Tese analisa legislação de potabilidade de água e agrotóxicos
Maria de Lourdes: A revisão e atualização dos parâmetros agrotóxicos constituem-se como parte de um processo maior, que contempla a legislação de potabilidade de água em toda sua amplitude
Em sua tese de doutorado Análise dos parâmetros agrotóxicos da Norma Brasileira de Potabilidade de Água: uma abordagem de avaliação de risco, Maria de Lourdes Fernandes Neto analisa a água consumida pelas populações como uma importante forma de exposição à substância agrotóxica. O trabalho, defendido na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) busca analisar a consistência do atual padrão de potabilidade brasileiro referente aos agrotóxicos. Em entrevista ao Informe Ensp, Maria de Lourdes fala dos índices mínimos de contaminação, dos prejuízos que o consumo da água contaminada pode trazer para a população e dos itens que uma nova regulamentação sobre o padrão de potabilidade de água deve contemplar.
Em 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Quais os impactos da utilização dessas substância na saúde humana e no meio ambiente?
Maria de Lourdes Fernandes Neto: A temática dos agrotóxicos envolve uma rede intrincada de aspectos e questões que se relacionam, além de diversos atores e interesses. A exposição humana aos agrotóxicos pode ocorrer segundo diferentes rotas, e, em algumas delas, os indivíduos podem ser expostos por mais de uma via ao mesmo tempo, o que configura exposição múltipla. Assim, por exemplo, um trabalhador rural pode ser exposto tanto durante a aplicação do agrotóxico, em dada cultura, como pelo consumo de alimentos ou água contaminados. Da mesma forma, populações que moram próximas a áreas cultivadas com agrotóxicos podem consumir água ou alimentos contaminados, bem como inalar a substância eventualmente presente no ar. Além disso, um mesmo indivíduo pode ser exposto a mais de um tipo de agrotóxico, ainda que seguindo uma única rota, configurando também, uma situação preocupante de exposição.
A dinâmica dos agrotóxicos no ambiente é fortemente influenciada por fatores intrínsecos às substâncias, assim como pelas propriedades do solo, condições climáticas e formas de aplicação do produto. Uma vez no ambiente, tais substâncias podem ser degradadas ou se movimentarem, por exemplo, no perfil do solo, podendo atingir as águas, de acordo com a influência dos fatores anteriormente mencionados. Quando presente na água, o agrotóxico poderá aderir à matéria em suspensão, depositar no sedimento de fundo ou mesmo ser absorvido por organismos aquáticos.
Em relação à contaminação de águas, há situações em que essa contaminação pode ocorrer em grandes proporções, por exemplo, em virtude de derramamento acidental de agrotóxicos, que, eventualmente, podem atingir os corpos d´água. Isso poderia configurar uma exposição aguda. Entretanto, nesses casos, a água normalmente apresenta sabor e odor característicos, que causariam sua rejeição por parte da população. Dessa forma, a preocupação maior ocorreria para a ingestão contínua de água contaminada a baixas concentrações, o que configuraria um risco crônico.
Quais os principais efeitos da exposição à saúde humana?
Maria de Lourdes: Os efeitos sobre a saúde decorrentes da exposição aos agrotóxicos variam segundo o princípio ativo envolvido. Dentre aqueles já identificados e publicados pela literatura internacional especializada, destacam-se:
• Efeitos devido à exposição aguda: cólicas abdominais, dores de cabeça, tonturas, tremores musculares, irritabilidade, perda de apetite, enjoos, vômitos.
• Efeitos devido à exposição crônica: problemas hepáticos, renais, neurotóxicos, alterações cromossomiais e câncer.
Entretanto, sabe-se que ainda existem várias lacunas no conhecimento dos efeitos à saúde em razão da exposição crônica aos agrotóxicos, e, portanto, há muito que ser avaliado, tanto em termos da identificação de contaminantes nos ambientes aquáticos, quanto das relações entre tais contaminantes e a ocorrência de efeitos adversos à saúde humana.
Em sua tese, a senhora faz uma análise da potabilidade da água de acordo com a utilização dos agrotóxicos. Quais são os índices mínimos de contaminação? Quais prejuízos o consumo da água contaminada pode trazer para a população?
Maria de Lourdes: O trabalho desenvolvido teve por objetivo geral analisar a consistência do atual padrão de potabilidade brasileiro referente aos agrotóxicos, com base nos preceitos da metodologia de avaliação de risco. Na verdade, o estudo não analisou a potabilidade de amostras de água. Foi feita uma análise crítica da legislação brasileira (Portaria MS nº 518/2004) em relação aos atuais parâmetros agrotóxicos regulamentados e à forma como tal padrão para agrotóxicos tem sido definido no Brasil. Feito também um estudo comparativo com normas dos EUA, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e com os guias de qualidade da água recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A escolha dessas diretrizes internacionais para comparação foi, sobretudo, pelo fato de tais países, assim como a OMS, utilizarem os pressupostos da metodologia de avaliação de risco na definição de seus valores guia. Foi feita, ainda, uma descrição sobre o perfil de uso de agrotóxicos no Brasil, em termos dos princípios ativos mais utilizados e unidades da Federação com maior intensidade de uso.
As informações nacionais sobre detecção de agrotóxicos em águas brutas e tratadas são, muitas vezes, relacionadas a estudos pontuais. Embora o monitoramento de agrotóxicos em águas destinadas ao consumo humano, tanto pelos prestadores de serviços de abastecimento (controle de qualidade da água) quanto pelo setor saúde (vigilância da qualidade da água), seja uma atividade prevista na legislação brasileira, com frequência mínima de amostragem semestral, na prática, essa atividade ainda é tímida. Outro ponto importante é que as informações disponibilizadas no Sistema Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde, sobre os resultados das análises de vigilância e controle da qualidade da água no país são ainda pouco expressivas para os parâmetros agrotóxicos; em parte devido a não realização do monitoramento ou cumprimento parcial dos planos de amostragem da vigilância e do controle. Outra razão seria a inconstância ou baixo nível de alimentação do sistema de informação, cuja operacionalização não é obrigatória para as secretarias municipais de saúde, ainda que seja uma ação, dentre diversas outras importantes, que afeta a vigilância da qualidade da água para consumo humano.
De acordo com o resumo da tese, a última atualização para definição do padrão de potabilidade de água ocorreu em 2000. Diante do crescimento da agroeconomia brasileira, quais itens uma nova regulamentação deveria contemplar?
Maria de Lourdes: Um dos objetivos específicos do trabalho foi a avaliação da pertinência de manutenção dos atuais parâmetros agrotóxicos relacionados na legislação nacional e seus respectivos valores máximos permitidos (VMP), bem como o acréscimo de outras substâncias. A premissa seguida foi a de que essa problematização pudesse apresentar subsídios para viabilizar decisões regulatórias que afetam a potabilidade da água, sobretudo ao se pensar que a legislação brasileira está, atualmente, em processo de revisão, cuja coordenação está a cargo do Ministério da Saúde, órgão responsável por editar normas e o padrão de potabilidade nacional.
Quais critérios são levados em consideração para a definição desses padrões?
Maria de Lourdes: A definição de padrões de potabilidade de água para substâncias químicas, e especificamente para agrotóxicos, normalmente leva em consideração alguns importantes critérios, dentre os quais podem ser citados: o conhecimento da intensidade de uso dessas substâncias no país e a análise das evidências toxicológicas e dos riscos de tais substâncias ao ser humano. Além disso, deve ser estabelecido o valor máximo permitido para a concentração da substância na água mediante a utilização dos pressupostos da metodologia de avaliação de risco. Outro aspecto relevante a ser considerado é a factibilidade técnica e financeira de incorporação de parâmetros e respectivos VMP.
Cabe ressaltar ainda que os parâmetros e valores guias sinalizados pelas diretrizes da OMS, bem como as normas de outros países como EUA e Canadá, têm sido utilizados como referência por diversos países, incluindo o Brasil. Entretanto, é importante que a legislação nacional sinalizasse as bases científicas que nortearam a definição do padrão nacional, com a devida publicidade dessas informações aos interessados, para que não haja dúvidas sobre quais foram as premissas e condições de contorno definidas ou consideradas. Isso é importante porque, ao contrário das normas de países como EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, a atual legislação brasileira não apresenta, em seu conteúdo, ou em documentos complementares, informações detalhadas sobre as bases teóricas que fundamentaram a definição dos agrotóxicos de interesse e seus respectivos VMP, isto é, quais foram os estudos, condições de contorno ou diretrizes utilizadas como referência.
O trabalho apontou a inexistência de informações prontamente disponibilizadas pelo governo federal em termos da intensidade de uso de agrotóxicos no país. Como consequência, a obtenção dessas informações desagregadas por estado, cultura e princípio ativo, para os últimos anos, ficou inviabilizada. Diante disso, o estudo utilizou informações do ano de 2005 e, assumindo um perfil atual de uso semelhante, apresentou algumas substâncias cujo uso é importante e não estão contempladas na atual legislação brasileira, como o metamidofós e o mancozebe.
Alguns agrotóxicos tiveram sua produção e uso proibidos ou restringidos no mundo, e não são contemplados em diretrizes e padrões de potabilidade de alguns países. Entretanto, substâncias como o aldrin/dieldrin, DDT, endrin, heptacloro e hexaclorobenzeno (sinalizados na atual legislação brasileira) são, além de tóxicas para os seres vivos, reconhecidamente persistentes no ambiente e com potencial para bioacumulação, tendo sido encontradas inclusive em algumas amostras de água, no controle realizado por prestadores de serviço de abastecimento em 2008 no país. Tudo isso indicaria, ao menos a princípio, a pertinência em considerá-las em programas de monitoramento ambiental e, portanto, no estabelecimento de valores guias no Brasil.
Como funciona o processo de registro de agrotóxico no Brasil? Quais são os órgãos reguladores?
Maria de Lourdes: O registro de agrotóxicos não tem prazo de validade no Brasil. Entretanto, segundo o Decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002, cabe ao Ministério da Saúde, por meio da Anvisa, junto com o Ministério do Meio Ambiente, por meio do Ibama, e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) a importante atribuição de proceder à reavaliação do registro dos princípios ativos utilizados em agrotóxicos no país. Tal reavaliação deverá ocorrer quando houver indícios da ocorrência de riscos à saúde, comparados aos riscos avaliados à época da concessão do registro de determinado princípio ativo ou, ainda, quando o Brasil for alertado por organizações internacionais responsáveis pela saúde, alimentação ou meio ambiente, das quais nosso país seja membro integrante ou signatário de acordos. Daí a importância do processo de reavaliação daquelas substâncias cujo acúmulo no conhecimento científico indicar riscos à saúde e que, eventualmente, já tenham tido sua produção e uso proibidos ou restringidos em outros países. Nesse sentido, diferentes indústrias fabricantes de agrotóxicos têm reagido negativamente à reavaliação do registro de seus agrotóxicos, acarretando em decisões judiciais que impedem ou postergam os processos de reavaliação. Essa resistência e dificuldade impostas pelas empresas registrantes preocupam na medida em que diversas substâncias já defasadas ou potencialmente danosas à saúde permanecem disponíveis no mercado e passíveis de ocasionar problemas de saúde pública de grandes proporções.
Quais as principais conclusões da tese?
Maria de Lourdes: A despeito das limitações impostas pela ausência de dados recentes sobre o consumo de agrotóxicos no país, os resultados do trabalho quanto ao perfil do uso dessas substâncias apontaram que, além de um número considerável de princípios ativos e produtos registrados e, portanto, disponíveis no mercado, produtos não recomendados para determinadas culturas também têm sido utilizados. Adicionalmente, verificou-se que, embora existam alguns estados que respondam pelo maior consumo de agrotóxicos, sobretudo nas regiões Sudeste (São Paulo e Minas Gerais), Sul (Paraná) e Centro-Oeste (Mato Grosso e Goiás), os problemas advindos do uso dessas substâncias podem ser considerados como de abrangência nacional.
Tendo em vista a ampla gama de agrotóxicos com registro autorizado no Brasil, o uso considerável dessas substâncias em diversas culturas e as experiências internacionais consideradas no trabalho, seria importante que o governo federal sinalizasse valores guias para todos os princípios ativos cujo uso é autorizado, uma vez que, se disponíveis para utilização, podem estar presentes no ambiente e, em especial, nas águas utilizadas para consumo humano. Isso é particularmente importante ao se considerar que, independente da adoção de um padrão mandatório, devem existir ações específicas para o atendimento aos critérios de qualidade da água pelos prestadores de serviço de abastecimento e outras ações de vigilância por parte dos órgãos fiscalizadores, além do controle social, exercido pela população atendida. Conforme verificado para alguns países, a definição de normas de potabilidade mais abrangentes, em termos das substâncias sinalizadas, permite que os setores responsáveis pelo tratamento/distribuição da água e autoridades sanitárias possuam índices referenciais para quaisquer substâncias que potencialmente poderiam estar presentes na água, segundo as especificidades de determinado local. Adicionalmente, as limitações impostas pela aferição da qualidade da água, apenas segundo parâmetros específicos (por exemplo, nos sinergismos advindos de misturas de contaminantes), e as diretrizes internacionais mais recentes têm sinalizado para uma abordagem de qualidade da água mais ampla do que apenas a delimitação de parâmetros e respectivos VMP.
Como vê o papel da sociedade na questão?
Maria de Lourdes: Uma importante lacuna identificada no trabalho refere-se ao desconhecimento, por parte da sociedade em geral e mesmo de alguns segmentos do poder público, sobre a realidade nacional em termos do consumo de agrotóxicos. Não existem dados oficiais divulgados sobre a intensidade desse consumo e as especificidades das diferentes regiões brasileiras quanto ao volume e descrição das substâncias utilizadas nas diferentes culturas. Dentre os muitos prejuízos atribuídos a esse desconhecimento da realidade nacional, destaca-se a dificuldade em sistematizar informações e definir padrões de potabilidade de água mais próximos às necessidades do país.
Além da divulgação de dados oficiais sobre o consumo de agrotóxicos, cabe destacar a relevância da implantação de programas de monitoramento ambiental dos agrotóxicos mais consumidos no país ou daqueles elencados como prioritários em termos de potencialidade em trazer prejuízos à saúde humana e aos ecossistemas. A exemplo do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (Para), coordenado pela Anvisa, seria importante que os agentes públicos relacionados à temática desenvolvessem e implementassem uma política similar para o monitoramento ambiental de resíduos de agrotóxicos, sobretudo em solo e em água bruta e tratada, com a cobertura mais ampla possível, nas regiões do país. O desenvolvimento desses programas viabilizaria uma análise mais precisa sobre a exposição das populações aos agrotóxicos, via ingestão de água, assim como sobre a relevância dessa exposição face às outras possíveis rotas de contaminação, que incluiriam, por exemplo, a ingestão de alimentos, além de facilitar o processo constante de revisão dos parâmetros e limites de exposição.
Que outras recomendações a tese aponta?
Maria de Lourdes: Com base na relevância e complexidade do tema, seria importante o desenvolvimento de outros estudos que contemplem, por exemplo: (1) avaliação da viabilidade técnica e financeira de remoção de agrotóxicos, tendo em vista as diferentes tecnologias disponíveis para o tratamento de água e (2) sistematização e avaliação das possibilidades analíticas de detecção de agrotóxicos em água, quanto aos limites de detecção dos principais métodos e viabilidade técnica para incorporação das metodologias em larga escala, pelos prestadores de serviço de abastecimento de água e laboratórios de saúde pública;
A revisão e atualização dos parâmetros agrotóxicos constituem-se apenas como parte (importante) de um processo maior, que contempla a legislação de potabilidade de água em toda sua amplitude. Nesse sentido, é importante que o governo federal e, enquanto responsável pela definição do padrão de potabilidade nacional, o Ministério da Saúde institucionalizem essa importante tarefa de revisão contínua do padrão de potabilidade nacional. Para isso e, a exemplo da experiência de outros países, é necessário, em primeira instância, a definição de um plano de trabalho e a garantia da continuidade do processo mediante a sustentabilidade financeira, operacional e de recursos humanos.
Informe Ensp/Agência Fiocruz de Notícias, publicado pelo EcoDebate, 27/05/2010
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