Geotecnica brasileira vive a ‘ditadura da solução’, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
“A formulação de um problema é, muitas vezes, mais importante que sua solução, a qual vai depender simplesmente de uma habilidade matemática ou experimental. Fazer novas perguntas e considerar novas possibilidades para enfocar velhos problemas através de um novo ângulo, isso sim exige imaginação criadora e indica o verdadeiro progresso da ciência”. Einstein
[EcoDebate] Como muitas áreas da engenharia nacional, a Geotecnia (Engenharia Geotécnica e Geologia de Engenharia) está sendo surpreendida por um notável nível de demanda de trabalhos, decorrência direta do novo surto de desenvolvimento econômico que se consolida e movimenta o país em todos seus campos de atividade.
Parece ser unânime entre os mais destacados geotécnicos brasileiros a percepção prática de que a Geotecnia brasileira não está conseguindo atender a volumosa demanda de serviços a ela hoje colocada em um nível desejável de qualidade, fato que, como não poderia deixar de ser, preocupa a todos, consideradas suas graves conseqüências. Analisemos esse preocupante cenário mais detidamente.
Com a entrada em cena da recessão econômica que atingiu o país do final da década de 70 ao início da década de 90 do séc. XX, a conseqüente redução de investimentos públicos e privados, o enfraquecimento do setor empresarial de consultoria e projetos e, especialmente, com o fim das equipes técnicas permanentes das empresas públicas como decorrência de sua privatização, o ambiente de enorme efervescência de idéias que marcou virtuosamente a Geotecnia brasileira nas décadas de 60 e 70 foi progressivamente perdendo energia e consistência, dando lugar a um ambiente mais caracterizado pelo desalento e pela dispersão profissional. Como não poderia deixar de ser, esse novo cenário, frontalmente desestimulante de um criativo e desafiante exercício profissional, acaba também por contaminar e comprometer, em seus estratos discentes e docentes, o espaço acadêmico de formação dos novos geotécnicos brasileiros.
Nesse prolongado período, a Geotecnia brasileira, em que pesem elogiáveis esforços individuais, caminha à deriva, perde seu virtuoso viés teórico e crítico e se vulnerabiliza diante de modismos tecnológicos que se revezam no oferecimento de soluções milagrosas para toda a sorte de problemas.
Via de regra a decisão por uma determinada solução de engenharia já não advém mais da conclusão de um preciso diagnóstico do problema e dos fenômenos com que se está lidando. Já não é mais o problema que busca a solução, mas sim a solução prêt-à-porter (“pronta para usar”) que comercialmente busca problemas, sejam esses quais forem, para oferecer-se como desejada panacéia tecnológica. Como o caricato “médico de bula”, surge o “geotécnico de catálogo”.
Como sinal e sintoma dessa inversão de valores científicos, analisem-se os mais comuns e naturais patrocinadores dos eventos técnicos do campo da Geotecnia. Até o início dos anos 80 destacavam-se entre esses patrocinadores as empresas públicas e as empresas de consultoria e projetos. Hoje, esse importante papel é cumprido especialmente pelas mais diversas empresas produtoras de insumos e componentes de soluções geotécnicas. Lembremos algumas dessas numerosas e onipresentes ofertas tecnológicas: gabiões, tela argamassada, geotéxteis, geomembranas, solo grampeado, solos reforçados, jet-grounting, CCP, enfilagens especiais, micro-estacas, estacas-raiz, geogrelhas, blocos intertravados, malhas metálicas, etc., etc., etc.
Como um parêntesis, consideremos: sem dúvida, o aperfeiçoamento de nosso leque de soluções é necessário e bem-vindo, por disponibilizar continuamente novas e eficazes ferramentas para o trato de novos e velhos problemas geotécnicos, e as anteriormente mencionadas são todas boas ferramentas para suas específicas finalidades. A questão apontada não está na qualidade das soluções disponibilizadas, mas no risco em se abordar um problema geotécnico com a predisposição, ou com a pré-intenção, de utilizar-se essa ou aquela solução.
Enfim, a razão dessa disfunção metodológica está no descaso, ou na desimportância que se confere à necessidade de uma boa investigação fenomenológica. O resultado prático é a profusão de obras e serviços geotécnicos que pouco têm a ver com os reais fenômenos geológico-geotécnicos a que se reportam. Uma enganosa facilidade de momento que leva inexoravelmente a futuras complicações, a problemas que vão desde graves acidentes a enormes despesas com serviços de sobre-manutenção, sobre-conservação e recuperação. Como sempre, uma “esperta” economia em projeto e em consistentes estudos preliminares continua vitimando o orçamento de contratantes, impondo-lhes com freqüência graves problemas de ordem logística e jurídica. Como também colaborando para corroer sua imagem institucional.
A reversão dessa disfunção passa pela disposição de contratantes, projetistas, empreiteiras e academia em retornar à velha e sábia verdade de ordem metodológica: a execução de serviços geotécnicos, de qualquer natureza, inicia-se, indispensavelmente, pela exata compreensão qualitativa e quantitativa do fenômeno geológico-geotécnico que se está enfrentando. Somente essa compreensão, para a qual uma rica e colaborativa integração entre os conhecimentos geológicos e geotécnicos é essencial, permitirá a adoção de uma solução perfeitamente solidária e adequada ao fenômeno enfrentado. Adicionalmente, a segurança proveniente dessa compreensão libera o projetista para a adoção de Coeficientes de Segurança mais modestos e para uma maior ousadia na escolha da solução de engenharia. Do que decorrerão, em relação direta, obras mais econômicas e eficazes. Enfim, e resumindo, retornar ao primado da inteligência e do bom senso.
Nesse contexto, o recente Cobramseg 2010, realizado pela ABMS em Gramado – RS, com seus mais de 1.300 inscritos e com o calor das boas discussões técnicas ocorridas, representa um salutar fator de otimismo, e pode estar marcando o início de uma nova era de criatividade e entusiasmo científico para a Geotecnia brasileira.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro{at}uol.com.br)
Geólogo formado pela USP – Universidade de São Paulo em 1968; Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia; Titulação: Pesquisador V Sênior pelo IPT; Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”; Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.
EcoDebate , 14/09/2010
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