O direito privado de saquear os bens comuns. Análise de Antonio Negri
A lei era o instrumento para proteger a propriedade privada. E, se no início da revolução industrial era usada nos países europeus, nos Estados Unidos, em seguida começou a legalizar a pilhagem da matéria-prima no sul do planeta. Agora, esse mesmo dispositivo consente a privatização da água, dos serviços sociais, do conhecimento.
A análise é de Antonio Negri, filósofo político marxista italiano e autor dos livros “Império” e “Multidão”, ambos escritos em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt. O artigo foi publicado pelo jornal Il Manifesto, 12-05-2010. A tradução é de Anete Amorim Pezzini.
Eis o texto.
Finalmente, surge um “livro enfurecido” e ”corajoso” por parte de um grande jurista e de uma antropóloga de bom calibre (Ugo Mattei e Laura Nader, O saque. Regime de direito e transformações globais, Ed. Bruno Mondadori). A relação entre pensamento jurídico e a apologia das instituições da ordem, da propriedade e da exploração raramente é posta em questão, e, quando isso acontece, é fora do mundo jurídico e em nome de ideologias moralizantes ou politicamente obsoletas. Este, ao contrário, é um livro de crítica do direito provindo de dentro do direito.
“Com tudo o que tem sido escrito sobre dominação imperialista e colonial e sobre a globalização como manifestação contemporânea com relações semelhantes de poder entre o Ocidente opulento e o resto do mundo, afeta a atenção limitada dedicada ao papel do Direito nesses processos. […] É difícil não perceber que o direito foi e é ainda utilizado para administrar, sancionar e, sobretudo, justificar a conquista e o saque ocidental. E é exatamente esse contínuo, e jamais interrompido saque que provoca – muito mais do que as razões ligadas à dinâmica corruptora interna dos países pobres com os quais se tenta culpar as vítimas – a maciça desigualdade global. A ideia principal da autocelebração ocidental é ligada com fio duplo a certa concepção do direito, que existe em italiano, para sublinhar a ambiguidade, como regime de legalidade (Estado de Direito).”
O projeto do livro não será então somente o de desmistificar a função do direito na sua figura neoliberal (isto é, de indicar-lhe o poder de cobertura, falsificação e a neutralização das relações de dominação em geral) – mas será, sobretudo, desconstruir-lhe os valores, criticando-o e dissolvendo-lhe a função dentro de seus movimentos. De que modo?
Fornecedores de legitimidade
Em primeiro lugar, mostrando que o regime de legalidade não é uma superestrutura da economia liberalista, mas uma máquina que funciona dentro dela, que organiza diretamente a produção e os mercados para o liberalismo. Disso resulta que, no colonialismo e no imperialismo, o direito não fez outra coisa senão desenvolver e aplicar o Estado de Direito, não somente estendendo os campos de eficácia do direito burguês aos países fora do centro de desenvolvimento, mas constituindo, sobre esses valores, a vida dos povos, a fim de dominá-los.
Ali há provavelmente certo luxemburguismo nessa abordagem – não foi tudo correto do ponto de vista da crítica da economia política, mas do sacrossanto ético-político. Em segundo lugar, uma vez reconhecida a gênese, os processos de desestruturação crítica devem saber reconhecer o que faz funcionar a máquina, que são os “fornecedores de legitimidade”. Eis então que nos encontramos diante de sujeitos dominantes que utilizam supostos idealismos filosóficos e modernizadores, constituições políticas hipócritas e, enfim, aparatos jurídicos funcionais que constituem os dispositivos de um saque materialíssimo das riquezas e da autonomia das populações dominadas. O direito imperialista expande os valores do direito colonial, exigindo nova legitimação em nome das funções de globalização. Que confusão!
Neste ponto, em terceiro lugar, o projeto de desestruturação da lei imperialista pode aplicar-se dentro dos países em que esse direito é produzido: para verificar um primeiro paradoxo, a saber, o da pilhagem do mundo inteiro, realizado por intermédio de figuras jurídico-liberais, agora retorna e transborda nos países imperialistas, impondo o desmantelamento da legalidade tradicional que havia permitido a expansão e a fruição interna dos superávits imperialistas. Depois de haver destruído tudo, o dragão come sua cauda.
Os jardins da resistência
Como resistir a esses processos? Mattei e Nader são muito pessimistas sobre o terreno político. O quadro que a globalização fixou é, segundo eles, trágico. Mesmo as políticas da presidência de Obama – e a promessa de suspender os excessos imperialistas do governo Bush – parecem-lhes perfeitamente coerentes, para melhor ou para pior, com o quadro final que delinearam. Obama não pode interromper a máquina do imperialismo americano. Parece-me que os nossos autores, contudo, vão mais a fundo no terreno jurídico do que o fazem no terreno político; e que a sua análise reconstituiu a mesma estrada que percorreram as críticas de Evgeny Pashukanis, grande crítico russo do direito privado e público em geral, até Jacques Derrida, crítico contemporâneo da soberania. Quando Derrida desconstrói as determinações de poder do regime capitalista e conduz a crítica até conclusões extremas, ele verifica a afirmação de Pashukanis de que, globalização ou não, o direito público e o direito burguês, em geral, são sempre e somente valores de apropriação privada e que o direito é, na realidade, sempre o autorreconhecimento e o poder armado da sociedade burguesa.
Uma vez estabelecidos esses pressupostos, como avançar sobre o terreno da proposta política? Na modernidade, sonhou-se que, contra Hobbes e Locke, fosse possível encontrar no público, no Estado, no poder democrático uma alternativa ao “estado natural” e às suas mais violentas expressões. De um lado, uma fração de jesuítas espanhóis, a polêmica contra a modernidade e, de outro, sobre a face do materialismo, Spinoza pensaram já no século XVII: a paixão do “bem comum” devia construir um terreno, um abrigo que nos salvasse da violência da primeira acumulação originária do capitalismo. Esses bravos não tiveram sucesso, porque o capitalismo afirmou-se de qualquer maneira, rebaixando a religião em seu instrumento de poder e fechando a utopia materialista nos jardins da resistência. Assim, a construção de um novo direito público integrou a continuidade do direito privado. Mas, hoje, chegamos a um ponto de ruptura.
Longe de constituírem-se em lugares de ausência de direito, o município começa a mostrar-se e pode ser definido como um poder construído sobre o privado e o público, sobre o contrato e a sanção estatal. Por não haver incluído, a esquerda socialista e a comunista, na Europa e em todo o Ocidente, elas estão falidas. Além disso, quando começamos a raciocinar sobre e dentro do “pós-moderno”, não podemos mais simplesmente recordar e dar vazão à alternativa heroica construídas no “moderno” em torno da ideia do “bem comum”. Devemos, em vez disso, chegar a pôr esse problema em termos de total descontinuidade com a ideia de uma apropriação individual, privada ou pública de quaisquer bens.
O poder dos ricos
O município torna-se agora um projeto de gestão democrática, implantada na expressão da individualidade e da sua necessidade de viver e de produzir de modo cooperativo. O município já é uma realidade em parte constituída da atividade humana no pós-moderno e, de outra parte, um projeto para construir e repartir tudo o que a atividade produtiva constrói. Por que tudo, sendo produto de todos pertence a todos. Nesse ponto, a ordem jurídica (e as suas instituições) deveria ser predeterminada para essa finalidade. Mas o que fazer para impedir que até essa hipótese se revele utópica?
“É necessário reconhecer que é impossível transformar significativamente o regime de legalidade imperialista em um regime de legalidade popular sem uma profunda reestruturação do âmbito político. Para pode prosseguir nesse sentido é, todavia, necessário desmistificar alguns tabus, entre os quais os da desejabilidade da experiência histórica para si até aqui conhecida como regime de legalidade.” Assim concluem Mattei e Nader: esse regime defende os ricos, a sua apropriação de grande parte da riqueza produzida neste mundo. Os ricos saqueiam os pobres. Acredito que, dito isso, é mais a palavra do jurista que a do político, mais a do jurista que a do antropólogo. A experiência de legalidade: como fazê-la oscilar no sentido de uma transformação radical? Quais são as condições materiais que podem permiti-lo e em quais delas o processo está em desenvolvimento? Quais os regimes da imaginação e quais os aparatos de resistência que romperam, no ânimo das multidões, a ideia da legalidade e impõem o dever da desobediência? Qual é o grau atual de maturidade da desmistificação da legalidade, assim como de generalização do desejo de desestruturar essa realidade ignóbil?
Os políticos parecem todos ignorarem esses problemas. Quando a antropologia era uma ciência da transformação e, ao mesmo tempo, um conjunto de dispositivos aptos tirar a consequência dos seus pressupostos, a política não servia, bastavam os grandes movimentos das multidões. O Iluminismo foi isso.
(Ecodebate, 21/05/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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