O fim do mundo, artigo de Renato Janine Ribeiro
Imagem: IHU
[EcoDebate] Este ano está marcado por tragédias naturais. No dia 1º de janeiro, Angra dos Reis sofreu uma quantidade terrível de mortes, em acidentes pavorosos. Em abril, foi a vez de Niterói. Mais uns dias, e um vulcão na Islândia parou o tráfego aéreo na maior parte da Europa. O medo se difunde – o medo de algo tão horrível que poderia ser o fim do mundo.
Hoje, é difícil alguém sustentar que Deus está tão encolerizado com a maldade dos homens que virá nos castigar por ela. Mas durante muito tempo se viveu sob o fantasma da Arca de Noé: tanto se pecou que as águas devastariam tudo, poupando apenas, quem sabe, os poucos justos. O mesmo se deu, segundo a Bíblia, em Sodoma e Gomorra. E certamente há pessoas de forte religião e pouca reflexão que acreditam nesse cenário, isto é, que o pecado seja a causa de um castigo divino.
Bons e maus. Seria mais ou menos óbvio Deus premiar os bons e punir os maus. Nisso entra o modelo Noé, Sodoma, Gomorra. Mas constatamos, com frequência, o contrário: gente boa que sofre, patifes que prosperam. Aqui entra o modelo Jó.
Homem temente a Deus, Jó é riquíssimo. Mas o diabo diz ao Senhor que Jó só é tão bom devido a sua prosperidade. Deus então autoriza Satã a destruir tudo o que Jó possui. Mas Jó, a todos os que acusam Deus por mau, responde que o Senhor deu, o Senhor tira. (No fim da história, ele recupera tudo o que perdeu). A história de Jó autoriza dizer que os bons sofrem porque Deus está testando a fé, a bondade e as suas virtudes. Em outras palavras, tudo o que sucede – de bom e mau – neste mundo pode ser explicado em termos religiosos. Mas hoje muitos de nós não aceitamos mais essas explicações como suficientes. Podemos crer em Deus, sim, mas queremos algo mais sofisticado – que é a Ciência.
A Ciência. Substituímos, então, uma visão mística por uma científica: as agressões contra a natureza estariam levando a uma série de catástrofes. Essas nada têm de religioso. São, simplesmente, reações naturais.
Um exemplo: há décadas que a cidade de São Paulo vem ocupando as margens dos rios com avenidas que chamamos, ótimo duplo sentido, de “marginais”. Quando chove muito, elas se inundam. Mas, na verdade, elas não são nossas: pertencem ao rio. Seul devolveu as marginais ao rio Cheonggyecheon, que tinha virado um esgoto impermeabilizado. São Paulo, enquanto isso, neste começo de 2010, impermeabilizou ainda mais as margens do Rio Tietê… É a crônica de uma destruição anunciada. Contudo, aqui surgem duas questões delicadas.
Será um mito? A primeira: será que, por trás da preocupação com a destruição da natureza, pulsará um novo milenarismo? ‘Milênio’ é uma palavra que indica um tempo – redondo, exato, múltiplo de mil: o ano Mil, em que o mundo ia acabar, o ano 2000, em que nossos computadores iam se apagar. Uma data, portanto, na qual devem ocorrer coisas portentosas. Podem até ser boas. Mas a maior parte de nós receia calamidades: o mundo destruído, nossos arquivos deletados.
Existirá um poderoso modelo mental que nos faz temer o futuro e inventar um passado admirável? O sonho com a “idade de ouro” em que não havia poluição, em que nossos alunos eram atentos, as pessoas, respeitosas, as cidades, seguras… não é que tudo isso esteja errado: mas é que omite a miséria que havia, a saúde ruim, a educação má, a expectativa de vida baixa. Então, é justo ter cautela quando tudo se reveste dos tons do apocalipse. Nem apocalipse nem paraíso, eis a condição humana.
Assim, críticos da Ecologia e defensores do desenvolvimento a qualquer custo alegam que estaríamos presos a um paradigma que faz crer na iminência de um mal fortíssimo, de um milenarismo no mau sentido. Vejam que esse argumento é útil para quem nega que o aquecimento global seja consequência dos abusos humanos. Em vez de mudar as ações que destroem florestas e desequilibram o planeta, mudaríamos nossa cabeça, que acha que tais atos são destrutivos.
Será verdade? A segunda perspectiva é mais assustadora. Reconhece, como a grande maioria dos cientistas, que o aquecimento global deve muito à ação irresponsável do homem. A presença do homem no mundo é recente se comparada com o tempo de existência do universo. Já ouviram a comparação da vida do universo com um relógio de 24 horas, no qual a existência humana ocuparia apenas os últimos minutos – ou segundos? Pois é. Se assim for, por que nossa espécie não sumirá um dia, como tantas outras?
O fato é que a Ciência tem apurado, com rigor nunca antes visto, riscos sérios que estão diante de nós. Também é verdade que ela exige mudanças em nossa conduta, se quisermos salvar nosso mundo. E, além disso, essas alterações farão um mundo melhor. Alguém tem dúvida de que o desperdício está longe de ser uma virtude ética?
Não precisamos ver, nas calamidades de Angra, Niterói e do vulcão islandês, um castigo de Deus, ou sequer a resposta imediata da natureza à devastação humana, mas podemos perceber que cuidados são necessários. Um novo e interessante espaço de discussão está crescendo, mundo afora, de pessoas que querem reduzir, reutilizar e reciclar. Uma responsabilidade com o mundo está substituindo, a meu ver com vantagem, as antigas lealdades confinadas ao Estado Nacional. Enfim, se nos tornarmos cidadãos globais, fará parte de nossa cidadania uma ética que respeite a natureza de uma forma talvez inédita.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP)
* Colaboração do Centro de Estudos Políticos Econômicos e Culturais CEPEC para o EcoDebate, 08/09/2010
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