Dia mundial sem carro em contraponto à mobilidade motorizada individual, artigo de Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho
O dia 22 de setembro é celebrado no mundo inteiro como o Dia sem Carro. Essa iniciativa nasceu da proposta de ONGs ambientalistas e ligadas às questões de mobilidade para mostrar à população que é possível um padrão de mobilidade mais humano, com menos dependência do transporte individual, estimulando o uso do transporte público e o transporte não motorizado. Atualmente, várias prefeituras espalhadas pelo mundo aderiram ao Dia Mundial sem Carro, restringindo o acesso de veículos privados motorizados nas suas áreas mais congestionadas pelo menos em um dia útil do ano. Mas, afinal, qual o problema de um sistema de mobilidade baseado no transporte individual? E no Brasil, esse fenômeno também está ocorrendo?
Assim como ocorre em outras partes do mundo, o padrão de mobilidade da população urbana brasileira vem sofrendo fortes alterações nos últimos anos devido à intensificação do uso dos meios de transportes privados, com fortes impactos sobre a eficiência dos sistemas de transportes públicos e aumento das deseconomias urbanas.
[Leia na íntegra]Ao mesmo tempo em que, nos últimos 10 anos, o volume de vendas de automóveis aumentou a uma taxa de 9% a.a e a venda de motocicletas a 19% a.a, os sistemas de ônibus urbanos, que respondem por cerca de 90% da demanda de transporte público no Brasil, tiveram uma perda de 20% no seu volume de passageiros pagantes transportados, apesar da inversão tímida dessa tendência de queda observada nos últimos dois anos.
A proliferação do transporte privado em detrimento do transporte público coletivo, que a princípio pode significar aumento do bem estar individual, acaba por trazer sérias consequências para as cidades: intensificação dos congestionamentos urbanos (significando grandes perdas de tempo e produtividade dos cidadãos); maior emissão de poluentes, com destaque para as emissões de CO2, principal elemento de formação do efeito estufa e cuja emissão pelo transporte urbano no Brasil vem crescendo em um ritmo de 3% ao ano segundo dados da ANTP; e finalmente o aumento do número de acidentes de trânsito, que provocam mais de 35.000 mortes por ano, com destaque para os atropelamentos urbanos (cerca de 25% do total) e, mais recentemente, os óbitos em acidentes de motocicleta, que passaram de 700 por ano, em meados da década passada, para mais de 7.000 ao ano atualmente.
Segundo estudos do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP (SALDIVA,2007), cerca de 3.000 mortes por ano na Região Metropolitana de São Paulo estão relacionadas à poluição do ar, representando um custo anual de cerca de R$ 1,5 bilhão para a cidade, somando com o tratamento das cerca de 200 doenças associadas. Esse número de mortes em SP é um indício de que, no Brasil, o problema é bastante sério, apesar de não existirem estatísticas focalizadas no problema e, consequentemente, faltar uma conscientização geral por parte da população como ocorre, por exemplo, no caso das cerca de 35.000 mortes por acidentes de trânsito no país por ano.
Uma pesquisa da Universidade de Berkeley (Jerrett, 2009) com uma amostra de 500 mil pessoas mostra que, em regiões com alta concentração de ozônio (O3) na troposfera[1] – devido à presença dos precursores do ozônio, principalmente os óxidos nitrosos (NOx) e hidrocarbonetos (HC) liberados na queima dos combustíveis fósseis –, a probabilidade de uma pessoa morrer por problemas respiratórios aumenta em 30%, e a cada 10 pontos percentuais de aumento na concentração de ozônio esse índice aumenta em 4%. Segundo a pesquisa, são quase 8 milhões de mortes por ano por causas respiratórias no mundo.
No Brasil, os grandes centros urbanos sofrem mais com a concentração excessiva de ozônio na atmosfera. Em São Paulo, por exemplo, que tem uma tradição de monitoramento da qualidade do ar, dados da CETESB informam que, desde 2007, pelo menos 25 das 32 estações de monitoramento tiveram ultrapassados os níveis máximos de concentração desse poluente estabelecidos na legislação. Dos principais poluentes atmosféricos lançados pelos veículos motorizados, a concentração de dois deles na atmosfera da RMSP no ano de 2005 foi fortemente influenciada pela circulação de veículos pesados, principalmente os caminhões a diesel — MP e NOx —, enquanto as concentrações de monóxido de carbono (CO) e dos hidrocarbonetos (HC) foram afetadas principalmente pelos veículos de ciclo Otto (automóveis e motocicletas).
Outro aspecto negativo do excesso de veículos privados nas ruas é quanto à piora das condições de operação dos serviços de transporte publico. A degradação da oferta desses serviços e sua consequente perda de competitividade acabam gerando impactos sociais em função do aumento das tarifas. Menos pessoas pagando pelo serviço associado com maiores tempos de viagem significam maiores custos por passageiro transportado, pressionando os custos tarifários para cima. Em relação aos valores praticados na década passada, as tarifas de ônibus urbanos, que servem de base para tarifação dos demais sistemas de transporte, estão cerca de 20% mais caras em termos reais, considerando também o efeito do aumento de preço dos principais insumos de transporte (diesel e equipamentos) ocorrido nos últimos anos. O aumento de preços do transporte público impacta fortemente o orçamento das pessoas de baixa renda, que, em geral, não possuem benefícios tarifários, fazendo com que elas utilizem outro meio de deslocamento, como longas caminhadas, por exemplo, ou simplesmente deixem de se deslocar, agravando o problema da exclusão social — a ANTP estimou em 38% o percentual de viagens a pé realizadas em 2007 nas cidades brasileiras.
Discute-se muito sobre as políticas para atingir uma mobilidade mais sustentável nos grandes centros urbanos sem prejudicar o desenvolvimento da indústria automobilística no Brasil, que gera empregos e movimenta a economia. Sem dúvida isso é um desafio complexo, passando por políticas que promovam o uso racional dos veículos privados sem prejudicar o tão sonhado desejo de possuir um veículo próprio por parte da população, principalmente agora que as camadas mais pobres estão tendo acesso a esse bem durável. Muitas medidas podem se encaixar nesse objetivo, mas há um certo consenso de que a melhoria e o barateamento do transporte público associados à melhoria da infraestrutura urbana para os deslocamentos não motorizados são fundamentais para contrabalancear a escalada do transporte individual. Esse talvez seja o primeiro e mais importante passo para que as cidades brasileiras fiquem mais sustentáveis, inclusivas e agradáveis para se viver e conviver.
* Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho é técnico de planejamento e pesquisa da Dirur (Ipea)
Bibliografia
CETESB – Relatório Anual de Qualidade do Ar no Estado de São Paulo – 2007
Michael Jerrett, Ph.D., Richard T. Burnett, Ph.D., C. Arden Pope, III, Ph.D., Kazuhiko Ito, Ph.D., George Thurston, Sc.D., Daniel Krewski, Ph.D., Yuanli Shi, M.D., Eugenia Calle, Ph.D., and Michael Thun, M.D — LONG-TERM OZONE EXPOSURE AND MORTALITY – New England Journal of Medicine, Volume 360:1085-1095, March 12, Number 11 – 2009.
SALDIVA, P.H.N. ET ALII – Programa de Controle de Emissões Veiculares – PROCONVE – Emissões de Poluentes Atmosféricos por Fontes Móveis e Estimativa dos Efeitos em Saúde na RMSP: Cenário Atual e Projeções – Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP – 2007
ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana. Site: http://portal1.antp.net/site/simob/default.aspx
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[1] A concentração de ozônio na camada estratosférica é benéfica à humanidade, pois protege a incidência de raios ultravioleta prejudiciais à saúde. Ao contrário disso, a alta concentração de ozônio em altitudes mais baixas causa problemas respiratórios nos seres humanos.
Artigo socializado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e publicado pelo EcoDebate, 23/09/2010
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