Terra e contém muitos grupos de pequenas espécies animais altamente variáveis que nunca foram estudadas”, afirma o pesquisador. “A água de superfície também está cheia de vida. Quase 20% desse volume dessa água nunca teve uma única amostra colhida e analisada”, conta.
O drama dos pesquisadores é perceber que uma parcela considerável das espécies correm o risco de desaparecer antes mesmo de serem conhecidas. “Há quase 20 anos, quando comecei a estudar o oceano profundo, algo que me chocou foi o fato de, em toda parte, mesmo em regiões abissais, encontrarmos lixo humano, como barris e garrafas”, conta Lúcia Campos.
“E isso afeta todas as espécies. Aves marinhas que migram da Antártida morrem por engolirem plástico que muita gente desprentensiosamente joga na praia acreditando que o mar, de tão imenso, pode absorver tudo. Isso não é verdade”, lamenta a brasileira.
Dessa forma, a ação humana pode impedir inúmeros avanços científicos, que poderiam representar a descoberta de novas tecnologias e a cura para diversas doenças. Para se ter uma ideia do imenso potencial que existe nas pesquisas oceânicas, o Censo da Vida Marinha proporcionou a publicação de aproximadamente 2.500 trabalhos científicos, produzidos por 2.770 cientistas de mais de 80 países.
Entrevista com a bióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro Lúcia Campos
– Estima-se que se conheça apenas 250 mil das cerca de 1 milhão de espécies que existem nos oceanos. A senhora concorda com este dado?
Acredito que mesmo 1 milhão seria um número muito provavelmente sub-estimado, especialmente se considerarmos os microorganismos, tanto da coluna d’água quanto dos fundos marinhos, se levarmos em conta que: 1) cerca de 70% do planeta é coberto pelos oceanos; 2) destes, 80% apresentam uma coluna de água de mais de 3000m, 70% sendo zonas abissais (> 4000m) ; e 3) dessas zonas mais profundas, mesmo com todos os esforços despendidos até o momento, conhecemos, no máximo, o equivalente a uma área total menor do que 1%. Ou seja, ainda temos muito por conhecer. A cada coleta, mergulho, descobrimos registros novos de ocorrência, espécies novas de vários grupos marinhos. O que conhecemos hoje em termos de números de espécies são aquelas descritas e, de alguma forma, catalogadas e registradas em coleções e museus espalhados pelo mundo. E esse registro deve-se a um enorme esforço por parte de muitos cientistas, mesmo aqueles que antes da existência do censo já trabalhavam na identificação e descrição desses organismos marinhos.
– Porque ainda conhecemos tão pouco das espécies que habitam o oceano?
Bem resumidamente eu diria: 1) limitação tecnológica; 2) poucos especialistas empenhados neste esforço; 3) limitação financeira (investigar os oceanos é uma tarefa não somente árdua, mas muito cara: um dia de navio com um submersível ou mesmo um robo pode custar mais de US$100 mil o dia.
Mas mesmo se considerarmos o que pode ser feito e já é feito, vou tomar como exemplo uma única expedição realizada na Antártica, onde cerca de quase 700 espécies de um determinado grupo de crustáceos (Isopoda) foram encontradas, sendo que destas quase 600 eram novas para a ciência. Para descrever adequadamente este material, compreender sua biologia levaria um tempo enorme, talvez mais de 800 anos (como bem colocou um colega meu na Inglaterra, quando fizemos nosso painel para a imprensa na Royal Society) com os poucos especialistas que existem hoje.
Olhamos mais para o espaço e conhecemos mais da superfície de outros astros celestes do que de nosso próprio planeta. Mesmo aqui no Brasil, considerando nossa imensa costa, com todos os biólogos, oceanógrafos que estudam o ambiente marinho, necessitaríamos de maior investimento (em termos tecnológicos, mais navios e sua manutenção adequada, pessoal especializado, mais apoio financeiro, pois coletas oceânicas são muito caras, etc) na exploração do oceano à nossa frente.
Para se ter uma visualização da dificuldade do ponto de vista técnico, imagine que você está numa nave espacial há mais de 5.000-6.000 ou mesmo 10.000 m de altitude, mas não pode aterrizar a menos que se utilize de um veículo pequeno (robos ou veículos operados por humanos) que tem restrições tecnológicas e tempo limitado para estar fora da nave mãe. Porém, pode enviar outros equipamentos remotos (de tamanho bem restrito, considerando-se sua distância de lançamento, cabos necessários, e outros fatores limitantes à sua coleta)… Você traz amostras da superfície que você está investigando para a nave mãe e tenta montar um quadro sobre como deve ser a vida lá embaixo. Muitas vezes, especialmente se você não viu aqueles organismos com uma câmera ou video, por causa da diferença de pressão, eles chegam à sua nave deformados. Mesmo assim, aos poucos, você vai montando um quebra-cabeças… Para estudar os oceanos o uso de tecnologias avançadas é fundamental, para que tenhamos um quadro mais próximo do real possível.
Costumo dizer que em ciência, somos limitados aos nossos sentidos físicos para percepção do ambiente e na medida em que ampliamos essa nossa “visão” com o uso de novas tecnologias, quebramos paradigmas e descobrimos coisas novas.
Assim como no ambiente terrestre, nos oceanos existem biomas ainda pouco conhecidos, dos quais precisamos compreender como funcionam e melhor conhecer a vida neles presente, de micróbios a predadores de topo de teias alimentares.
– Qual a principal dificuldade de se conhecer a vida aquática?
De certa forma, creio que já respondi essa pergunta acima. Nós somos seres terrestres tentando conhecer seres marinhos. Nosso meio de vida é distinto e precisamos nos equipar para termos um contato mais direto com o ambiente marinho, conhecê-lo e a vida nele presente eadequadamente. Organismos que vivem em 5000 m estão adaptados a uma pressão de 501 atmosfera… precisamos de técnicas adequadas para reproduzir as condições necessárias e compreender a biologia desses organismos, ou simplesmente trazê-los à superfície sem deformá-los, para identificá-los, classificá-los… compreender sua função nos ecossistemas.Outro aspecto relevante, que você não perguntou, mas gosto de mencionar porque me chocou, mesmo há quase 20 anos atrás quando comecei a estudar o oceano profundo, foi o fato de mesmo em regiões abissais encontrarmos lixo humano, barris, garrafas… Aves marinhas que migram da Antártica morrem por engolirem plástico que muita gente desprentenciosamente joga na praia acreditando que o mar, de tão imenso, pode absorver tudo. Isto não é verdade.
EcoDebate, 08/11/2010
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