Agricultura industrial e ciclo do nitrogênio, artigo de Antonio Silvio Hendges
Agricultura industrial e ciclo do nitrogênio, artigo de Antonio Silvio Hendges
[EcoDebate] 1 – “COMENDO AS SOBRAS DA SEGUNDA GUERRA”
O nitrogênio é fundamental para a produção de alimentos. As substancias nitrogenadas originam os aminoácidos, essenciais na formação das proteínas, os ácidos nucléicos, o ATP (adenosina trifosfato) e a clorofila. Os consumidores obtêm o nitrogênio através das plantas e são incapazes de utilizar o nitrogênio atmosférico (N2). A fixação biológica do N2 é realizada por bactérias que vivem em simbiose mutualista nas raízes, principalmente das leguminosas, mas existem outras plantas que também são capazes de realizarem esta atividade. “As bactérias fixadoras não vivem somente em raízes, mas também nas folhas de muitas plantas tropicais” (PRIMAVESI, 1979, p.180). As cianobactérias (cianofíceas) também são muito eficientes na fixação biológica do nitrogênio.
A fixação atmosférica que acontece por deposição, é um processo que incorpora nitrogênio nos ecossistemas na forma de nitratos (NO3) que se formam através da reação do nitrogênio atmosférico com o oxigênio na presença de energia proveniente de relâmpagos, raios e atividades vulcânicas. Os nitratos são precipitados pelas chuvas e correspondem entre 5% e 12% do total disponível nos ecossistemas. Até os anos 50 do século XX a fixação atmosférica e biológica eram as únicas maneiras de disponibilizar o nitrogênio para a utilização dos seres vivos, e a agricultura era dependente dos mecanismos naturais para a produção de alimentos protéicos.
A grande virada na moderna história da agricultura, que por sua vez marca um momento decisivo na industrialização de nossos alimentos, pode ser localizada com precisão após a 2ª Grande Guerra Mundial, quando as fábricas de munição foram adaptadas para começar a produzir fertilizantes químicos. Depois da guerra os governos haviam deparado com um enorme excedente de nitrato de amônio, o principal ingrediente para a fabricação de explosivos. O nitrato de amônio por acaso também é uma excelente fonte de nitrogênio para as plantas. A indústria de fertilizantes químicos (juntamente com a de pesticidas, derivados de gases venenosos desenvolvidos para a guerra) é o produto do esforço dos governos para adaptarem sua máquina de guerra a propósitos pacíficos. Como costumava dizer em seus discursos Vandana Shiva (agricultora e ativista indiana) “ainda estamos comendo as sobras da Segunda Guerra” (SOUZA, 2008).
Com os fertilizantes sintéticos mudou radicalmente o conceito de agricultura e de produção de alimentos. O nitrogênio passou a ser incorporado às culturas agrícolas, possibilitando um enorme aumento da produção e o desenvolvimento de monoculturas extensivas. A fixação industrial através da combinação de nitrogênio e hidrogênio utilizando grandes quantidades de calor, pressão e energia e o hidrogênio fornecido pelo petróleo, carvão ou gás natural (processo Haber-Bosch), consolidou a dependência da agricultura aos combustíveis fósseis e à indústria química. “Quando a humanidade adquiriu o poder de fixar nitrogênio, a base da fertilidade do solo deslocou-se de uma total dependência do sol para uma nova dependência em relação ao combustível fóssil” (SOUZA, 2008).
2 – O CICLO
O nitrogênio gasoso (N2) é o gás mais concentrado na atmosfera com 78%. Mas não é fixado diretamente pelos organismos vivos, sendo que os produtores fixam os nitratos (NO3). O ciclo do nitrogênio tem quatro mecanismos essenciais, porém diferenciados: a)fixação do N2; b)amonificação; c)nitrificação; d)desnitrificação.
A fixação do N2 acontece através de organismos fixadores como as bactérias Rhizobium que vivem em associação mutual nas raízes de algumas leguminosas como feijões, ervilhas, soja, alfafa. Outras bactérias dos gêneros Azotobacter e Clostridium são de vida livre e utilizam a transformação química do nitrogênio gasoso ou amonificação para obterem energia, produzindo amônia (NH3) que é transformada primeiro em nitritos (NO2) pelas bactérias Nitrosomonas e Nitrosococcus e após em nitratos (NO3) pelas bactérias Nitrobacter. Este processo de transformação da amônia é a nitrificação. Na água, a fixação do nitrogênio atmosférico é realizado pelas cianobactérias, principalmente Anabaena e Nostoc. “A fixação do nitrogênio por via biológica é a mais importante. O nitrogênio fixado é rapidamente dissolvido na água do solo e fica disponível para as plantas na forma de nitratos. Essas plantas transformam os nitratos em grandes moléculas nitrogenadas, necessárias à vida” (SOUZA, 2008).
Ao entrarem nas cadeias alimentares formam as moléculas orgânicas dos consumidores primários, secundários, terciários, etc. Bactérias e fungos decompositores produzem gás amônia (NH3) e sais de amônio (NH4) e completam a fase de amonificação do ciclo. A amônia e os sais de amônio são convertidos em nitritos (NO2) e, posteriormente, no processo de nitrificação, em nitratos (NO3) por bactérias quimiossintetizantes.
Mas com a fixação constante do nitrogênio atmosférico, este não se extingue? Bactérias desnitrificantes, Pseudomonas denitificans, em condições anaeróbicas utilizam nitratos nos processos respiratórios, realizando a conversão destes e a desnitrificação da amônia em nitrogênio que é devolvido para a atmosfera. Deste modo, há uma constante reposição do nitrogênio atmosférico através dos processos de decomposição orgânica e degradação da amônia, fechando o ciclo deste elemento fundamental.
3 – UM BILHÃO DE FAMINTOS E ESTOQUES GARANTIDOS
O nitrogênio é essencial à produção de alimentos, mas sua distribuição é irregular, desequilibrada. Muitas populações são desnutridas por serem negligenciadas e não possuírem disponibilidade suficiente deste elemento, mesmo com os 78% de N2 atmosférico. Em outras regiões há excesso de nitrogênio sintético, utilizado nas culturas agrícolas em quantidades muito acima das necessidades, contaminando o meio ambiente e a saúde geral dos ecossistemas. O nitrogênio adicional introduzido no ambiente através dos fertilizantes sintéticos não tem uma distribuição uniforme, principalmente por razões sociais e econômicas: as regiões de monoculturas extensivas, que utilizam mecanização e tecnologias agrícolas são as que mais consomem nitrogênio e outros fertilizantes. Este desequilíbrio também se manifesta na distribuição dos alimentos, deixando aproximadamente 1,3 bilhões de seres humanos desnutridos, embora nas Bolsas de Valores as cotações agrícolas garantam os estoques.
A agricultura industrial mecanizada usa grande quantidade de energia na produção de fertilizantes, combustíveis, transporte, armazenamento e distribuição, tornando os processos muito mais dispendiosos que os naturais.
Dito de outro modo, é necessário mais de uma caloria de combustível fóssil para produzir uma caloria de comida. Antes da introdução do fertilizante químico, as fazendas produziam mais de duas calorias de energia em alimentos para cada caloria de energia investida. A chamada “Revolução Verde” nada mais é do que, partindo-se de um ponto de vista da fixação biológica do nitrogênio (N) para transformá-lo em alimento, na conexão da agricultura dita “moderna” a uma nova fonte de energia, combustíveis fósseis, com o objetivo de produzir comida.
Esses exemplos resumem quão dinâmico e dependente de processos sociais e econômicos se torna o ciclo do nitrogênio (N) quando o elemento químico em si assume um valo de mercado (SOUZA, 2008).
Há uma ineficiência irresponsável na utilização do nitrogênio sintético para produção de alimentos. Os desperdícios contaminam o ambiente e causam graves alterações nos ecossistemas, agravando problemas sociais e econômicos relacionados à produção e distribuição inadequada dos alimentos. As perdas de nitrogênio ao longo das cadeias de produção são de aproximadamente 86% na agricultura e pode atingir 96% na agropecuária.
Fertilizante produzido | Fertilizante aplicado | Nitrogênio na cultura | Nitrogênio colhido | Nitrogênio no alimento | Nitrogênio consumido | |
% | 100 | 94 (-6%) | 47 (-47%) | 31 (-16%) | 26 (-5%) | 14 (-12%) |
Tabela 1 – Perdas de nitrogênio em uma cadeia de produção vegetal
Fonte: SOUZA, 2008.
Fertilizante produzido | Fertilizante aplicado | Nitrogênio na cultura | Nitrogênio na ração | Nitrogênio no animal | Nitrogênio consumido | |
% | 100 | 94 (-6%) | 47 (-47%) | 31 (-16) | 7 (-24%) | 4 (-3%) |
Tabela 2 – Perdas de nitrogênio em uma cadeia de produção agropecuária
Fonte: SOUZA, 2008.
4 – AGRONEGÓCIO: FATOR DE RISCO
Todos os países industrializados apresentam sérios problemas ambientais decorrentes dos excessos de nitrogênio em seus processos de produção.
Países em desenvolvimento como China, Índia e Brasil apresentam contaminações graves de seus recursos hídricos. Outras regiões, como nos países africanos, têm graves problemas de desnutrição pela impossibilidade de produção adequada de alimentos: faltam fertilizantes e processos adequados de recuperação dos seus solos. “Os fertilizantes são caros, a distribuição é ruim, o transporte é insuficiente e a logística não existe. Esse é um dos motivos da fome na África” (CASTRO, 2007). No Brasil, as regiões carentes de nitrogênio estão principalmente no nordeste, enquanto estados como Paraná, Rio Grande do Sul, são Paulo e Mato Grosso do Sul apresentam excessos que comprometem o meio ambiente e a qualidade de vida mesmo fora de seus territórios.
O lençol freático é o mais afetado pelas perdas nas cadeias de produção, sendo que o aumento atmosférico acontece pela volatização da amônia e através das chuvas retorna ao solo, contaminando os ecossistemas, os solos agrícolas e as águas. Os excessos de nitrogênio sintético também contaminam as florestas e oceanos, sendo o último estágio dos nitratos adicionados às culturas a alteração dos ecossistemas marinhos, onde possibilitam um aumento da produção de algas e a formação de extensas áreas sem oxigênio suficiente para a manutenção da biodiversidade, alterando a distribuição das espécies e o equilíbrio dos níveis tróficos. Mesmo nos países e regiões em que há carência de fertilizantes nitrogenados, pode haver a contaminação de ecossistemas motivados pelo despejo de esgotos sem tratamentos nos rios e lagos. “As fezes e a urina são riquíssimas em nitrogênio. Se o esgoto não for tratado, o elemento vai parar em um corpo d’água e causa eutrofização, funcionando como se fosse um fertilizante orgânico” (CASTRO, 2007).
Concentrações elevadas de NH3 na atmosfera acarretam uma série de efeitos negativos sobre a composição da mesma. Outro tipo de perda de N ocorre através da lixiviação de nitrato para os rios e riachos, ou mesmo para reservatórios de água subterrânea. Nas águas superficiais o excesso de N causa o fenômeno da eutrofização, que é um aumento vigoroso na produção primária, levando a uma produção elevada de algas. Ao cessar essa produção massiva, as algas morrem e inicia-se o processo de decomposição. Organismos decompositores utilizam o O2 dissolvido na água para obter a energia requerida pelo processo de decomposição. A decorrente falta de oxigênio dissolvido causa uma série de alterações químicas e biológicas. Talvez, a mais conhecida delas seja a mortandade de peixes que regularmente ocorre nos rios, baías e estuários de nosso país (SOUZA, 2008).
O equilíbrio do ciclo do nitrogênio depende de fatores bióticos e abióticos bem definidos e não está adequado para assimilar os excessos artificiais. Os efeitos da utilização indiscriminada de fertilizantes nitrogenados e do atual modelo de desenvolvimento da agricultura e da agropecuária podem ser tão impactantes e prejudiciais para o ambiente e a humanidade como as mudanças climáticas, sendo um dos principais fatores que afetam negativamente a biodiversidade.
É indispensável uma revisão nos modelos de produção de alimentos e nos conceitos de desenvolvimento, amenizando as contradições entre economia e sustentabilidade ambiental, adotando-se métodos mais integrados e naturais de desenvolvimento agrícola e agropecuário, utilizando-se a fixação biológica e atmosférica como principais formas de disponibilizar nitrogênio à produção de alimentos, priorizando uma distribuição adequada e a erradicação da fome e da desnutrição.
O agronegócio não pode ser um fator de risco: a agricultura e a pecuária devem visar o desenvolvimento econômico, mas também promover a evolução social, ecológica, cultural e espiritual do conjunto dos seres humanos e nações.
5 – REFERÊNCIAS
CASTRO, Fábio de. Faca de Dois Gumes. Disponível em: www.agencia.fapesp.br. Acesso em: 12 set. 2009.
SOUZA, Fernando Augusto. Agricultura natural/orgânica como instrumento de fixação biológica e manutenção do nitrogênio no solo. Um modelo sustentável de MDL. Disponível em: www.planetaorganico.com.br. Acesso em: 12 set. 2009.
PRIMAVESI, Ana. Manejo Ecológico do Solo: a agricultura em regiões tropicais. 9. ed. São Paulo: Nobel, 1979. p. 75,76, 178-180, 184-187, 305-312.
Colaboração de Antonio Silvio Hendges, Professor de Biologia e Agente Educacional no RS, para o EcoDebate, 01/07/2010.
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