Ouro Preto e Mariana, 300 anos de geração de riqueza, exclusão social e degradação ambiental, artigo de Valdir Lamim-Guedes
“Se, por um instante, você pensar em todas aquelas montanhas de minério retiradas de Mariana, Ouro Preto e outras cidades do Quadrilátero Ferrífero, vale a pena refletir: o que é feito de toda a renda gerada por esta atividade?”
[Jornal da Ciência] No mês de julho comemoram-se os aniversários das cidades mineiras de Ouro Preto (dia 8, 312 anos) e Mariana (dia 16, “Dia de Minas”, 314 anos). Nas solenidades públicas realizadas nestas datas sempre é ressaltado um passado de glórias.
No entanto, certos aspectos deste período são deixados de lado, construindo uma história parcial, que contribui pouco para a melhoria da qualidade de vida da maior parte da população destas cidades.
A região de Ouro Preto foi a principal área de extração de ouro nos séculos XVIII e XIX. Foram enviadas a Portugal, oficialmente, oitocentas toneladas de ouro no século XVIII, sem contar o que circulou de forma ilegal, bem como o que ficou na colônia ornando as suntuosas igrejas.
Ouro Preto e Mariana passaram por um rápido processo de urbanização, com Vila Rica (atual Ouro Preto) sendo a cidade mais populosa da América Latina, com cerca de 40 mil pessoas em 1730 e, algumas décadas após, chegando a abrigar 80 mil pessoas. Nesta época, Nova York possuía menos da metade desse número de habitantes e a vila de São Paulo não tinha mais que oito mil habitantes.
Foram construídos vários prédios públicos, um rico casario e muitas igrejas (a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto, apresenta 400 quilos de ouro e 400 quilos de prata em sua decoração), conjunto este construído para representar a riqueza gerada ali. Outra característica foi a grande concentração de escravos, que viviam em péssimas condições, por causa do trabalho árduo e debilitante – um retrato escancarado das desigualdades sociais da época.
Outra herança deste período foi a degradação ambiental. Em diversos relatos de viajantes naturalistas que passaram pela região, existem menções a degradação dos corpos d’água (assoreamento, ausência de mata ciliar, águas barrentas) e a devastação das florestas (solo exposto, vegetação em inicio de regeneração e queimadas).
Ao longo do século XIX a produção do ouro teve forte redução, tanto pelo fim dos estoques auríferos de fácil extração (depósitos de aluvião, principalmente) como pelo assoreamento dos rios causado pelo uso de técnicas inadequadas de extração do ouro, que dificultavam a exploração aurífera.
O Barão von Eschwege, que viveu em Ouro Preto no início do século XIX, observou: “revolvendo-se freqüentemente as cabeceiras dos rios, estas se carregam cada vez mais de lama, a qual se foi depositando sobre a camada rica, alcançando de ano para ano maior espessura, tal como vinte, trinta e até mesmo cinqüenta palmos. Por este motivo, as dificuldades tornaram-se tão grandes, que não se pode mais atingir o cascalho virgem”.
O retrato da época é uma mistura de riqueza e pobreza, com grande degradação ambiental. Mas isto não é o que ocorre hoje? A propaganda em torno da necessidade do desenvolvimento econômico baseado na utilização de nossos recursos naturais traz um falso dilema: proteger ou desenvolver. É facilmente observável que a renda advinda da extração das nossas riquezas naturais não é dividida igualitariamente aqui no Brasil (lê-se: em quase todo o mundo) e, no nosso caso, isto nunca foi feito.
Num dos bairros mais antigos de Mariana, cuja ocupação data do inicio do século XVIII, e que foi uma das principais áreas de extração de ouro em morros, existe um local, chamado Gogô, localizado no Morro de Santana – tombado em parte como patrimônio histórico e paisagístico, por causa da existência de diversas ruínas que compõem a área. Apesar de tantas riquezas terem sido retiradas dali, o Gogô é um dos bairros mais pobres de Mariana, onde a população sofre com riscos sociais, sendo a falta de perspectivas para o futuro uma verdade cotidiana.
Mas se, por um instante, você pensar em todas aquelas montanhas de minério retiradas de Mariana, Ouro Preto e outras cidades do Quadrilátero Ferrífero, vale a pena refletir: o que é feito de toda a renda gerada por esta atividade? Nas duas cidades aniversariantes no mês de julho, as denúncias de desvio de verbas e de outros crimes são recorrentes; por exemplo, denúncias de compra de votos nas últimas eleições – Mariana já está no terceiro prefeito desde as eleições de 2008. Estaria aí uma das respostas para a escassez de dinheiro público na região.
Parece estranha a falta de verbas nestas duas cidades, mas isto “parece” ocorrer, sobretudo com o dinheiro saindo por furos no cofre municipal.
Entre muitos problemas que ocorrem nestas duas cidades pode-se ressaltar: uma grande preocupação com o aspecto visual dos principais pontos turísticos das cidades e um abandono quase que por completo das áreas que não são de interesse turístico. O transporte coletivo é deficitário, faltam médicos, escolas em condições precárias e o tráfico de drogas (como o crack) tem agravado a violência. Há grande informalidade do trabalho, já que a mineração absorve apenas uma pequena parte da mão-de-obra disponível, sendo que isto já acontecia na época do ciclo do ouro, na qual apenas 5% da população estava diretamente envolvida na exploração mineral.
O fim dado ao dinheiro público e às riquezas geradas nestas duas cidades é o mesmo de 300 anos atrás. Estes recursos ficam concentrados nas mãos de poucos, enquanto que a maioria da população está a mercê do descaso do poder público. É possível constatarmos que estas duas cidades continuam sendo colônias de exploração, quase 188 anos depois da Independência do Brasil do domínio português. De onde se retiram as riquezas naturais e as melhorias sociais não são alcançadas pela a população local, ficando apenas um passivo ambiental.
Isto é o resultado de trezentos anos de uma história que tem seu brilho encoberto por uma camada escura, deixando-a obscurecida, assim como o ouro paladiado, que tem sua beleza apagada por uma camada de minério escuro.
Valdir Lamim-Guedes (dirguedes{at}yahoo.com.br) é mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia de Biomas Tropicais da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:
* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado, no Jornal da Ciência, SBPC, C e-mail 4044, de 02 de Julho de 2010.
EcoDebate, 05/07/2010
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