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Pelos becos sombrios da escravidão, entrevista com Kevin Bales, da organização Free the Slaves

Existem hoje 27 milhões de pessoas vivendo na condição de escravo. Nenhuma novidade: nunca na história se chegou à abolição

Com o livro inaugural Disposable People (algo como Pessoas Descartáveis), publicado em 1999, o sociólogo americano Kevin Bales tinha intenção de chocar o mundo. Queria abrir os olhos dos que achavam que escravidão era ranço do passado. Dez anos e seis livros mais tarde, sempre investigando o mesmo tema, Bales agora quer provar que a devastação ambiental tem íntima relação com a escravidão moderna – seu sétimo livro será sobre isso. Reconhece que a conscientização sobre o problema aumentou, mas ainda há um longo caminho para se chegar à abolição universal.

Fundador , criada para articular esforços globais em torno do problema, para Bales a escravidão nunca deixou de existir, apenas mudou de forma. Há mais escravos no mundo hoje que em qualquer período da história. E a vida deles não vale um vintém. Otimista, Bales não acha difícil extirpar esse câncer. Conhecimento para tanto, temos. O que falta é decisão política e recursos. Ele é categórico ao afirmar que o Brasil, apesar de muitas limitações, tem o que ensinar ao mundo nesse campo. Saiba por quê. Entrevista realizada por Carolina Rossetti, Caderno Aliás, O Estado de S.Paulo.

O que é ser escravo hoje em dia?

Durante minhas pesquisas pelo mundo, percebi que existem dois perfis de escravos. Há os escravizados já no feto, que nascem mercadoria, particularmente na Ásia. Esses geralmente trazem um vazio nos olhos. Estão paralisados na vida, sem alternativa. E há os escravos que nascem livres, como os carvoeiros que conheci no Brasil. Eles caem na armadilha dos gatos, transpiram angústia, mas querem retomar a vida. Vivem num movimento pendular que alterna esperança e desespero.

Em Disposable People, o senhor estima em 27 milhões o número de escravos no mundo, o maior da história. A escravidão foi alguma vez abolida?

Não. Nunca houve um dia na terra sem escravidão. Os primeiros documentos escritos da humanidade, que datam de 5 mil anos, incluem relatos de escravidão. Ela faz parte de nossa história desde o primeiro dia da era escrita e achamos que seja até pré-histórica. Mas certamente houve países, culturas e comunidades sem escravos. Ser escravo não é o estado natural do ser humano.

Se a escravidão é uma constante na história, como a ONG que o senhor dirige, a Free the Slaves, prevê exterminá-la em 25 anos?

Você prefere viver com ou sem esperança? Claro que é um projeto ousado, mas não o considero demasiadamente utópico. Admito que atingir essa meta exigirá muita cooperação e muitos recursos. E isso ainda não está disponível, mesmo que o custo de abolir a escravidão não seja lá tão alto em termos globais. Lembre-se de quando se erradicou a varíola. Foi há quase 20 anos que os países se reuniram para bater o martelo e decidir: vamos eliminar essa praga para sempre! Pois bem, é desse tipo de ação conjunta que precisamos. A escravidão trabalha nos limites da humanidade, vive na marginalidade da sociedade global. É crime em quase todos os países e a maioria dos cidadãos no mundo a considera moralmente errada. A escravidão moderna está próxima da extinção. Precisamos dar o empurrão final.

Saber que ainda existem escravos no mundo surpreende…

O mundo estava cego para esse problema até há alguns anos. Muitos de nós pensávamos que a única forma de escravidão era aquela do passado, a “escravidão legalizada”. E a reduzíamos à imagem de africanos trabalhando em canaviais ou fazendas de algodão. Com a explosão populacional que se seguiu ao fim da 2ª Guerra e, posteriormente, com desmantelamento da União Soviética, surge um contingente imenso de pessoas vulneráveis que caem nas mãos de redes criminosas. Não fomos capazes de ver isso de imediato, mesmo ocorrendo debaixo do nosso nariz.

A vida humana está mais barata hoje?

Com certeza. Essa foi uma das grandes surpresas que tive na minha pesquisa. No passado os escravos eram caríssimos. Comprar um escravo equivalia a comprar um equipamento sofisticado, como um trator ou um caminhão. Hoje existe um contingente enorme de pessoas em estado de vulnerabilidade social e relativamente fáceis de escravizar. Nos Estados Unidos é possível comprar um escravo doméstico por uns US$ 6 a 7 mil. Na Índia, são necessários míseros US$ 30. Ou nem isso. Em lugar de grandes somas para comprar um escravo, é só dizer para o pobre coitado: “Suas crianças estão famintas, você não tem emprego, aqui não há esperança para você. Pula já neste caminhão e vem comigo”.

Como o Brasil se situa nesse cenário?

A primeira vez que estive no Brasil foi há 13 anos, no período da redemocratização. O governo brasileiro de então, assim como outros naquele tempo, não compreendia a extensão do problema e fazia pouco ou nada para impedir o trabalho escravo. A situação mudou. O governo Lula talvez tenha sido o mais eficiente do mundo no combate ao trabalho escravo. Diferentemente da maioria dos países, o Brasil montou a chamada “lista suja”, que é divulgada na internet e lista empresas que utilizam trabalho escravo. É uma inovação maravilhosa que, pelo o que sei, nenhum outro país tem igual. Mas isso não dá ao Brasil nota 10, apenas nota 7. Ainda há muito por fazer. O país precisa treinar melhor os promotores e procuradores, priorizar processos que envolvam exploração trabalhista, tráfico de pessoas e escravidão, e garantir a punição dos criminosos. Outro problema é a reincidência. Muitos brasileiros que foram traficados para o exterior, ou explorados no país mesmo, acabam voltando à situação de exploração. O Brasil poderia evoluir inspirando-se nas leis da Índia, que, apesar de ter o maior número de escravos do mundo, tem o sistema legal mais avançado. Lá um ex-escravo recebe apoio financeiro por alguns anos, para ajudá-lo a se estabilizar na vida. Isso faz diferença.

Como permitir o livre ir e vir sem recorrer a restrições mais rígidas de imigração e ao mesmo tempo impedir o tráfico de pessoas?

Essa é uma questão difícil para muitos países. A chave é abrir um canal para facilitar e agilizar a imigração legal e segura. Se as pessoas sentem que precisam sair de seus países e tentar uma vida fora, elas merecem uma chance de fazer isso na legalidade. Outra solução é convencê-las a não abandonar seus países e ajudá-las a construir suas vidas com dignidade em seu local de origem. Sei que isso é difícil particularmente para residentes de países africanos imersos em guerra civil, violência e corrupção. Mas, de todo modo, é preciso haver informação sobre os perigos que se corre hoje ao imigrar ilegalmente.

Na semana passada, foram encontrados 70 brasileiros traficados para a Espanha para trabalhar como garotos de programa. Todos haviam contraído dívidas com os aliciadores para a emissão de passaporte e compra da passagem de avião. Essa é a forma mais comum de coerção?

É uma forma bastante usada, não sei se é a mais comum. Existem basicamente três categorias de escravidão. A mais rara é a que se dá antes mesmo de a pessoa nascer e ocorre principalmente em países africanos e árabes. Nesse caso, filhos de escravos nascem escravos, são vendidos e trocados. A escravidão por contrato usa a boa-fé da vítima para submetê-la a uma condição ilegal de trabalho. Já na escravidão por dívida a pessoa, mesmo trabalhando exaustivamente, não consegue se libertar: a dívida só aumenta, porque não é real, é um truque. Pressiona psicologicamente. Às vezes, é mais fácil, barato e eficiente, no lugar de ter que manter a vítima sob fiscalização a todo momento, conseguir controlar a mente da pessoa, pois o corpo fica manso e obediente. Um bom capataz sabe controlar as emoções da vítima, criando momentos de alívio para depois levá-la ao desespero novamente. É como treinar um animal.

Vítimas de tráfico de pessoas mais homens ou mulheres?

Pesquisas indicam que a proporção é quase igual para ambos os sexos. O que intriga nesse caso dos brasileiros na Espanha é que são homens explorados no mercado do sexo. Isso, embora não seja novidade, ocorre menos. Geralmente, homens são explorados em sua força de trabalho. A escravidão voltada para a exploração trabalhista é disparado a mais comum, depois vem a sexual. O problema da Espanha não são as brasileiras ou os brasileiros que vão para lá trabalhar no mercado do sexo. O xis do problema é a ideia que muitos homens têm de que podem usar violência ou dinheiro para obter satisfação sexual. E a solução só virá quando as pessoas entenderem que tratar os outros como commodity sexual é desumano e criminoso.

Um obstáculos no atendimento às vítimas de tráfico de pessoas, especialmente as exploradas sexualmente, é que muitas não se veem como vítimas. Entendem que a decisão de testar o inesperado foi autônoma e os abusos, resultado de sua escolha. Como lidar com esse perfil?

Vemos essa mesma reação em mulheres vítimas de violência doméstica. Com frequência elas se culpam por ter escolhido aquele marido ou por não ter lavado a louça ou posto a mesa antes de ele chegar em casa. Acabam assumindo a responsabilidade pelo abuso e absolvendo o agressor. Em se falando de vítimas de tráfico de pessoas que foram enganadas, submetidas a abusos físicos e exploradas sexualmente, precisamos dar aconselhamento psicológico não idêntico, mas semelhante ao dispensado às mulheres vítimas de violência doméstica.

Há casos em que vítimas de tráfico ou de escravidão se tornam aliciadores e recrutam outras vítimas. Como o senhor vê esses indivíduos do ponto de vista jurídico?

Essa mudança de papéis não é pouco usual. Mulheres traficadas, ao tentar ganhar algum tipo de poder e controle sobre suas vidas, acabam entrando na organização criminosa e passam recrutar amigas, irmãs e vizinhas. Portanto, de vítimas tornam-se parte do crime. E sabem melhor do que ninguém a dor que estão infligindo ao outro. É válido, portanto, que sejam tratados como criminosos, embora a punição deva ser diferente, pois é claro que precisam também de ajuda.

De que forma a destruição ambiental potencializa a escravidão?

É importante que o Brasil entenda essa relação: não é só a destruição dos recursos naturais que empurra cidadãos para a condição de escravo, mas em muitos casos o tipo de trabalho usado para efetuar essa destruição é escravo. Criminosos rompem leis ambientais, invadem áreas de preservação, exploram minério em locais proibidos, fazendo pouco caso das leis e escravizando empregados. A destruição ambiental tem impacto na vida das pessoas. Indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores, ao verem destruída sua fonte de subsistência, se tornam muito mais vulneráveis a propostas de emprego pouco confiáveis que resultam em trabalho forçado. É um ciclo.

O tráfico de pessoas é um crime transnacional e o desmantelamento de organizações criminosas desse tipo depende da cooperação entre nações. Avançamos nesse quesito?

Quase todos os países membros da ONU assinaram a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo Adicional de Palermo, que preveem a cooperação internacional nesse sentido. Sabemos o que precisa ser feito, resta saber se os governos vão dar ao tema a prioridade necessária. No livro Ending Slavery, faço uma comparação entre Brasil e Japão porque neste, apesar de ser um país rico e contar com uma polícia bem preparada, o número de pessoas escravizadas é extremamente alto. O Japão não dispõe de boas leis nem de programas sociais contra a escravidão. Mesmo tendo poder e recursos para atacar o problema.

Como tornar a escravidão um empreendimento não lucrativo?

Estimativas conservadoras calculam que a escravidão moderna movimenta entre US$ 30 e US$ 40 bilhões por ano. Para níveis de economia global isso representa uma parcela pequena, é trocado. Podemos atacar o problema partindo de dois flancos. Por um lado, tornar impossível o trabalho escravo, com a perseguição e prisão dos criminosos. A outra abordagem é justamente a ‘lista suja” desenvolvida no Brasil.

EcoDebate, 13/09/2010

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