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Ribeirão Preto, SP: Migrantes contratados para corte de cana-de-açúcar são submetidos a condições de trabalho arcaicas e precárias

Migrantes contratados para corte de cana-de-açúcar são submetidos a condições de trabalho arcaicas e precárias

Nos anos 80 do século passado, foram inúmeros os movimentos para melhoria das condições de trabalho dos cortadores da cana-de-açúcar. De lá para cá, pouca coisa mudou nessas condições e esses movimentos diminuíram, ou pelo menos saíram do foco da imprensa nacional. Na primeira década deste século, ganharam destaque apenas as denúncias da Pastoral do Migrante de Guariba ao Ministério Público Federal, sobre a ocorrência de mortes desses trabalhadores por exaustão, dada a insalubridade do trabalho nos canaviais da região de Ribeirão Preto. Segundo a Pastoral, ocorreram entre 2004 e 2008 nada menos que 21 mortes de cortadores de cana-de-açúcar nas usinas da região, grande parte delas atribuídas a paradas cardiorrespiratórias.

A diminuição dos movimentos de melhoria das condições do trabalho pode ser explicada pela abundância de mão-de-obra e pelo perfil do trabalhador contratado pelas usinas da região. Eles são predominantemente homens, jovens, com baixa escolaridade e de boa conduta, o que na visão do empregador significa subordinação, assiduidade e boa saúde. A maioria é de migrantes, que vêm das regiões Norte e Nordeste do País em busca de melhores condições de trabalho. Esses migrantes representam 80% da força de trabalho no corte da cana, ou mais de 70 mil pessoas, só na região de Ribeirão Preto, de acordo com a irmã Inês Facioli, da Pastoral de Guariba.


É esse o cenário desenhado pelas conclusões da pesquisa de iniciação científica do estudante Leandro Amorim Rosa, do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, e de parte do mestrado do cientista social André Galiano, também da FFCLRP.

Para a pesquisa de Leandro Rosa foram entrevistados 13 trabalhadores rurais empregados no corte da cana, um membro da Pastoral do Migrante, o presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba e dois psicólogos do setor de recursos humanos de uma usina pertencente ao mesmo grupo da que emprega os trabalhadores entrevistados. O objetivo foi conhecer o perfil desses trabalhadores, os critérios para sua contratação e as condições de trabalho.

Galiano, por sua vez, pesquisa a situação dos jovens que trabalham no corte da cana para compreender como eles são atraídos para esse tipo de trabalho e conhecer, sobretudo, como essa atividade repercute na saúde física e psíquica deles. Entrevistou 13 cortadores de cana em Pradópolis. Parte dos resultados dessa pesquisa, seu mestrado em andamento, foi apresentada no 6º Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia do Trabalho, no final de abril, e ganhou o prêmio de melhor pôster do evento. A orientação dos dois trabalhos é da professora Vera Navarro, do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP.

Boa conduta – Além de traçar o perfil do trabalhador migrante na cana-de-açúcar, Leandro Rosa entrevistou o pessoal de recursos humanos de uma das usinas contratantes. Segundo o pesquisador, nessa entrevista foi recorrente a fala sobre a humanização. “Mas fica claro que, para a usina, ela só se justifica quando traz melhor produção.” Rosa identificou ainda que boa moradia, ao invés de ser responsabilidade da usina que o contrata, passou a ser item que o qualifica para a vaga. “Para evitar problemas com os órgãos de fiscalização, a usina e o ‘turmeiro’, aquele que faz as contratações e é uma espécie de fiscal, deixaram de oferecer moradia e passaram a responsabilidade para o próprio trabalhador.”

Para o pesquisador, esse é um fator agravante na relação de trabalho, pois, além de se preocupar com as despesas com o transporte que o trouxe até a região e com a alimentação, também há a questão do aluguel, da produção e, ainda, da manutenção da saúde. “Manter o trabalho precarizado parece que ainda é mais produtivo. O salário por produção, por exemplo, também passa a responsabilidade do ganho para os trabalhadores. Nesse cenário, a força política desses trabalhadores desaparece, sem contar que eles, ainda, têm que ter dinheiro para mandar para a família e para se sustentar na entressafra”, lembra.

Os trabalhadores relataram também o caso de um colega demitido dois dias antes de acabar a experiência, mesmo com boa produtividade. “Esse migrante demitido havia incitado os colegas a não entrarem no ônibus que os transportavam até o canavial por questões óbvias, o veículo não tinha freio nem faróis. Esses passam a constar de uma lista negra, segundo os migrantes. A usina admite a existência de uma lista de não retorno, com outras justificativas e vincula a questões de produtividade, evidentemente.”

Outro fator que pode levá-los para essa lista é o número de atestados médicos. “Eles trabalham até a exaustão, os mais velhos são os que mais reclamam de dores no corpo, cãibras e dificuldades para dormir.” Para contornar os problemas físicos causados pelo excesso de trabalho, algumas usinas oferecem uma espécie de energético que, para Rosa, é um investimento para aumentar a produção, mas que, para os trabalhadores, é uma ajuda. “O corpo já dá sinais de exaustão e o energético faz com que ele aguente um pouco mais, mas, quando vem a doença, é avassaladora. Prova disso são as 21 mortes contabilizadas pela Pastoral do Migrante de Guariba”, lembra o pesquisador. Rosa ficou impressionado com o fato de a usina mais uma vez potencializar a produção no campo e ainda ser vista como bem-feitora.

Ao serem perguntados sobre greve, eles são taxativos, diz o acadêmico. “Eles têm muito medo porque não querem correr o risco, dizem que é melhor o trabalho ruim do que nada.”

Criar porcos – Em sua pesquisa, Galiano entrevistou jovens entre 16 e 24 anos. “Percebemos que os jovens, quando retornam para sua cidade, ganham certo status por ter enfrentado desafios e ainda por ter conseguido dinheiro para enviar para a família, além de bens materiais”, explica.

Segundo Galiano, eles são de famílias numerosas, muito humildes. “Na escola onde estudavam o assunto é fazer a migração. Como eles têm sonhos, como todos os jovens, com bens de consumo a que normalmente não têm acesso, vêm sem pensar.”

Entretanto, na face de alguns desses jovens a decepção com o mundo idealizado emocionou o pesquisador. “Quando chegam e se deparam com outras funções com que não estão acostumados, como lavar, passar e, ainda, arcar com despesas que não esperavam, o mundo deles desaba. Um dos entrevistados, desde a infância, já realizava trabalhos no campo, mas este foi seu primeiro contato com o corte da cana, e desabafou toda sua indignação: ‘Dói tudo, tudo. Desse jeito, não. Eu prefiro trabalhar cinco anos plantando feijão e milho a ficar mais um ano cortando cana’.”

Quando questionado sobre o futuro, o jovem cortador manifestou seu sonho de trabalho: “O único serviço que é o meu sonho… o meu sonho mesmo é cuidar de porco. Porque eu tenho amor em granja de porco”.

Exploração e desgaste – Para a professora Vera Navarro, a conjuntura atual é muito diferente da década de 80, quando os sindicatos eram mais atuantes e os movimentos sociais cobravam mais. Segundo ela, a mudança na forma de se produzir, de plantar e colher a cana e que intensificou o aumento do trabalho é o nó dessa questão. ”O trabalho por produção aumenta esse tipo de exploração e o desgaste do trabalhador.”

A professora aponta a questão da queimada como outro problema. “No sistema atual de queima da cana, muitos morrem e, se não morrem, as queimaduras são bastante graves; essas coisas aparecem de forma muito velada, não têm números nem estatísticas. Isso revela que o trabalho no corte da cana continua bastante desumano.”

Vera diz que, com a força de trabalho abundante, o migrante pode ser descartado. Ela lembra as citações da professora Maria Aparecida de Moraes Silva, pesquisadora da Unesp: “Eles são tratados de forma até pior que os escravos, pois os senhores preservavam os escravos porque eram uma propriedade, eram um bem”.

Além da relação precária de trabalho, a professora diz que eles enfrentam uma realidade muito diferente também em relação ao meio social e até ao clima. “Eles passam frio, principalmente nessa época do ano. Estranham a convivência com pessoas de outras origens, de diferentes culturas e, ainda, se sentem excluídos em relação aos ‘da casa’.” Ela lembra que o preconceito em relação a esses migrantes é muito grande e todos são chamados de “baianos”.

Para a professora, mesmo com cerca de 50% da colheita da cana mecanizada, chegando a 90% em algumas usinas, a situação ainda é grave. Nessa conjunção, de corte mecanizado e corte manual, o trabalhador fica com a pior área, onde a máquina não entra e nem dá para queimar, segundo Vera. “Alta tecnologia para a produção e, para o trabalhador, relações arcaicas e precárias.”

Segundo Vera, a questão não é simples de ser resolvida, pois eles migram por questões de sobrevivência. A resolução do problema, diz a professora, passa pela questão da reforma agrária, pela manutenção desse pessoal no campo, no seu local de origem. Como saída em curto prazo, a melhoria e o cumprimento da legislação de proteção ao trabalhador, através de ações fiscalizadoras que sejam constantes e efetivas. Uma atuação mais ofensiva dos sindicatos na defesa dos interesses dos trabalhadores, no sentido de lutar pela manutenção e também pela ampliação dos direitos trabalhistas e por melhorias salariais.

A professora não esquece o papel das universidades nesse processo. “É importante a participação das universidades e institutos de pesquisa, no sentido de orientar sua produção de forma a gerar conhecimento que possa contribuir na elucidação desses problemas.”

Mas ela afirma que somente em uma sociedade onde o trabalho não seja um meio por excelência de exploração, de dominação de uma classe sobre a outra, é que se poderá construir uma nova sociabilidade firmada como fonte de criação, de prazer, de humanização. “Uma formação social onde não haja espaço para aceitação dessas formas vis de exploração”, conclui.

Reportagem de Rosemeire Soares Talamone, do Jornal da USP, publicada pelo EcoDebate, 21/06/2010

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