O desafio de preservar o Encontro das Águas, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Que pensariam norte-americanos e canadenses se, a pretexto de uma crise energética, se resolvesse desviar as águas do rio e, com isso, deixassem de existir as cataratas do Niagara? Que achariam japoneses se, com a descoberta de uma jazida de um metal precioso, se resolvesse implantar um grande projeto de mineração no sopé do Monte Fuji e de suas neves deslumbrantes? O escritor Ernest Hemingway poderia levantar-se indignado do túmulo se, com igual motivo, se decidisse escavar sob o Monte Kilimanjaro, na África, tema de seus escritos.
Pois é com indignação que o poeta amazonense Thiago de Mello brada aos ventos contra o projeto de implantação de um terminal portuário ao lado do majestoso Encontro das Águas do Rio Negro com as do Solimões, que dá origem ao Rio Amazonas. Já há um forte movimento em Manaus para impedir que o projeto vá em frente (os defensores da obra argumentam com a “importância econômica” e a geração de empregos). E da oposição participa boa parte da comunidade acadêmica, que tem seus argumentos consolidados pelo professor Ademir Ramos, da Universidade Federal do Amazonas – que lembra também a importância histórica e científica dos sítios paleontológicos identificados na área.
O majestoso Encontro das Águas fascina brasileiros e turistas de outros países que vêm conhecê-lo (isso não é “importância econômica”?). O escritor Fernando Sabino escreveu (O Encontro das Águas, Editora Record, 1977): “Tudo aqui parece encerrar um sentido simbólico; os rios, as florestas, os animais e as plantas, os próprios homens. Aqui a natureza nos dá a sensação vertiginosa de que um dia fomos deuses. Aqui a alma se expande até perder-se no vazio onde o espaço e o tempo se confundem, para reencontrar-se numa vida além da vida, em que tudo se harmoniza – tempo e espaço, civilização e natureza, homens e deuses – numa perfeita integração.”
Pois é nas proximidades desse fenômeno e em área de propriedade da União que se quer levar adiante um projeto de R$ 220 milhões, bancado por duas grandes empresas, com forte apoio em áreas políticas locais. A Secretaria do Patrimônio da União, em Brasília, deu parecer contrário, mas a Gerência Regional no Amazonas opinou a favor do empreendimento e com isso liberou a regularização de “faixa de terreno marginal do rio federal” (Amazonas). O Ministério Público Federal conseguiu na Justiça, em Manaus, medida liminar sustando o licenciamento – mas ela foi revogada em Brasília pela Justiça Federal. Agora o Ministério Público estadual tenta reverter o quadro.
Segundo a proposta apresentada, o “cais de flutuantes será composto de 4 flutuantes de 65 metros de comprimento, 30 metros de largura (boca) e 4 metros de altura (pontal) cada um, perfazendo uma extensão total de 260 metros”, à margem frontal ao Encontro das Águas. E tudo isso ocorre num momento em que se afirma universalmente a necessidade de reavaliar enfoques humanos diante de questões como mudanças climáticas, insustentabilidade de padrões de produção e consumo no mundo. O próprio Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) está propondo implantar um novo índice que inclua o valor monetário dos serviços prestados gratuitamente pela natureza (fertilidade natural dos solos, regulação do clima e dos recursos hídricos, importância da biodiversidade para a criação de fármacos, etc.). E é com visões dessa natureza que precisam ser confrontados projetos que põem em risco patrimônios naturais e da biodiversidade. Neste momento mesmo estão no meio de polêmicas vários projetos de portos que implicariam esses riscos – em Santarém (PA), no litoral baiano, em Santa Catarina, no litoral norte de São Paulo.
Da mesma forma, o projeto considerado ameaçador para o Encontro das Águas que formam o Amazonas. Neste caso, precisa ser considerado também o patrimônio representado pelas visões da cultura popular amazônida – sempre tão desprezada. Segundo o escritor Márcio de Souza, ela só aparece como folclore “e depois que passa a polícia”. Mas quem viaja pelos rios da Amazônia vai descobrir de repente – como o autor destas linhas -, no Rio Nhamundá, no Lago da Serra do Espelho da Lua (que nome!), que a lenda das amazonas, para os moradores da região, não é uma lenda . É História, com H maiúsculo: elas habitavam a região, sequestravam homens para ter relações sexuais e a eles entregavam os recém-nascidos, se fossem do sexo masculino; com a aproximação dos colonizadores europeus, “elas foram fugindo para o norte, até depois da última cachoeira, em Roraima”. Poderá descobrir que a “democracia do consenso” de que fala o antropólogo Pierre Clastres está em pleno vigor entre os índios maués, à beira dos Rios Andirá e Marau. A eles devemos, entre outras coisas, a descoberta das propriedades energéticas do guaraná, reveladas por seu herói criador. E muito mais.
É preciso abrir ou ouvidos aos poetas, aos artistas, que conseguem incorporar a importância dessas culturas. Como o próprio Thiago: “Vem ver comigo o rio e suas leis./ Vem aprender a ciência dos rebojos,/ vem escutar os cânticos noturnos/ no mágico silêncio do igapó /coberto por estrelas de esmeralda” (Outros Poemas, Global Editora, 2007). Porque, diz ele, “de caminho de barcos sabe o mar. Os ventos é que sabem dos destinos”.
Os ventos populares, com certeza, desaconselham a rota que põe em risco o Encontro das Águas. Então, convém ouvir de novo Fernando Sabino, ao visitar esse lugar: “Aqueles que se encontram na fase de industrialização estão correndo constantemente o risco de empobrecerem e de se desnortearem em vários rumos. Talvez amanhã a riqueza de um povo seja medida pelos seus esforços a favor da conservação da Natureza, do seu ambiente natural, ou seja, pela capacidade de conseguir preservar a sua própria alma.” E, como sentencia ele, “não se desafia em vão a natureza”.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 26/07/2010
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