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Artigo

A economia dos recursos hídricos: os desafios da alocação eficiente de um recurso (cada vez mais) escasso, artigo de Antonio Eduardo Lanna

RESUMO

O artigo apresenta e analisa os cenários prospectivos de recursos hídricos com base nos quais foram estabelecidas as diretrizes, as metas e os programas do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). Em razão das informações, são analisadas as perspectivas futuras dos quatro setores usuários de água com maiores dinâmicas e possibilidades de conflito: agricultura irrigada, geração de energia, navegação e saneamento básico. Uma questão que não pode ser desconsiderada é a das mudanças climáticas e como poderão afetar as disponibilidades e os usos da água. Dessa análise, algumas conclusões e recomendações vão ser enunciadas, tendo por objetivo a antecipação do futuro e o preparo dos agentes públicos, privados e do terceiro setor para essa tarefa de promoção do uso racional da água, tendo em vista o desenvolvimento sustentável. Ou, como dizem economistas, de alocação ótima de um recurso escasso.

Palavras-chave: Recursos hídricos, Economia, Cenários, Usos setoriais, Brasil, Plano Nacional de Recursos Hídricos.


Introdução

A ECONOMIA é a ciência social que tem seu foco dirigido à alocação ótima de recursos escassos. Os usos múltiplos da água e a dependência das sociedades humanas e dos ecossistemas ante esse elemento têm-no tornado cada vez mais escasso. Essa escassez se revela por meio da falta do recurso, propriamente dito, ou por conflitos de uso.

A escassez faz da água um dos interesses da economia e, em razão disso, é atribuído a ela valor econômico. Ao contrário de muitas afirmações, não foi a lei que atribuiu esse valor econômico à água, pois essa não é uma condição legal. O valor econômico decorre de que todo recurso escasso acaba por afetar as relações econômicas, e dessas pode-se estimar seu valor econômico. A água escassa para as primeiras necessidades da vida humana onera os que por essa condição são afetados, ônus derivado da necessidade de buscar água cada vez mais longe e, por isso, com custos cada vez maiores. Os que sofrem com essa situação, se não puderem pagar os custos crescentes, terão que utilizar parte do seu tempo para a busca de água, reduzindo suas produtividades nas atividades que mantêm as suas subsistências. Por causa disso, as propriedades afetadas se desvalorizam. São exemplos da cadeia de efeitos que a escassez de água gera pela via econômica. Os custos revelados, seja para buscar água mais longe seja pela perda de produtividade ou pela perda de valor de mercado da propriedade, são alternativas para estimativa do valor econômico da água.

Assim, quando a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n.9433/97) dispõe em seus fundamentos que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico” (art. 1º, inc. II), ela está sendo redundante: o valor econômico decorre automaticamente dessa limitação ou escassez. Além disso, nos mesmos fundamentos, é disposto que “em situações de escassez o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais” (inc. III) e “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas” (inc.IV). No primeiro caso, é apresentado um critério de alocação em situações de escassez, privilegiando o uso para as primeiras necessidades da vida humana e animal; e no segundo declara a lei ser de interesse da sociedade o uso múltiplo da água, obviamente quando as situações de escassez não se apresentem. Finalmente, ainda na sua parte introdutória, a lei reconheceu como objetivo da política “a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável” (art. 2º, inc. II). Utilização “racional com vistas ao desenvolvimento sustentável” é, sem dúvida, um conceito econômico.

Essas questões formam um preâmbulo de uma constatação relevante: a água é um patrimônio ambiental brasileiro, de interesse estratégico, e que se constitui em uma vantagem comparativa em termos mundiais. Afinal, o Brasil é o país que detém as maiores quantidades de recursos hídricos, com algo em torno de 14% das disponibilidades mundiais. Se esse recurso for usado racionalmente visando ao desenvolvimento sustentável, ou seja, com eficiência econômica, eqüidade social e sustentabilidade ambiental, e no longo prazo, virá a ser cada vez mais uma vantagem competitiva que contribuirá para colocar o país, no futuro, no elenco dos países com maiores índices de desenvolvimento humano. Reconhecendo isso, a lei também colocou nos seus fundamentos um dispositivo constitucional: “a água é um bem de domínio público”, da União ou das unidades federadas, de forma a poder ser definidas as questões de alocação racional com maior controle estatal.

Isso posto, cabe perguntar: como o país está se preparando para usar a água racionalmente, visando ao desenvolvimento sustentável? Quais os setores usuários de água que se prenunciam como os com maior dinâmica e para os quais deve estar mais atenta a administração pública das águas? Em outras palavras: quais os cenários de recursos hídricos que se prenunciam e que devem pautar as decisões relacionadas à gestão dos recursos hídricos?

Essas são perguntas a que este texto buscará responder. Inicialmente, serão apresentados e analisados os cenários prospectivos de recursos hídricos com base nos quais foram estabelecidas as diretrizes, as metas e os programas do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). Em razão dos resultados apresentados, serão analisadas as perspectivas futuras dos quatro setores usuários de água com maiores dinâmicas e possibilidades de conflito: agricultura irrigada, geração de energia, navegação e saneamento básico. Uma questão subjacente, que não pode ser desconsiderada, é a das mudanças climáticas e como poderão afetar as disponibilidades e os usos da água. Dessa análise, algumas conclusões e recomendações poderão ser enunciadas, tendo por objetivo a antecipação do futuro e o preparo dos agentes públicos, privados e do terceiro setor para essa tarefa de promoção do uso racional da água, tendo em vista o desenvolvimento sustentável ou, como diz a economia, de alocação ótima de um recurso escasso.

Macrocenários mundial, nacional e regional

O PNRH adotou cenários mundiais (Quadro 1) e nacionais (Quadro 2) elaborados pela consultora Macroplan (Brasil, 2006). A partir deles, foram elaborados os cenários de recursos hídricos para 2020 (Quadro 3) cuja articulação é resumida na Figura 1 por seis trilhas (o leitor poderá verificar as trilhas pelas cores e números nas setas que ligam as alternativas consideradas para cada incerteza crítica) que levam em consideração hipóteses de comportamento de cinco incertezas críticas:

1 atividades econômicas da indústria, agricultura e pecuária;
2 implantação de usinas hidrelétricas;
3 manutenção e expansão da rede de água e esgotos tratados;
4 implementação institucional do aparato de gestão dos recursos hídricos;
5 investimentos públicos em proteção ambiental e dos recursos hídricos.

Das seis trilhas, apenas quatro (trilhas 1, 2, 4 e 6) foram consideradas plausíveis, em razão dos suportes que alcançariam entre os atores sociais, e duas delas foram supostas convergir para o mesmo cenário.

Nas visões prospectivas, quatro usos de água aparecem com dinâmica relevante e potencial de estabelecer conflitos, seja pelo uso expressivo de água seja pelas interferências que causam no regime hidrológico e hidráulico:

1 a agricultura irrigada, maior usuário de água em qualquer região do país;
2 a geração de energia elétrica, que no Brasil tem a base hídrica como preponderante e que, não obstante ser um uso não-consuntivo, promove importantes alterações nos regimes hidrológicos e hidráulicos dos corpos de água;
3 a navegação, outro uso não-consuntivo da água, mas que demanda regimes hidrológicos e hidráulicos que podem estabelecer restrições aos usos anteriores;
4 o saneamento ambiental, ou mais especificamente a assimilação de esgotos pelos corpos de água, de cujo equacionamento depende a qualidade hídrica e sua adequação às demandas, em especial às relacionadas à segurança alimentar humana e animal.

Esses usos de água serão analisados prospectivamente visando às suas projeções a partir da avaliação da conjuntura atual e dos elementos que conformam os possíveis futuros dos recursos hídricos.

Agricultura irrigada

Esse uso estabelece a maior pressão quantitativa sobre as disponibilidades hídricas em todas as regiões brasileiras. As projeções apresentadas em Brasil (2007) para cada cenário do Plano Nacional de Recursos Hídricos são transcritas no Quadro 4. Cabe enfatizar que dos cerca de 3,5 milhões de hectares atualmente irrigados no Brasil, 1,2 milhão é de arroz irrigado por inundação no Sul, nas regiões hidrográficas do Atlântico Sul e Uruguai. Nas regiões hidrográficas localizadas no semi-árido brasileiro, Parnaíba, Atlântico Oriental e São Francisco, encontram-se cerca de 0,8 milhão de hectares irrigados utilizando sulcos de infiltração, aspersão e métodos de irrigação localizada. Os restantes dois milhões de hectares são distribuídos nas regiões hidrográficas do Paraná, Atlântico SE, Atlântico Leste e Tocantins-Araguaia, especialmente, usando pivôs centrais e aspersão convencional (Wagner, 2007). Essa categorização é relevante para sintetizar a situação: grande uso de água no Sul, com possibilidades de aumento de eficiência no uso de água sem alteração da tecnologia; grande uso de água no semi-árido, com potencial de aumento de eficiência com alteração de tecnologia e situação heterogênea no resto do país, com possibilidades também diversificadas de aumento de eficiência.

Outro dado relevante é que a grande maioria das áreas irrigadas é privada. Os perímetros públicos atingem cerca de 160 mil hectares somente, localizando-se principalmente na região semi-árida. Isso mostra que uma visão prospectiva da irrigação deve ser buscada junto ao setor privado, bastante disperso, embora o setor público possa atuar na indução da expansão da área irrigada e assumir papel relevante, como historicamente ocorreu.

Quanto à participação pública direta, mais restrita ao semi-árido, o Quadro 5 mostra que cerca de um milhão de hectares estão desapropriados, e quase 0,3 milhão está com infra-estrutura implantada em projetos públicos, dos quais apenas 160 mil ha estão ocupados e apenas cem mil em operação (Wagner, 2007). Isso caracteriza uma situação de grande ociosidade que poderá, na medida em que o marco regulatório do setor seja consolidado, aumentar rapidamente a área irrigada na região, por meio de parcerias público-privadas. O quantitativo apresentado na projeção mais otimista para 2020 nas regiões do São Francisco, do Parnaíba e do Nordeste Oriental pode, portanto, passar de 1,35 milhão para algo em torno de 1,7 milhão, pressionando ainda mais a escassa disponibilidade hídrica da região e estabelecendo conflitos de uso cada vez mais intensos.

Uma incerteza crítica é representada pela introdução da irrigação no cultivo de cana-de-açúcar para produção do etanol. A fabricante Valley (2007) informa que podem existir três modalidades de irrigação, com características e custos apresentados no Quadro 6.

O aumento de produção de cana é substancial. A Netafim (2007), empresa de equipamentos e de projetos de irrigação, informa que a fertirrigação por gotejamento apresenta resultados significativos nesses termos. A produtividade média alcançaria algo entre 120 e 150 t/ha, com oito a dez cortes, e renovação feita a cada quinze anos. No cultivo convencional, a produtividade seria da ordem de 50 a 85 t/ha, com cinco a seis cortes e renovação a cada cinco anos.

A irrigação da cana pode, portanto, ser uma opção interessante ao agricultor, especialmente aquele situado em regiões onde ocorre a pressão pela terra para produção de alimentos, de forma a aumentar a produção na mesma área. Em razão da relativamente maior demanda tecnológica da agricultura irrigada, é possível que a introdução seja intensificada nas regiões mais próximas aos grandes centros de consumo, situadas no triângulo formado pelas três grandes metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Isso poderá fazer que as projeções para 2020 da área irrigada nas regiões hidrográficas do Paraná e do Atlântico SE, em torno de 1,7 milhão no cenário mais dinâmico do PNRH, sejam ultrapassadas.

Geração de energia elétrica

O setor responsável por esse uso é o mais organizado do país. Por conta disso, foi possível obterem-se valores referentes ao Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica (PDEEE) 2007-2016 que permitem avaliar os dados anteriormente apresentados nas projeções de capacidade instalada de geração em hidrelétricas, para os diferentes cenários nacionais no PNRH, que estão no Quadro 7.

Embora o setor elétrico costume trabalhar com uma taxa de crescimento média do PIB superior às adotadas nos cenários do PNRH, e por isso seria de esperar que os valores se apresentassem superiores, cabe comentar as discrepâncias apresentadas entre o PNRH e o PDEEE 2007-2016 com relação à Região Amazônica, em especial, e também a do Paraná. Especialmente a primeira apresenta um potencial instalado em 2016 10.000 MW superior à projeção adotada no cenário “Água para todos” do PNRH. A Figura 2 ilustra o incremento que haverá em cada região hidrográfica de acordo com o PDEEE 2007-2016, destacando, ainda mais do que no PNRH, o impacto na Região Amazônica.

potencial instalado

No que se refere a essa região hidrográficas, as questões ambientais são importantes. Interlocutores do Setor Elétrico têm uma posição clara com respeito às restrições ambientais às usinas hidrelétricas. Em primeiro lugar, parece-lhes que a energia hidrelétrica é mais limpa ambientalmente falando do que as demais alternativas disponíveis para geração de grandes blocos de energia. Entre outros fatores, porque as hidrelétricas previstas têm reservatórios pequenos, quando não são a fio de água. E caberá à sociedade a decisão sobre se a expansão da geração de energia será realizada optando-se por essa fonte, como tradicionalmente ocorreu, ou se outras fontes, talvez não tão limpas, deverão entrar mais intensamente na matriz de energia elétrica. Existe também a expectativa de que, quando os custos de energia aumentarem, a sociedade acabará optando pelas hidrelétricas, e que mesmo as restrições aos reservatórios poderão ser atenuadas, permitindo maior geração. Essa é uma polêmica que se avizinha e que demanda a capacidade de negociação por parte dos agentes, de forma a conduzir da melhor forma a concertação desejável.

Navegação

Esse uso de água, inserido no setor de transportes, tem atualmente em fase de aprovação o seu Plano Nacional de Logística e Transporte (PNLT), no qual se acham lançadas as hidrovias que deverão fazer parte da matriz de transportes. Pode-se perceber, porém, que os interesses do setor de transportes, enunciados por seus representantes, vão mais além do que prevê o PNLT. Eles partem da premissa de que um rio navegável deve sempre manter essa característica, independentemente da construção de uma barragem. Mesmo que a navegação não ocorra no presente, ela poderá ser uma opção de interesse social no futuro, e que, por isso, deve sempre ser prevista a construção de eclusas nesses barramentos, mesmo que elas não sejam em curto prazo implementadas. Isso diverge da posição do Setor Elétrico, que alega que a previsão de uma eclusa aumentaria os custos das hidrelétricas, e mesmo inviabilizaria algumas, fazendo que a sociedade pague mais pela energia que consome.

Trata-se, portanto, de uma decisão que extrapola o âmbito setorial, tornando-se obrigatoriamente tema a ser considerado nas instâncias mais altas do Sistema Nacional de Recursos Hídricos: em que situações seria justificável prescindir da previsão de uma eclusa em um barramento de rio e, com isso, interromper a possibilidade de navegação em um trecho fluvial, por conta de tornar mais baratas as hidrelétricas e mais barata a energia gerada? Ou, em sentido inverso: qual o valor de redução do custo de energia que justificaria a interrupção de alternativa presente ou futura de navegação?

Problemas com maior destaque de conflitos entre hidrelétricas e navegação ocorreriam nas regiões hidrográficas do Tocantins-Araguaia, do Parnaíba, do São Francisco (em razão de usinas existentes), do Atlântico SE (no Rio Paraíba do Sul), do Paraná (em razão de usinas existentes).

Esse outro ponto de conflito entre dois setores usuários de água – curiosamente usuários não-consuntivos – merece atenção dos gestores e demanda certamente a promoção de articulação entre eles. Note-se que restrições à geração de energia hidrelétrica, seja proveniente da navegação seja proveniente de restrições ambientais, muito provavelmente levarão à intensificação de uso de energia menos limpa, como a termelétrica com base no carvão mineral, ou que ainda apresentam certa rejeição por parte dos agentes, como a termelétrica com base em combustível nuclear. E, em qualquer caso, haverá incremento no custo da energia, o que virá a extrapolar aos setores mencionados a discussão. O dimensionamento desses custos ambientais e econômicos não é tarefa trivial, mas certamente é de relevante interesse para as negociações intersetoriais que deverão ocorrer.

Saneamento: esgotamento sanitário

Em novembro de 2007 foi divulgado pela ONG Trata Brasil (2007) um estudo que contratou ao Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas com título “Trata Brasil: Saneamento e Saúde”. Trata-se da primeira etapa de uma pesquisa sobre os impactos sociais de investimentos em saneamento básico, apresentando um panorama preocupante. De acordo com o documento, mantidas as tendências de expansão dos serviços de saneamento dos últimos quatorze anos, a universalização de acesso ao esgoto tratado, tal como é previsto no Programa de Modernização do Setor de Saneamento, ocorreria somente em 56 anos.

Com efeito, existe um grande atraso no país no que se refere a essa categoria de uso: a disposição de resíduos no meio hídrico. Os valores expressivos de custos para que seja atingida a meta de universalização permitem dúvidas sobre se o Setor de Saneamento terá condições de arcar com os investimentos necessários que, em termos globais, alçam a 120, 150 e 180 bilhões de dólares por ano, nos anos 2010, 2015 e 2020, respectivamente, para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (Brasil, 2003). Além disso, pode ser esperado que a meta de cobertura integral não seja atingida e que em certos casos haja necessidade de opção entre investir no abastecimento de água ou no esgotamento sanitário. Neste último caso, não resta dúvida de que o investimento no primeiro sistema é de maior viabilidade política e social do que no segundo. Mesmo as alegações de que a cobertura de esgotamento sanitário tenha correlação com a saúde pública, o que poderia ser um argumento em seu favor, não resistem à análise. Estudo do Ipea (Mendonça & Seroa da Mota, 2005) estimou os custos de redução de uma morte na faixa da população de zero a quatro anos, usando diversas alternativas, entre elas o aumento da cobertura de água tratada e da cobertura de coleta de esgotos. Essas alternativas apresentaram custos maiores do que a redução do analfabetismo da população feminina maior que quinze anos e o aumento do número de leitos hospitalares. Além disso, sai 40% mais barato salvar uma vida na faixa analisada investindo em abastecimento de água do que em esgotamento sanitário. Dessa forma, a tentativa de atrelar a necessidade de saneamento básico à saúde pode não ser bem-sucedida.

Cabe mencionar, entretanto, que os custos sociais, econômicos e ambientais da poluição dos corpos de água são expressivos e vão além de questões de saúde pública. E a principal causa é a ausência ou carência dos sistemas de coleta e tratamento de esgotos.

Por isso, o país deve encontrar alternativas para induzir ao tratamento de esgotos, como forma de recuperação e controle da poluição das águas, já que os recursos mais facilmente se dirigirão a outras opções, quando a redução da mortalidade infantil estiver em pauta. é muito provável que instrumentos econômicos tenham que ser adotados para subsidiar parcialmente a implementação desses sistemas, a exemplo do Programa Nacional de Despoluição de Bacias da Agência Nacional de Águas (Prodes-ANA).

Mudanças climáticas

As mudanças climáticas já são percebidas como fator de uma maior dinâmica atmosférica, resultando em anomalias mais freqüentes no regime hidrológico. O Grupo Intergovernamental de Especialista sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Changes – IPCC, 2001) resumiu suas conclusões em relatório destinado a responsáveis por políticas, entre as quais se encontram:

1 O sistema climático do planeta mudou de maneira importante em escala nacional e mundial desde a época pré-industrial, e algumas dessas mudanças podem ser atribuídas a atividades humanas. Elas aumentaram as concentrações atmosféricas de gases do efeito estufa e de aerossóis. Os primeiros, de origem antropogênica, alcançaram, durante a década iniciada em 1991, os níveis mais altos registrados, especialmente em razão do consumo de combustíveis fósseis, da agricultura e da alterações de uso do solo. Provas novas e mais convincentes atribuem o aquecimento observado nos últimos cinqüenta anos às atividades humanas.
2 As mudanças climáticas regionais afetaram a muitos sistemas biológicos e físicos, e existem indícios preliminares de que os sistemas sociais e econômicos também foram afetados. Os sistemas hidrológicos, assim como os ecossistemas terrestres e marítimos foram afetados em várias partes do mundo. O incremento de custos associados com danos ocasionados por fenômenos meteorológicos e variações regionais do clima indica um aumento da vulnerabilidade às mudanças climáticas. Algumas indicações preliminares sugerem que alguns sistemas sociais e econômicos foram afetados pelos aumentos recentes de secas e inundações e ocorreram maiores perdas econômicas devido a efeitos meteorológicos catastróficos. Todavia, como esses sistemas também foram afetados por mudanças nos fatores socioeconômicos, como migrações e alterações no uso do solo, resulta difícil quantificar os impactos relacionados exclusivamente às mudanças climáticas, de causas antropogênicas ou naturais.
3 Em todos os cenários de emissões projetados pelo IPCC é previsto o aumento nesse século das concentrações médias de CO2 – de 368 ppm em 2000 para 540 a 970 ppm -, da temperatura média da superfície do planeta – com incrementos entre 1,4 e 5,8 ºC – e do nível médio do mar – com incrementos entre 0,09 a 0,88 m. A precipitação média anual deverá aumentar, mas em escala regional podem ocorrer incrementos ou decrementos da ordem de 5% a 10% nesse século. é muito provável que ocorram aumentos na variabilidade anual das precipitações médias (ou seja, na sua variância estatística) na maioria das regiões. O escoamento superficial médio anual seguirá essa tendência.

No Brasil, dependendo do modelo de simulação geral da circulação atmosfera-oceano adotado, supondo-se um incremento médio anual de 1% nas concentrações de CO2, as simulações hidrológicas podem indicar reduções de até 250 mm/ano a incrementos até 150 mm/ano, nas lâminas médias de escoamento superficial anual, dependendo da região. Em ambos os modelos, ocorrem reduções na Amazônia.

Uma análise mais detalhada sobre o impacto das mudanças climáticas no país foi apresentada pelo governo brasileiro em 2004. Em linhas gerais, e ratificando o relatório do IPCC, percebe-se o aumento dos indícios dos impactos das mudanças climáticas nos sistemas hidrológicos brasileiros exigindo adaptações da gestão de recursos hídricos. Incluem, entre outras, as que seguem:

• um reforço do monitoramento hidroclimatológico para alertas antecipados de condições críticas;
• o uso de princípios de precaução na análise de intervenções antrópicas no ciclo hidrológico;
• a implementação de sistemas de gestão de recursos hídricos flexíveis e adaptativos que atendam às demandas de um ambiente em lenta, porém temporalmente longa alteração;
• a inserção da dimensão do risco hidrológico, nas análises de intervenções, em conjunto com os critérios usuais de natureza econômica, financeira, ambiental, social e política.

Conclusões

As seguintes conclusões podem ser enunciadas tendo em vista os subsídios obtidos:

• Observa-se a existência de atuais e potenciais conflitos de usos de água entre os setores mencionados – geração de energia, navegação, irrigação e saneamento – que envolvem aspectos de quantidade e qualidade de água.
• Pode ser percebido também que a dinâmica da economia brasileira está se acelerando e que os problemas podem surgir de forma mais rápida do que a prevista.
• Grandes mudanças de tendência, como a representada pelos biocombustíveis, poderão afetar decisivamente o balanço hídrico de algumas regiões hidrográficas brasileiras.
• Mudanças de percepção e de valores, representadas, por exemplo, por uma nova postura relacionada aos impactos ambientais de hidrelétricas, resultantes do encarecimento dos custos da energia, poderão assumir motricidades altas para promover alterações importantes no regime hidrológico dos rios do país.
• A percepção dos impactos das mudanças climáticas ainda não está incorporada de forma mais explícita ao planejamento dos setores. Em razão disso, é necessário que o país leve esse aspecto em consideração na formulação das suas políticas de recursos hídricos.

Recomendações

Considerando o exposto, cabem as seguintes recomendações:

• A demanda de um Observatório das Águas para acompanhar e prospectar a evolução dos usos de água no Brasil deve ser uma grande prioridade do país, de forma a serem antecipadas as grandes mudanças que são indicadas nos usos de água do país, com significativos impactos no regime hidrológico.
• Especial atenção deve ser dirigida à cadeia produtiva do etanol, e sobre a hipótese de ser irrigada a cana-de-açúcar.
• A questão ambiente versus hidrelétricas deverá ser igualmente acompanhada, pelo potencial de grandes polêmicas que gerará, e pela demanda de instituições capacitadas no encaminhamento da negociação social que é requerida para sua concertação.
• Outra questão polêmica se refere à divergência entre o setor de transportes e de energia elétrica com relação à navegabilidade dos cursos de água, e requer igualmente o fortalecimento institucional e capacidade de negociação dos atores envolvidos.
• Finalmente, há necessidade de o país incorporar a questão de mudanças climáticas de forma mais incisa na mente e no coração dos atores sociais relacionados à água, de forma que medidas precaucionárias possam ser adotadas a tempo.

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Antonio Eduardo Lanna é engenheiro civil, mestre em Hidrologia Aplicada, PhD em Recursos Hídricos. Consultor privado e professor colaborador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). @ – edulanna@gmail.com

LANNA, Antonio Eduardo. A economia dos recursos hídricos: os desafios da alocação eficiente de um recurso (cada vez mais) escasso. Estud. av., São Paulo, v. 22, n. 63, 2008 . Disponível em . acessos em 08 set. 2010. doi: 10.1590/S0103-40142008000200008.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142008000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
EcoDebate, 16/09/2010

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