Democratizar o dinheiro, a terra, a palavra, artigo de Emir Sader
[EcoDebate] O problema maior da transição da ditadura à democracia no Brasil é que a democracia se restringiu ao sistema político. Não foram democratizados pilares fundamentais do poder na sociedade: terra, bancos, meios de comunicação, entre outros.
O Brasil da democracia teve assim elementos fortes de continuidade com o da ditadura. A política de meios de comunicação, por exemplo, nas mãos de ACM, o ministro de Sarney, completou a distribuição clientelística de canais de radio e televisão e favoreceu a consolidação do monopólio da Globo – os próprios Sarney e ACM, proprietários de emissoras ligadas à rede da Globo.
Não se avançou na reforma agrária, nem foi tocado o sistema bancário. É como se a ditadura tivesse sido apenas uma deformação de caráter político aos ideais democráticos. Mas nem os agentes imediatos do golpe e sujeitos políticos do regime – as FFAA – foram punidos. Como se tivesse sido “um mal momento”, até mesmo “um mal necessário”, como diriam as elites políticas tradicionais, que seguem por ai.
No entanto o golpe e a ditadura foram extraordinariamente funcionais ao capitalismo brasileiro. O processo que se desenvolvia de democratização política, econômica e social do país não interessava nem aos capitais estrangeiros, nem aos grandes capitais brasileiros. Estes, concentrados em áreas monopólicas, não se interessavam no enorme mercado popular urbano que o aumento sistemático do poder aquisitivo dos salários propiciava, nem no mercado popular rural, a que a reforma agrária apontava.
O eixo da indústria automobilística no setor do grande capital industrial e outros setores que produziam para os setores da classe média, para a burguesia e para a exportação, se coligaram com os golpistas no plano político, para impor, mediante o golpe, um modelo que atacava duramente o poder aquisitivo dos salários.
O golpe os atendeu imediatamente, com intervenção em todos os sindicatos e com a política de arrocho salarial. Foi uma “lua-de-mel” para os empresários, uma super exploração do trabalho, mais de uma década sem aumento de salários, sem negociações salariais. Bastaria isso para entender o caráter de classe do golpe e do regime e militar.
A dura repressão aos sindicatos e a todas as formas de organização do movimento popular contaram com o beneplácito do silêncio dos órgãos de comunicação, que pregaram o golpe e apoiaram a instalação do regime de terror que comandou o país por mais de duas décadas.
A democracia reconheceu o que os trabalhadores – com os do ABC na linha de frente – haviam conquistado: a legalização da luta sindical, junto ao direito de existência de centrais sindicais, a legalização dos partidos, o direito de organização dos movimentos populares, entre outras conquistas.
Mas os pilares do poder consolidado pela ditadura ficaram intocados. Ao contrário, seu poder monopólico sobre a terra, o sistema bancário, os meios de comunicação, se fortaleceram.
Esses temas ficam pendentes: quebrar o monopólio do dinheiro, da terra e da palavra – como algumas das grandes transformações estruturais que o Brasil precisa para construir uma sociedade econômica, social, política e culturalmente democrática.
Emir Sader é Sociólogo
* Colaboração do Centro de Estudos Políticos Econômicos e Culturais CEPEC para o EcoDebate, 24/06/2010
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