Conjuntura político-eleitoral 2010
Sumário:
Conjuntura político-eleitoral
Onde estão os programas?
O último debate ideológico
‘Lulismo’ substituiu os programas
‘Lulismo’. Um projeto político para o país?
Raízes sociais e ideológicas do lulismo
Um projeto pluriclassista. Representação sem rupturas
Um longo ciclo? As ameaças ao lulismo
O lulismo sem Lula é possível?
Movimentos sociais e as eleições 2010
Da utopia ao pragmatismo?
Temas esquecidos nas eleições 2010
[Leia a análise na íntegra]Conjuntura político-eleitoral. Onde estão os programas?
Faltando pouco mais de uma semana para as eleições presidenciais, os dois principais partidos brasileiros – e que de fato estão na disputa pela cadeira presidencial – não apresentaram até o momento os seus programas – projetos – para o país. Marco Aurélio Garcia, coordenador do programa de governo do PT, afirmou que ainda não decidiu se o programa será ou não divulgado. O PSDB, por sua vez, não divulgou previsão de quando e apresentará um documento final com suas propostas.
Na análise do sociólogo Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador do Iesp-Uerj, “nessa sucessão, que transcorre em meio a uma melancólica apresentação de dados sobre indicadores sociais, a política é a grande ausente, em que os principais candidatos sequer revelam seus programas de governo e passam ao largo, em uma sociedade com suas tradições fincadas no autoritarismo político, das discussões sobre como aperfeiçoar a democracia entre nós”.
Os programas se tornaram secundários, tampouco têm sido reinvidicados pela sociedade e sequer pelas forças políticas que possuem tradição no debate político, como os movimentos sociais. Em outras épocas, basta lembrar aqui das eleições de 1989 – o programa era uma exigência. Em 1994, 1998 e 2002, os programas também ocupavam um lugar de destaque. Nas eleições da década de 90 e início dos anos 2000 disputadas entre o PT e o PSDB, eram comuns o acalorado debate entre o denominado projeto da ‘Inserção competitiva da economia internacional (PSDB) versus o projeto intitulado ‘Nacional Popular’ (PT).
A importância do debate em torno de projetos pode ser avaliada por um episódio: ‘A Carta ao Povo Brasileiro’ – lançada em junho de 2002 – poucos meses antes das eleições que elegeu Lula presidente em sua quarta tentativa. A carta, escrita às pressas e articulada por Antônio Palocci com o apoio de José Dirceu, foi acusada de trair o programa do partido. O documento afirmava, entre outras coisas, o compromisso do governo Lula em honrar os pagamentos com os credores, contrariando as teses históricas do PT em confrontar o capital internacional. A ‘Carta’, escrita a poucas mãos, passou a ser considerado o verdadeiro ‘programa’ do partido e não aquele debatido e aprovado pelo Diretório Nacional.
Recorde-se que anteriormente a esse episódio, os projetos, particularmente no caso do PT, reuniam intelectuais e pesquisadores e o partido para se contrapor ao preconceito disseminado de que Lula não tinha preparo para dirigir o Brasil, afirmava que “as melhores” cabeças do país estavam com Lula e eram responsáveis pela construção de um projeto coletivo. Também no PSDB, agregavam-se jovens economistas e de outras áreas para a formulação do seu projeto.
O último debate ideológico
Nas últimas eleições presidencias em 2006, após um primeiro turno morno, apático e insosso em que não houve debate público de idéias, a eleição esquentou no segundo turno com o debate do tema das privatizações. O PT explorou o imaginário popular de que as privatizações realizadas no Brasil na ‘Era FHC’ foram pouco transparentes e teriam favorecido grupos econômicos e pessoas. Registre-se, porém que a opção em explorar esse tema não foi por uma decisão político-ideológica. Segundo João Santana, marqueteiro de Lula à epoca e hoje marqueteiro de Dilma, o tema entrou no debate a partir de pequisas qualitativas.
Diz ele: “Esse é um tema – das privatizações – riquíssimo, que foi muito bem pensado. Nós tínhamos alinhado alguns dos temas de intensa fragilidade e de imensa comoção política. Estava em primeiro lugar a privatização. Não usamos no primeiro turno porque não houve necessidade, mas, analisando as pesquisas, eu vi que essa discussão poderia ser retomada. Enxerguei ali um ‘monstro vivo’ que poderia ser jogado”.
Alckmin à época candidato do PSDB acusou o golpe e recusou o debate ideológico. Atitude que causou indignação da direita brasileira motivando matérias e editoriais em jornais (Estadão) e revistas (Exame). Para a direita, a recusa ideológica do PSDB em debater as privatizações foi considerada uma traição, logo o partido que completou a inserção do Brasil na economia internacional, atraindo o capital transnacional e o promotor da idéia de um Estado regulador liberando a exploração de serviços estratégicos – altamente rendosos – para o mercado.
‘Lulismo’ substitui os programas
Esse talvez tenha sido o último debate ideológico, provocado e recusado, entre o PT e o PSDB. De lá para cá os programas perderam importância e sequer são cobrados. O debate em torno dos programas foi substituído pelo ‘lulismo’. Agora, a disputa que se trava é para ver quem reune melhores atributos para continuar o lulismo. Registre-se que até Serra deseja dar continuidade ao legado de Lula. Quem não se recorda do esforço dos marqueteiros do PSDB em ‘colar’ a imagem de Serra à Lula. Nessa disputa pela herança do ‘lulismo, a enorme vantagem evidentemente é de Dilma por ser a candidata do próprio Lula – um fenônemo político com antecedência histórica que se aproxima apenas a Getúlio Vargas.
O debate programático substituido pelo ‘lulismo ‘ é destacada por Luiz Werneck Vianna: “São, portanto, quatro mandatos de governos do PSDB e do PT, em que alguns dos seus principais êxitos sociais e econômicos tiveram a característica comum – mais uma convergência entre eles – de serem resultados, diante de uma sociedade imobilizada politicamente, de intervenções do Estado e de suas agências especializadas na regulação da economia e na do social. Nada de surpreendente, então, que a política esteja em baixa, a ponto do nosso principal partido de massas, o PT, ter sido ultrapassado pelo lulismo, uma representação nua do social que apenas tolera a política como um mal necessário”.
A pergunta agora é: “Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010?”. A questão formulada por André Singer sugere o debate em torno de quais são as características centrais desse ciclo. É na essência e no contéudo desse ciclo, desde já anunciado como a ‘Era Lula’, que reside o que sobrou de programa ou projeto político para o país.
O lulismo pode ser definido como um projeto político para o país? Qual é o conteúdo do lulismo? Como explicar o fenômeno lulismo? Por que a oposição à esquerda e à direita de Lula encontra-se desorientada? Qual será a duração desse ciclo? Dilma, eventualmente eleita sustentará a continuidade do lulismo sem Lula? Sem Lula na presidência teremos o retorno “a volta da política”, como sugere Werneck Vianna? Por que o movimento social decidiu-se de forma açodada pelo apoio à Dilma? Essas, entre outras questões, são suscitadas pelas eleições 2010.
‘Lulismo’. Um projeto político para o país?
Raízes sociais e ideológicas do lulismo
O ‘lulismo’ está virando case – na economia averiguação de histórias de sucesso de uma empresa ou de um profissional – e até mesmo uma categoria para a sociologia política. Dentre, as várias análises, interpretações e explicações do que vem a ser o lulismo, destaca-se o ensaio de André Singer intitulado “Raízes sociais e ideológicas do lulismo” publicado na revista Novos Estudos, do Cebrap, novembro 2009.
Na essência o lulismo caracteriza-se pela forte ligação dos pobres com a figura de Lula. Singer no ensaio utiliza a categoria marxista subproletariado. Segundo ele, subproletários são aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-lá por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. Estão nessa categoria “empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes”. Em síntese, o subproletariado, reúne aqueles que se encontram em condição inferior aos assalariados, são os mais pobres entre os pobres.
Na analise do cientista político, é essa fração de classe que não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de organização porque está atomizada do sistema produtivo que está na base do fenômeno denominado lulismo. Segundo André Singer, os mais pobres não votaram em Lula em 1989, 1994, 1998 e 2002. Não votaram, sobretudo porque ficaram com medo, porém em 2006 votaram em massa em Lula. Nesse sentido, diz Singer, o ponto de inflexão da emergência do lulismo se manifesta com força nas eleições de 2006.
Em 2006, afirma Singer, “houve um deslocamento subterrâneo de eleitores não de baixa renda, mas de baixíssima renda, o qual passou despercebido”. Os mais pobres, contrariamente ao que fizeram nas eleições anteriores, sufragaram Lula em peso. “É verdadeira a interpretação de que o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos nas eleições de 2006”, afirma ele.
Nas eleições de 2006, Lula coroou um processo iniciado no seu primeiro mandato que selará sua profunda identificação com os mais pobres. Identificação que “pode ter fincado raízes duradouras no subproletariado brasileiro”, diz Singer. O lulismo que se fez sem mobilização e foi se constituindo “sem fazer notar” – Num artigo recente, Singer diz que os formadores de opinião demoraram a entender o que estava acontecendo –, explica-se por alguns movimentos simultâneos: a acomodação de Lula ao “conservadorismo popular” – o medo da instabilidade econômica, política e social, ou ainda a ideologia impregnada entre os mais pobres de desejo da superação da desigualdade, mas dentro da ordem –, o distanciamento das teses programáticas mais a esquerda do seu partido, o PT, que resultou numa crescente desconexão entre Lula e o partido e, proporcionalmente a esse processo, a decisão política e ideológica em assumir o caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neoliberais na macroeconomia.
O “pulo do gato” de Lula, porém, que dará forma e conteúdo ao lulismo, diz Singer, “foi sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos”, ou seja, “a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)”, na análise de Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi, citado por Singer.
Na base desse sentimento de inclusão social e responsável por ele, encontra-se a porção social do governo Lula: o Programa Bolsa Família (PBF), o controle dos preços (cesta básica), o aumento real do salário mínimo, o credito consignado, a ampliação de empréstimo a agricultura familiar, o microcrédito e a bancarização de pessoas de baixíssima renda e a ampliação do Beneficio de Prestação Continuada (BPC). Somado a tudo isso, têm-se ainda a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semi-árido. É o conjunto dessas políticas, diz Singer, que Marcelo Neri chama de “o Real de Lula”, numa alusão ao Plano Real que deu a reeleição a FHC em 1998, que dá força e consolida o lulismo.
Associado aos aspectos anteriores destaca Singer, “convém lembrar que Lula é o primeiro presidente que viveu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na presidência, para a realidade dos miseráveis. Por isso, é plausível a suspeita de Francisco de Oliveira de que a eleição de 2006 comprove ter Lula se elevado ‘a condição de condottiere e de mito’”. Também nesse sentido, analisa Singer, “tais ações colocam Lula à frente de um projeto, que é compatível com aspectos de sua biografia”.
Os pobres atomizados pela sua inserção no sistema produtivo necessitavam de alguém que pudesse, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações. E aqui surge o lulismo, “um raio em céu azul, uma vez que surge de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza auto-organização autônoma das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto e, dos partidos e movimentos de classe”, destaca Singer.
Na sequência passamos a sintetizar os principais aspectos abordados pelo autor que fundamentam as raízes sociais e ideológicas do lulismo. Os subtítulos são nossos.
“Talvez no futuro, afirma Singer, quando for escrita a crônica factual dos dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, o pleito de 29 de outubro de 2006 apareça como mera repetição dos resultados numéricos de quatro anos antes, em que o candidato do PT venceu o do PSDB por uma diferença em torno de 20 milhões de votos. Remanescerá então encoberto, sob cifras quase idênticas, o deslocamento que, com o aspecto superficial da consagração do lulismo, pode ter significado, na verdade, um importante realinhamento político de estratos decisivos do eleitorado”.
O realinhamento político eleitoral de que fala o cientista político nas eleições 2006 – um movimento profundo, que se deu sem mobilização e sem fazer-se notar – está no fato de que dessa vez, contrário às eleições anteriores, os mais pobres votaram em Lula e os setores de classe média preferiram votar em Alckmin. Segundo Singer, “no período do ‘mensalão’, o governo efetivamente perdeu parcela importante do suporte que trazia desde a eleição de 2002. Nas camadas média, essa rejeição desdobrou-se numa forte preferência por um candidato de oposição a presidência em 2006”.
Lula foi eleito em 2006 diz Singer valendo de estudos de pesquisadores, sobretudo, “pelo apoio que teve no segmento de baixíssima renda, enquanto Alckmin contou, alem do voto dos mais ricos, com certa sustentação na fatia de eleitores de classe media baixa, que vagamente corresponde ao que os especialistas de mercado chamam de classe C”. Algo oposto ao que aconteceu em 1989. Na oportunidade, enquanto Fernando Collor de Mello alcançava vantagem de dez pontos percentuais na faixa de eleitores que recebia mais dois salários mínimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quem obtinha essa vantagem era Lula.
A novidade aqui apresentada por Singer está no fato de segundo ele, a vitória de Collor “não decorria apenas de promessas fáceis. Havia uma hostilidade as greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até as vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava-se um aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos. Em outras palavras, ao contrario do esperado, os mais pobres eram mais hostis as greves do que os mais ricos”.
“Sugerimos a interpretação – diz Singer – de que os eleitores mais pobres buscariam uma redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de uma intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem. Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria em ser contra ou a favor da redução da desigualdade e sim em como obtê-la. Identificada como opção que colocava a ordem em risco, a esquerda era preterida em favor de uma solução pelo alto, de uma autoridade já constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade”.
Foi esse “conservadorismo popular” que derrotou Lula em 1989, 1994 e 1998. Segundo, Singer “o fato de Collor ter decepcionado a base social que o elegeu ao provocar a recessão de 1990/1991, levando a perda de suporte que facilitou o impedimento em 1992, não mudou a estrutura de comportamento político que o pleito de 1989 iluminara. Em 1994 e 1998, o ‘conservadorismo popular’, acionado pela inflação e pelo medo da instabilidade, venceu Lula outra vez. Era relativamente claro que havia um poder de veto das classes dominantes, o qual residia na capacidade de mobilizar o voto de baixíssima renda”.
Nesse sentido, continua Singer, “as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser entendidas como reedições de 1989, apesar da estabilidade monetária ter se sobreposto, em 1994, aos argumentos abertamente ideológicos utilizados por Collor (ameaça comunista) em 1989. Tal como em 1989, as duas campanhas de Fernando Henrique Cardoso mobilizaram os eleitores de menor renda contra a esquerda”.
O melhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entre os assalariados registrados com escolaridade secundária ou superior e entre os funcionários públicos. Já os trabalhadores sem registro formal, portanto, desvinculados da organização sindical, deram os melhores resultados a Fernando Henrique. Em 1998, a coligação vencedora procurou convencer, com sucesso, os eleitores mais pobres de que Cardoso seria o melhor condutor do país em meio a crise financeira internacional que ameaçava a estabilidade conquistada quatro anos antes, destaca Singer reproduzindo estudos analíticos sobre as eleições.
Apenas depois de assumir o governo, Lula obteve a adesão do segmento de classe que buscava desde pelo menos 1989. Entre a eleição de 2002, comemorada como sendo a da demorada ascensão da esquerda em país de tradição conservadora, e a reeleição de Lula por outra base social e ideológica, em outubro de 2006, operou-se uma transformação que se faz necessário entender, afirma Singer.
Por que os pobres passaram a se identificar e a votar em Lula?
Como e porque os pobres passaram a se identificar e a votar em Lula? Três anos depois da posse em primeiro de janeiro de 2003, quando outro pleito já apontava no horizonte, é que começa a se manifestar o lulismo e ele se assenta na “sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)”, diz Marcos Coimbra do Instituto Vox Populi, citado por André Singer.
Essa “sensação”, analisa Singer, não caberia no começo do mandato, marcado por política econômica recessiva. No entanto, “a partir do final de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF), inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres (…) Entre 2003 e 2006, a Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de R$ 570 milhões de reais para 7,5 bilhões de reais, atendendo a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006”.
Diversos estudos, alerta André Singer, encontraram indícios de que o Bolsa Família teve influência nos votos recebidos por Lula em 2006. Soa consistente, diz ele, a afirmação de que o programa cumpriu um papel na vitória de Lula.
Porém, a Bolsa Família por si só não explica as bases do realinhamento eleitoral – a transferência massiva do voto dos mais pobres em Lula em 2006. Outros fatores convergiram. Entre eles, citando vários estudos, destaca Singer: a) o controle dos preços, como um componente central do aumento do poder de compra entre as camadas pobres; b) o aumento real do salário mínimo de 24,25% no primeiro mandato de Lula – somados, a Bolsa Família e a elevação do salário mínimo que alavancou os ganhos dos aposentados dinamizaram as economias locais menos desenvolvidas; c) o uso do crédito consignado, o crédito consignado fez parte de uma serie de iniciativas oficiais que tinha por objetivo expandir o financiamento popular, que incluiu um aumento expressivo do empréstimo a agricultura familiar, do microcrédito e da bancarização de pessoas de baixíssima renda; d) a promulgação do Estatuto do Idoso, em janeiro de 2004, ampliou a idade mínima – caiu de 67 para 65 anos – para receber o Beneficio de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário mínimo para idosos ou portadores de necessidades especiais – em 2006, 2,4 milhões de cidadãos recebiam o BPC; e) além dessas medidas de alcance geral, que propiciaram a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semi-árido etc. favoreceram o setor de baixíssima renda.
Assim, comenta o cientista político, enquanto os atores políticos tinham a atenção voltada para a sequência de denúncias do “mensalão”, o governo produzia em silêncio o “Real do Lula” que, diferentemente do original, beneficiava, sobretudo, a camada da sociedade que não aparece nas revistas.
Examinadas em seu conjunto, as ações governamentais do primeiro mandato vão muito alem de simples “ajuda” aos pobres, destaca Singer. Segundo ele, “sem falar nos programas específicos, o aumento do salário mínimo, a expansão do crédito popular com aumento da formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005) e a transferência de renda, aliados a contenção de preços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos deflação, como decorrência da desoneração fiscal), constituem uma plataforma no sentido de traçar uma direção política para os anseios de certa fração de classe. Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentara capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssima renda, como atesta o acesso em grande escala a ‘classe C’, mas também porque sugerem um caminho a seguir: manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para os setores de baixa renda. Nesse sentido, tais ações colocam Lula à frente de um projeto, que é compatível com aspectos de sua biografia”, diz Singer. Biografia, destaca Singer, que revela Lula como “o primeiro presidente que viveu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na presidência, para a realidade dos miseráveis”.
Outro aspecto que auxilia na compreensão do lulismo situa-se no fato de que sob a perspectiva ideológica nas eleições de 2006, o PT não acompanhou Lula em sua troca de base. Singer cita estudos de Hunter e Power que revelam que Lula teria deixado um eleitorado tipicamente urbano e escolarizado por um francamente popular, mas o mesmo não teria ocorrido com o PT. Comentam os pesquisadores que “a tendência do apoio ao partido na Câmara dos Deputados, comparado ao de Lula, é cada vez mais incongruente. Enquanto Lula fez impressionantes avanços nas regiões mais atrasadas do país (os grotões, o mais duradouro calcanhar de Aquiles do PT), a fortaleza do partido continua a ser a área mais urbana e industrializada do Brasil”.
Em outras palavras, diz Singer, Lula foi mais sufragado quanto menor o IDH do Estado, mas a votação da bancada federal do PT manteve se associada aos de maior IDH. Em consequência, Lula teve particular sucesso no Nordeste e no Norte, ao passo que a votação do PT continuou relevante no Sudeste e no Sul.
A desconexão entre as bases do lulismo e as do petismo em 2006, analisa Singer, “pode significar que entrou em cena uma força nova, constituída por Lula à frente de uma fração de classe antes caudatária dos partidos da ordem e que, mais do que um efeito geral de desideologização e despolitização, indicava a emergência de outra orientação ideológica, que antes não estava posta no tabuleiro. Parece nos que o lulismo, ao executar o programa de combate a desigualdade dentro da ordem, confeccionou nova via ideológica, com a união de bandeiras que não pareciam combinar”.
A “continuidade do governo Lula com o governo FHC” na política macroeconômica — “baseada em três pilares: metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário nas contas publicas” — foi uma decisão política e ideológica. A elevação do superávit primário para 4,25% do PIB, a concessão de independência operacional ao Banco Central, que teve a sua frente um deputado federal eleito pelo PSDB com autonomia para determinar a taxa de juros, e a inexistência de controle sobre a entrada e a saída de capitais foram o modo encontrado para assegurar um elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção da ordem, destaca Singer.
Nossa hipótese, comenta Singer, citando elementos do conteúdo programático do PT, “é de que o governo se afastou de aspectos do programa de esquerda adotado pelo PT até o final de 2001, o qual criticava ‘a estabilidade de preços […] alcançada com o sacrifício de outros objetivos relevantes, como o ‘crescimento econômico’, a abolição das ‘restrições ao movimento de capitais’ e a Lei de Responsabilidade Fiscal por tolher ‘elementos importantes de autonomia dos entes federados, engessando, em alguns casos, os investimentos em políticas sociais’, com a finalidade de impedir que uma reação do capital, voltada para criar dificuldades a mudança, provocasse instabilidade econômica e atingisse os excluídos das relações econômicas formais”.
Para trabalhadores com carteira assinada e organização sindical, a luta de classes em regime democrático oferece alternativas de autodefesa em momentos de instabilidade. Mas os que não podem lançar mão de instrumentos equivalentes, por não estarem organizados, seriam vulneráveis a propaganda oposicionista contra a “bagunça”, comenta André Singer.
O fato é, diz Singer, que “o governo preferiu conter a subida dos preços pelo caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neoliberais, como foi o caso da combinação de corte no gasto publico e aumento de juros em 2003 (…) O presidente vocalizou, então, o discurso conservador de que o seu governo não adotaria qualquer plano que pusesse em risco a estabilidade, preferindo administrar a economia com a ‘prudência de uma dona de casa’. Se ao fazê-lo estabelecia um hiato em relação ao seu próprio partido, em troca criava uma ponte ideológica com os mais pobres”.
Entretanto, analisa o cientista político, “se tivesse ficado nisso, só repetiria o relativo sucesso do primeiro mandato de FHC, o qual não provocou um realinhamento do eleitorado, apesar de emplacar o discurso de que ‘tudo é um processo’, equivalente tucano da ‘prudência da dona de casa’. O pulo do gato de Lula, diz Singer “foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada a manutenção da estabilidade, corresponde nada mais nada menos que a realização de um completo programa de classe. Não o da classe trabalhadora organizada, cujo movimento iniciado no final da década de 1970 tinha por bandeira a ‘ruptura com o atual modelo econômico’, mas a fração de classe que Paul Singer chamou de ‘subproletariado’ [os que estão fora do mercado formal de trabalho] ao analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos de 1980.
Em virtude de seu tamanho – 47% do eleitorado encontrava-se nessa situação em 2005, fora do mercado formal, exercendo atividades precárias e ganhando no máximo dois salários mínimos – , o subproletariado encontra se no centro da equação eleitoral brasileira, e seu coração esta no Nordeste, diz Singer. “Não somente porque nessa região empobrecida, que é a segunda mais populosa do país, habitam boa parte dos subproletários, mas também porque dela irradiam aqueles que buscam oportunidade no centro capitalista, o Sudeste. Nucleado no Nordeste, onde conta com elementos biográficos, mas estendendo-se para o conjunto do país, o lulismo, segundo indicam os dados eleitorais de 2006, pode ter fincado raízes duradouras no subproletariado brasileiro”, destaca o cientista político.
Um projeto pluriclassista. Representação sem rupturas
As conclusões de André Singer apontam a essência do lulismo, a representação do subproletariado sem a necessidade de rupturas. Diz ele: “como vimos, a persistência do que poderíamos chamar de ‘conservadorismo popular’ marca a distribuição das preferências ideológicas no Brasil pós-redemocratização, com a direita reunindo sempre cerca de 50% mais eleitores do que a esquerda”. Gustavo Venturi, citado por Singer, afirma que “passadas mais de duas décadas de democracia, a construção de uma hegemonia político-cultural identificada como de esquerda não avançou”.
“Em que pese, diz Singer, o sucesso do PT e da CUT, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, uma fração de classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que organizado por movimentos como o MST, tende a ser politicamente constituído desde cima, como descobriu Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações”.
“Buscamos aqui mostrar – continua Singer – que, na ausência de um avanço da esquerda, o primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se se a ele, mais do que o modelando, porém, ao mesmo tempo, constituindo-o como ator político. Isso implicou um realinhamento do eleitorado e a emergência de uma força nova, o lulismo, tornando necessário um reposicionamento dos demais segmentos (…) O fato de Lula receber votos a esquerda e a direita de modo equivalente seria o reflexo do realinhamento em curso, a partir do qual Lula passa a representar uma opção nova, que mistura elementos de esquerda e de direita, contra uma alternativa de classe média organizada em torno de uma formulação de centro”.
Segundo Singer, “diferentemente da experiência peessedebista, o ‘Real de Lula’ veio acompanhado de uma mensagem que faz sentido para os de menor renda: pela primeira vez o Estado brasileiro olha para os mais frágeis e, portanto, se popularizou. Essa é a razão pela qual o presidente insiste que ‘nunca na história deste país… etc. etc.’. Irritados, os supostos ‘formadores de opinião’ não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e insistem na tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade, mas ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire outro sentido”.
O relativo desinteresse de Lula pelos ‘formadores de opinião’ segundo Singer, “significa que o realinhamento tirou centralidade dos estratos médios, que eram mais importantes no alinhamento anterior. Nele, a esquerda organizava segmentos baixos e médios da ‘classe média’, notadamente operários industriais e servidores públicos, em torno de uma ideologia de esquerda, isto e, do discurso de classe. O centro agregava as classes médias ao redor da modernização do capitalismo e mobilizava o subproletariado contra a esquerda nos momentos cruciais (…) A medida que passou a ser sustentado pela base subproletária, Lula obteve uma autonomia bonapartista (sem qualquer conotação militar). Com ela, criou um ponto de fuga para a luta de classes, que começou a ser arbitrada desde cima ao sabor da correlação de forças.
Conclui André Singer:
“Árbitro acima das classes, o lulismo não precisa afirmar que o povo alcançou o poder ou que ‘os dominados comandam a política’, como na formulação que Francisco Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid. Ao incorporar tanto pontos de vista conservadores, principalmente o de que a conquista da igualdade não requer um movimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista, como progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o dever de proteger os mais pobres, independentemente do desejo do capital, ele achou em símbolos dos anos de 1950 a gramática necessária. A noção antiga de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepunha a todos os outros poderá cair como uma luva para o próximo período. Agora enunciada por um nordestino saído das entranhas do subproletariado, ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na boca de estancieiros gaúchos. Por isso, se a hipótese do realinhamento se confirmar, o debate sobre o populismo ressurgira das camadas pré-sal anteriores a 1964, em que parecia destinado a dormir para todo o sempre”.
A tese do “árbitro acima das classes” de Singer também é sustentada pelo sociólogo Werneck Vianna. Segundo ele, Lula “(…) é um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado”. A aguda interpretação de Luiz Werneck Vianna é a de que o governo Lula engoliu a todos. O movimento social grita, reage, mas no limite não rompe com o governo; a direita esperneia, protesta, mas rende-se ao governo de coalizão; o capital produtivo e financeiro reclama, mas está contente com Lula. No máximo o presidente, deixa “que os dissídios internos amadureçam e no final arbitra e decide”, diz Werneck. O lulismo tem um que de conciliador de classes.
André Singer aplica às eleições de 2010, a sua tese do “realinhamento” do eleitorado brasileiro, caracterizado pela adesão das classes baixas ao “lulismo” (por verem em Lula a possibilidade de ascensão social sem confronto) e pelo afastamento da classe média tradicionalmente petista, após o escândalo do mensalão. Segunde ele, em artigo nessa semana, “a candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES”.
Quem pensa de forma similar é o professor-pesquisador do Iesp-Uerj e ex-presidente da Anpocs, Luiz Werneck Vianna, Para ele, “o programa do novo governo, dito à saciedade na campanha eleitoral que ainda transcorre, não é o de fundar principado novo, e sim o de imprimir continuidade às linhas mestras do que sucede, e personagens como Antonio Palocci, Henrique Meirelles e Nelson Jobim, salvo incidentes extraordinários, devem ocupar postos-chave. Da base aliada, reanimados por prováveis vitórias eleitorais, deverão permanecer no proscênio políticos de genuína cepa conservadora, como José Sarney, Renan Calheiros, entre tantos outros de perfil semelhante, todos comprometidos, no essencial, com a continuidade dos princípios e práticas do governo Lula, principalmente com a sua expressão pluriclassista, em um arco que vai do agronegócio, passando pelo grande empresariado e pelo sindicalismo, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra”.
“O cerne desse sistema de orientação – diz Werneck – está no seu caráter pluriclassista e pluripartidário, reafirmado sem equívocos na campanha da candidata situacionista, em seu objetivo de consolidar e aprofundar a experiência do capitalismo brasileiro, tendo em vista inclusive a ultrapassagem dos seus limites nacionais, para o que conta com o Estado e suas agências produtivas e financeiras como instrumentos estratégicos. Dele igualmente fazem parte políticas destinadas à inclusão social de setores marginalizados, na forma dos programas de assistência social em curso”.
Em artigo recente, Werneck Vianna, diz que o presidente lidera uma “comunidade fraterna sob comando grão-burguês”, em que ele “cimenta a unidade de contrários”, mas com a hegemonia concedida ao grande capital rural e urbano.
Uma interpretação mais apurada dessa leitura de Singer e Werneck pode ser lida na conjuntura especial “A Reorganização do capitalismo brasileiro”. Essa análise argumenta que Lula por um lado, promoveu uma reconfiguração do capitalismo brasileiro que se sustenta no tripé de um Estado investidor, financiador e social e, por outro, desconstruiu a hegemonia – no sentido gramsciano – que anteriormente conquistou na sociedade, ou seja, rompeu com discurso classista e adotou um modus operandi pluriclassista – um governo que está acima das classes.
É nesse sentido que muitos cientistas políticos aproximam Lula de Getúlio. O lulismo e o varguismo aproximar-se-iam na medida em que assim como Getúlio foi aos pobres e aos sindicatos, Lula também foi. “A ida ao social, como Getúlio foi, aos pobres, aos sindicatos, a maneira apaixonada através da qual Lula faz isso. É claro que ninguém atendeu melhor aos empresários e às finanças que ele. Mas não tirou de um lado para dar para o outro. Deu para os dois lados”, diz Werneck Vianna.
Ou ainda como afirma Maria Celina D’Araujo: “Getulio tinha apelo muito grande de fato entre os trabalhadores. Construiu a imagem de ser o pai dos pobres, dentro da ideologia caudilhesca do Brasil, que, de alguma forma, o Lula tenta recuperar agora. Essa maldição caudilhesca paternalista nos persegue. As pessoas fazem isso sabendo o que estão fazendo. Quando Lula e Dilma fazem isso hoje sabem que isso dá voto junto a um setor da população. Não é nenhuma fatalidade. É de caso pensado”.
Um longo ciclo? As ameaças ao lulismo
O lulismo, a partir da reflexão de André Singer, significa um ‘realinhamento’ estrutural do eleitorado brasileiro. Daí advém outra de suas teses, a de que o lulismo pode abrir um longo ciclo na política brasileira. Em recente análise diz ele: “Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010”? Na opinião de Singer, “o realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia”.
Por isso, diz ele, “as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora”.
Na opinião de André Singer, “o capital financeiro – apelidado na mídia de ‘os mercados’- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não ‘provou’ ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC – cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio – aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante”.
O cientista político destaca ainda que caso confirmado o realinhamento eleitoral [lulismo] a oposição encontrará muitas dificuldades. “Se estivermos certos – diz Singer –, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos”.
“Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança – o Partido Democrata nos EUA, o PT no BrasiL”, atesta Singer.
O lulismo sem Lula é possível?
A vitória de Dilma, caso confirmada, portanto, apresenta-se como continuidade do ‘lulismo’ e seu projeto pluriclassista ancorado no Estado como mediador e provedor do pacto pelo alto. Isto já está claro. Tampouco, uma eventual vitória da oposição mudaria substancialmente rumo.
Mudanças de vulto, caso vençam os tucanos, viria a acontecer nas relações com o movimento social. O PSDB tem um histórico de difícil relação com o movimento social (sindicatos, MST, movimentos populares), basta ter presente os mandatos de FHC na presidência e o mandato de Serra como governador em São Paulo. O PSDB seria mais duro e inflexível nas questões que envolvem tratamento com o movimento social, razão pela qual as relações seriam tensionadas. As chances de as manifestações sociais serem tratadas com repressão aumentam num governo tucano. Também a política externa poderia sofrer mudanças. O candidato do PSDB tem feito comentários que desautorizam as relações políticas e econômicas construídas pelo governo Lula.
Uma questão pertinente, porém surge: O lulismo sem Lula é possível? A economista Maria Conceição Tavares, ainda em março desse ano, já indicava a estratégia eleitoral a ser perseguida pelo PT. Segundo ela, “Lula desfruta de enorme popularidade no subproletariado, algo que o PT nunca conseguiu, e se o partido quiser continuar crescendo precisa colar em Lula”. Segundo a economista, quem cresceu nos últimos anos foi Lula e não o partido. Na opinião de Conceição, “com o enorme crescimento da urbanização, aumenta muito o subproletariado, então ficamos na base das figuras carismáticas e um certo bonapartismo”. Em sua opinião, Lula é popular entre os pobres porque “Lula é o próprio popular”.
Porém, eleger-se é uma coisa, governar é outra. O sociólogo Luiz Werneck Vianna, lembra que “não será Lula quem sucederá a Lula, mas Dilma, e nem mesmo os marinheiros de primeira viagem, que são tantos, podem ficar indiferentes a mudanças de tal envergadura no regime dos ventos. Sem Lula, é trivial, o lulismo sai do governo, e o que fica nele é o PT e sua imensa base aliada, à testa o PMDB, com um dos seus principais condestáveis, Michel Temer, no posto estratégico da Vice-Presidência da República”.
Segundo ele, “não há motivo para espanto com o diagnóstico de que, em um eventual governo Dilma, se assim o quiserem as urnas, poderão ocorrer fortes tensões entre o lulismo e o PT – certamente com sua nova representação congressual bem mais encorpada -, que não conhecerão mais a arbitragem de Lula detendo os poderes de chefe de Estado”.
No caso, continua o sociólogo, “é de se esperar que as intervenções escoradas no carisma cedam lugar à política, inclusive porque Dilma, intocada por esse sortilégio, deverá governar com a aliança que suporta sua candidatura – é falso dizer, não se perde por esperar, que seus aliados não tenham ideias, apenas interesses -, e o PMDB, como já se sabe, se não compuser a maior bancada nas duas casas congressuais, ficará bem perto disso”.
O historiador José Murilo de Carvalho. está entre aqueles que pensam que o pós-lulismo não será fácil: “O vencedor das eleições deste ano enfrentará grandes desafios em 2011, a começar pelo fato de suceder um presidente com aprovação recorde”, diz. “Ex-presidentes, sobretudo os que terminam seu governo com avaliação muito positiva, têm a capacidade de se tornarem uma sombra para os sucessores, aliados ou adversários”, afirma Carvalho, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na opinião do historiador, um eventual adversário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva “estará sob permanente vigilância e terá que enfrentar a cobrança do tipo ‘no meu governo etc.’, que pode ter efeito desgastante”. Por outro lado, considera que a situação de Dilma Rousseff tampouco seria confortável: “Sem vôo político próprio e sem a liderança e a popularidade do antecessor e mentor, ela terá dificuldade em firmar sua autoridade e seu comando, sobretudo se houver deterioração no cenário econômico”.
Além da sombra de Lula, o sucessor terá outros grandes desafios pensa José Murilo de Carvalho. Pois, segundo ele, vai comandar um país ainda muito desigual, apesar das melhoras recentes, em que metade da população não tem rede de esgotos, a educação é de péssima qualidade, a carga tributária é alta e os gastos públicos são excessivos. “Todas essas contas serão apresentadas ao sucessor, que não terá a garantia de enfrentar condições internacionais favoráveis, como foi o caso em quase todo o mandato de oito anos de Lula”.
Um eventual fracasso do sucessor de Lula redundará fatalmente no ‘queremismo’. Como diz Rudá Ricci, “o lulismo tem cheiro de queremismo”.
Movimentos sociais e as eleições 2010
Da utopia ao pragmatismo?
O movimento social majoritário – pensa-se aqui, sobretudo nas centrais sindicais e no MST, seguido por outros movimentos – já manifestaram um lado nessas eleições: o apoio à candidatura de Dilma Rousseff. O jornal Brasil de Fato, uma espécie de porta voz de parcela importante do movimento social em seu editorial de agosto manifesta: “Os movimentos sociais em geral, e em particular a Via Campesina, que sustentam a proposta do jornal Brasil de Fato, têm adotado uma postura política de evitar adesões explícitas a candidaturas. Mas todos eles manifestaram publicamente a decisão política de não medirem esforços para derrotar a candidatura Serra”. “A vitória do tucano seria a volta do neoliberalismo e do desprezo aos movimentos sociais”, destaca o editorial.
O jornal deixa implícito o apoio à candidatura de Dilma: “A candidatura Dilma representa a continuidade do governo Lula e tem forças sociais entre a burguesia mais lúcida (temerosa da reação das massas), setores da classe média que melhoraram de vida e amplos setores da classe trabalhadora. Praticamente todas as forças populares organizadas têm sua base social apoiando a candidata petista”.
Sobre a outras candidaturas no espectro da esquerda, diz: “A candidatura Marina, apesar de seus vínculos passados com o PT e o governo Lula, não conseguiu sensibilizar a classe trabalhadora e reúne apenas forças sociais representadas por setores ambientalistas da classe média urbana dos grandes centros. E por isso seu potencial eleitoral é muito pequeno. E, por fim, temos três candidaturas de partidos de esquerda, com três lutadores do povo, de compromisso histórico com a classe trabalhadora. Mas nenhum deles conseguiu aglutinar força social organizada. E isso impede progressos eleitorais”.
O dirigente do MST João Pedro Stédile, avalia que a candidatura de Dilma Rousseff agrega setores da burguesia financeira e industrial, mas dentro dela também está presente a ampla maioria da classe trabalhadora, do campo e da cidade: “Não é um projeto da classe trabalhadora, mas têm dentro de si representados interesses da classe trabalhadora”, diz Stédile.
O posicionamento dessa parte importante do movimento social foi considerado açodado por muitos. “Num clima fraternal e companheiro quero discordar da posição eleitoral do João Pedro Stedile”, disse Antonio Julio de Menezes, cientista social, doutor em educação e professor na UFMG. Diz ele, tomando como referência o editorial do Brasil de Fato: “Pergunto: como as três candidaturas [Plínio, Ivan Pinheiro e Zé Maria] de esquerda aglutinariam força e cresceriam se uma das principais lideranças, de um dos principais movimentos sociais do Brasil, já declara, sem nenhum empenho por estas candidaturas, que elas não decolam e vai direto pedir voto na Dilma? Não deveríamos nos empenhar para que estas candidaturas aglutinassem forças e tivessem maior peso eleitoral em vez de sairmos dizendo, sem discussão ou empenho por estas candidaturas, que elas não decolam? Mesmo que não ganhássemos, se os candidatos de esquerda conseguissem um peso eleitoral maior, não teríamos mais forças para o enfrentamento com o capital e o agronegócio”?, questiona o professor.
Em que pese o questionamento do professor, a percepção que fica é a de que o movimento social mesmo com todas as críticas e insatisfações que tem do governo Lula optou por Dilma porque considera que têm mais a perder com uma eventual não eleição da candidada do PT. Como já antecipamos aqui em outra análise, o posicionamento dos movimentos sociais frente às eleições de 2010 tem muito a ver com o pragmatismo e pouco com utopia que outrora o alimentou. ‘Pode não ser muito bom com Dilma, mas poderá ser bem pior sem ela’ – talvez dessa forma possa ser definido o insighit que anima o movimento social em sua decisão de apoio a ex-ministra da Casa Civil. Com isso se quer dizer que ao menos com Dilma no Palácio do Planalto garante-se a possibilidade de interlocução e avanços na pauta social, coisa que está longe de ser conseguida com a candidatura do PSDB.
Registre-se, porém, que da declaração de apoio à campanha de rua vai uma grande distância. A opção pelo apoio é mais meio do que fim. O fato inconteste é de que o “imaginário de transformação social” que embalou os principais movimentos sociais e as principais lutas nos anos 1980 se enfraqueceu. A convicção de que a realidade pode ser transformada perdeu a sua força, e o encantamento com a política já não existe mais. Os movimentos sociais vivem uma profunda crise e estão longe de exercerem o protagonismo dos anos 1980 e 1990.
Essas duas últimas décadas do século passado produziram um vigoroso movimento social reivindicatório, cujo horizonte esteve voltado aos outros e na transformação da realidade, expresso na utopia de que outro Brasil era possível, e que passava, portanto, pelo Estado.
O governo Lula, neste contexto, passa a ser paradigmático. Por um lado, ele atende aos anseios de parte dos movimentos sociais e, por outro, contribui para o esgotamento do ideário transformador. Diz o sociólogo Rudá Ricci: “a partir dos anos 90, lideranças sociais do país ingressaram na lógica da burocracia estatal e perderam a energia e força moral para impor uma nova lógica política. Abdicaram da ousadia”.
Temas “esquecidos” na eleições 2010
Uma campanha eleitoral, qualquer que seja seu âmbito, tem, em teoria, o potencial de trazer para o debate público e democrático os temas mais candentes, urgentes e necessários no curto, médio e longo prazos. E a concorrência de diversos partidos e candidatos serve, a princípio, para trazer visões, perspectivas, modos de fazer política, que enriquecem o debate e que oferecem aos eleitores/as possibilidades diversas.
Na prática, não é bem assim. Apesar do relativamente longo prazo da campanha eleitoral e dos múltiplos espaços proporcionados, quer nas mídias, quer em debates presenciais ou no corpo a corpo, o leque de questões abordadas com razoável profundidade se reduz significativamente. As questões de longo prazo e com uma envergadura de maior calado, dificilmente comparecem aos debates. Assim como, de modo geral, questões que são polêmicas dentro da sociedade, não que sejam menos importantes.
Um círculo de giz parece demarcar a linha divisória entre os temas passíveis de serem levados ao debate eleitoral e aqueles proscritos. Assim, com raras e louváveis exceções, o debate se reduz a uma peça teatral, onde os candidatos encenam os capítulos da realidade mais atraentes ao público, no caso, os eleitores/as.
Quando há divergências entre candidatos e coligações, elas, na maioria dos casos, se resumem a questões pontuais e não a divergências de ordem programática, que, questões programáticas, aliás, dificilmente comparecem ao debate.
Nesta eleição, especificamente, a perspectiva da continuidade parece se sobrepor à da mudança. O enfoque que se dá é mais o de olhar para as conquistas, que, evidentemente, são diversas e importantes, portanto, não negligenciáveis, do que para o que resta fazer. O debate, no fundo, tem a premissa de que estamos perto do mundo sonhado, e por isso ninguém quer se defrontar com o outro Brasil, ainda longe desse “paraíso”. Uma questão de perspectiva.
É neste contexto que Leonardo Boff, referindo-se a temas “esquecidos”, pergunta: “que papel o Brasil vai desempenhar diante do horizonte sombrio que se está armando, para os próximos anos, sobre o planeta Terra com a acelerada exaustão de bens e serviços naturais e a gravidade dos eventos extremos de secas, enchentes e desertificação crescente, sem falar dos milhões de refugiados climáticos que não param de crescer?”.
O modelo de desenvolvimento, tão discutido em termos de seu crescimento econômico, não o é em termos dos impactos ambientais e sociais, salvo, novamente, exceções. Estudiosos insistem em ver tremendas potencialidades na questão ecológica e que serão a ponta de lança para uma sociedade sustentável. Ou seja, defendem que o Brasil poderia aproveitar os recursos naturais disponíveis para começar a sentar as bases para uma ecoeconomia. Mas, certamente, o desenvolvimento ganhará do meio ambiente nestas eleições.
Também a questão da educação não recebe, segundo o senador Cristovam Buarque, a devida atenção. Em entrevista ao jornal espanhol El País, Buarque afirma que “nenhum dos candidatos fará reformas na educação”. E argumenta dizendo que o nosso país – pode-se incluir aí a classe política – ainda está preso ao paradigma da economia primária e que, portanto, não tem postado diante de si a questão da economia do conhecimento. “O Brasil é ainda um país prisioneiro da economia primária. É um importador de conhecimento e um exportador de bens materiais. Priorizar radicalmente a educação exige uma postura totalmente diferente. Supõe considerar o Brasil como um país que tenha futuro em uma economia baseada no conhecimento. Isto contraria os interesses políticos e econômicos das elites. Fazer a revolução na educação significa quebrar privilégios de classe. Será difícil a qualquer dos três candidatos [referindo-se a Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva] ter força e vontade para isso”.
O bom andamento da economia pôs também de lado o debate sobre a Reforma Agrária, dívida social histórica da sociedade brasileira. Pelo viés do limite da propriedade da terra, que esteve na origem do plebiscito popular realizado na última Semana da Pátria, o tema compareceu ao debate, mas pautado pelos movimentos sociais. O tema também não interessa à candidata do PT, Dilma Rousseff, partido que historicamente foi defensor da política de Reforma Agrária.
Relacionado à questão da política rural está outro tema que não está merecendo o devido tratamento: o trabalho escravo. Ele é espinhoso, pois cria fricções e animosidades com setores econômicos que apóiam, por exemplo, os candidatos mais bem colocados nas pesquisas. O trabalho infantil continua sendo uma realidade para 4,3 milhões de crianças no Brasil hoje.
A questão indígena também não está no horizonte das discussões eleitorais, assim como sua luta contra as mega obras na área de energia, projetadas preferencialmente na região amazônica e com enormes impactos ambientais e sociais.
Isso sem falar de outras questões não menos graves. As cidades, com exceção do plano nacional de construção de moradias, estão também ausentes do debate e que diz respeito a mais de 70% da população brasileira hoje. O problema da locomoção humana nas grandes cidades, que, pela priorização do modelo de transporte vigente, ameaça literalmente parar num futuro próximo os grandes centros urbanos, é grave, mas antipopular. Quem sabe a campanha ‘Dia Mundial Sem Carro’, hoje [22 de setembro] celebrado em muitas cidades pelo mundo afora, possa contribuir mais para este debate, que diz respeito à qualidade de vida.
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
(Ecodebate, 24/09/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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