Biodiversidade marinha é fonte de pesquisas para remédios até contra câncer
Uma imensidão azul praticamente inexplorada, habitada por seres que aprenderam a se defender das mais adversas situações. O mar ainda guarda muitos mistérios, mas espécies ricas em compostos químicos com potencial extraordinário para fabricação de fármacos de ação antitumoral, anti-inflamatória, antifúngica, antioxidante e até antiviral estão na mira da ciência. Nas duas últimas décadas, cientistas de várias partes do mundo se empenham em desvendar o segredo de plantas e pequenos animais marinhos que sobrevivem há milhões de anos em um ambiente de extrema competição. Alguns compostos já são usados como matéria prima em drogas de combate ao câncer.
Parte das pesquisas realizadas no Brasil dá noção do que está para ser descoberto e desenvolvido em um futuro próximo. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), estudos com a alga marinha Sargassum vulgare sinalizam que uma substância presente nessa espécie reduz os efeitos negativos da quimioterapia sobre o corpo humano. O grupo da UFC também isolou moléculas de um tipo de ascídia endêmica do litoral nordestino que apresentam ação anticâncer. Na Universidade de São Paulo (USP), o foco se volta para as macroalgas com alta capacidade de absorver radiação ultravioleta (UV).
A pesquisadora da Universidade Federal do Ceará Letícia Veras fala sobre o potencial anticâncer de algas e animais marinhos do Nordeste. Reportagem de Márcia Neri, no Correio Braziliense.
As atividades anti-inflamatórias da Sargassum vulgare — importante componente da flora marinha dos trópicos e subtrópicos dos dois hemisférios — estimularam o estudo dessa espécie de alga parda na UFC. “Nas pesquisas, verificamos que, além da propriedade anti-inflamatória, o alginato — polissacarídeo presente na S. vulgare isolado na pesquisa — apresentava ótima capacidade antitumoral e era também imunoestimulante. A partir daí, redirecionamos o trabalho. O foco passou a ser uma possível terapia para o câncer”, conta Letícia Veras Costa-Lotufo, professora do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da UFC.
Em camundongos, os testes surpreenderam. Nesses animais, houve redução dos tumores tratados por via oral em 80%. O mais impressionante é que os efeitos colaterais da leucopenia — depressão das defesas do organismo — foram minimizados durante a terapia. “Agora, estudamos o mecanismo de ação do alginato sobre o sistema imunológico. Temos um longo caminho pela frente, mas já vamos partir para análises de toxidade, um passo essencial para o desenvolvimento de qualquer medicamento”, completa.
Na UFC, também está em curso um estudo com o Eodistoma vannamei, uma ascídia endêmica do litoral nordestino. Trata-se de um animal marinho de aparência esponjosa, mas de complexidade muito maior que as esponjas oceânicas. As atividades anticâncer das ascídias são conhecidas no mundo científico, fato que despertou o interesse do grupo cearense para a avaliação dos tipos comuns no litoral do estado. Depois de um levantamento das espécies, foram escolhidas as mais abundantes para não impactar o bioma. A E. vannamei chamou atenção por apresentar compostos químicos ativos e muito potentes do grupo das estaurosporinas. Tais substâncias, mesmo em baixas concentrações, são capazes de exterminar as células tumorais.
“Testamos as estaurosporinas tanto em células cultivadas em laboratório quanto em camundongos. Os resultados também foram estimulantes”, adianta Letícia. O importante, ainda segundo a professora, é que essas estaurosporinas são produzidas por micro-organismos (bactérias) presentes na E. vannamei. “Então, para viabilizar o estudo, isolamos e estamos fazendo o cultivo desses pequenos seres para continuar a pesquisa sem comprometer o meio marinho com uma exploração inadequada. Estamos ávidos para contribuir com novas terapias contra o câncer. Mas não chegaremos a lugar algum sem sustentabilidade”, alerta.
Cuidados necessários
Biólogos, químicos e farmacêticos não escondem o entusiasmo, mas são unânimes em reconhecer o enorme desafio de aproveitar os recursos sem que a biodiversidade se afogue na exploração descuidada. Embora seja evidente a vastidão e a riqueza do litoral brasileiro, o estudo do bioma está atrasado em relação a pesquisas desenvolvidas em nações da Ásia, Oceania, Europa e América do Norte. “Por outro lado, ganhamos tempo para entender que é fundamental selecionar o que será pesquisado. De nada adianta nos debruçarmos em espécies que nem sequer existem em quantidade suficiente para as próprias pesquisas, quem dirá para suprir a demanda farmacêutica”, pondera o professor do Departamento de Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense Renato Crespo Pereira.
Na USP, a ideia do trabalho é buscar substâncias inéditas com atividade biológica favorável aos mais diversos campos. As algas podem ser usadas para usos medicinal, alimentício, biotecnológico, cosmético e bioenergético. “Pesquisamos espécies encontradas ao longo de toda a costa brasileira. A partir de amostragens, fazemos uma varredura para identificar o potencial biológico, trabalhamos o cultivo em massa nos laboratório e posteriormente em fazendas marinhas. Não podemos colocar em risco a biota que pode nos fornecer respostas para muitos problemas”, explica Pio Colepicolo Neto, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP.
Por essa plataforma cuidadosa de exploração, o grupo paulista, que conta com a colaboração de centros de pesquisa de Santa Catarina e do Rio Grande do Norte, isolou moléculas de micosporinas (MAA). Essa substância apresenta espectro de absorção de UV muito próximo ao protetor solar mais eficiente disponível no mercado. “Testes de toxidade já foram realizados em ensaios. Estamos diante do desafio de aumentar a produção natural de forma sustentável e sintetizar a MAA. É importante concretizar essa etapa para testar a substância clinicamente”, adianta Pio.
EcoDebate, 18/10/2010
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