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Entrevista com Dom Cappio: ‘O objetivo da transposição já foi alcançado’ (texto e áudio)

Dom Cappio em Berna. (swissinfo)
Dom Cappio em Berna. (swissinfo)

Os argumentos de dom Cappio contra a transposição do Rio São Francisco
Em entrevista à swissinfo.ch, dom Luís Cappio afirma que o projeto de transposição do Velho Chico é “inconstitucional”, “absurdo” e só beneficia a agroindústria.

Dom Cappio aponta alternativas à transposição
Na segunda parte da entrevista à swissinfo.ch, o bispo Luís Flávio Cappio apresenta alternativas à transposição do Rio São Francisco e acusa a Justiça brasileira de ser atrelada ao Executivo.

Dom Cappio: “Produção de frutas usa mão de obra semiescrava”
O bispo Luís Cappio, de Barra (BA), critica os projetos de irrigação para exportação à beira do Rio São Francisco e diz que a alternativa seria a agricultura familiar.

Em sua primeira visita à Suíça, o bispo Luís Flávio Cappio, de Barra, na Bahia, diz que a transposição do Rio São Francisco serviu para angariar fundos para as eleições de 2010 e que a conclusão do projeto não é importante para o governo.

Ele critica os projetos de irrigação que beneficiam a agroindústria e diz que a alternativa seria a agricultura familiar e a democratização da água acumulada em cerca de 70 mil açudes do Nordeste setentrional. Reportagem de Geraldo Hoffmann, na Agência Swissinfo.ch.

Dom Luís Flávio Cappio participa das comemorações dos cinco anos da declaração ecumênica em defesa da água como direito humano e bem público, assinada em 2005 pelas conferências nacionais dos bispos do Brasil e da Suíça e pela Federação das Igrejas Protestantes Suíças.

Swissinfo.ch conversou com ele em Berna, onde participou nesta quinta-feira de um debate sobre a transposição do Velho Chico. A seguir, as principais afirmações que ele fez na entrevista, cuja íntegra pode ser ouvida nos áudios na coluna à direita.

swissinfo.ch: Por que o senhor é contra a transposição do Rio São Francisco?
Dom Luís Cappio: Em primeiro lugar, essa obra é inconstitucional. Pela Constituição de 1988, todos os recursos aplicados em projetos hídricos devem priorizar o abastecimento das comunidades. E o projeto não faz isso.

Água não nos falta. O que nós precisamos é de parceria do governo federal com as prefeituras para que a água acumulada nos açudes seja distribuída nas muitas comunidades do Nordeste.

E o projeto de transposição, em vez de democratizar a água, visa a segurança hídrica desta água do Rio São Francisco nos açudes e perenizar os rios para os projetos agroindustriais. Por isso, nós somos contrários ao projeto.

swissinfo.ch: Qual seria a alternativa?
D.L.C.: A grande alternativa o próprio governo já possui. A Agência Nacional de Águas (ANA) tem como prioridade, através do Atlas do Nordeste, democratizar a água acumulada nos 70 mil açudes do Nordeste setentrional, levá-la às comunidades. Este é o projeto alternativo que nós assinamos embaixo, mas infelizmente o governo brasileiro, graças ao lobby das grandes empresas transacionais e das empreiteiras construtoras da obra, optou pelo projeto de transposição.

swissinfo.ch: O governo argumenta que as obras da transposição vão gerar 5 mil empregos e que o projeto vai beneficiar 12 milhões de pessoas no semiárido. A alternativa apresentada pela ANA teria o mesmo efeito?
D.L.C.: Aí nós devemos saber qual é a prioridade dos investimentos públicos. A prioridade é o abastecimento hídrico das comunidades. Esta região é muito seca, o povo precisa de água para beber, para seu uso, para a produção familiar dos alimentos. Essa é a prioridade para os recursos aplicados em projetos hídricos e não o projeto de transposição que visa a aplicação na agroindústria.

swissinfo.ch: Faria sentido combinar os dois projetos?
Desde que se priorizasse o abastecimento hídrico das comunidades… E para isso o projeto alternativo é suficiente.

swissinfo.ch: Como o senhor avalia os projetos de irrigação?
D.L.C.: Eu os avalio a partir do que está acontecendo no eixo Juazeiro e Petrolina, na região do Rio São Francisco, que é especializado em irrigação para a produção principalmente de frutas para a exportação e uvas para a indústria do vinho.

As técnicas usadas são das mais avançadas do mundo. E o produto econômico é também muito interessante. Mas sob o ponto de vista social e ecológico, as conclusões são bem diferentes. As grandes produções de frutas para a exportação utilizam uma mão de obra sazonal semiescrava, a maioria desses trabalhadores sem nenhum direito social, não protegidos pelas leis trabalhistas.

E a água vem do rio e depois volta totalmente envenenada pela quantidade imensa de agrotóxicos utilizados na produção dessas frutas. Nesse sentido, eu posso prever o que será a agroindústria depois das águas do projeto de transposição. Com certeza, a lógica será a mesma.

swissinfo.ch: Quais seriam as alternativas social e ecologicamente sustentáveis para criar empregos e manter a população na região?
D.L.C.: É a agricultura familiar que coloca a mesa do povo brasileiro e especialmente do semiárido. Não é da agricultura extensiva para a exportação que o povo se alimenta. Pelos projetos alternativos de abastecimento hídrico se garante o consumo de água, como também o abastecimento hídrico da produção familiar de alimentos que são consumidos. Essa é a grande alternativa e não a aplicação de recursos maciços para a agroindústria de exportação.

swissinfo.ch: O senhor fez duas greves de fome, mas as obras continuam. A batalha está perdida?
D.L.C.: Não, as greves de fome foram um grito lançado diante da postura surdo muda do governo diante do clamor da sociedade civil que é contrária ao projeto de transposição. Nós dizíamos: ‘Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho’. Quem sabe, um grito dessa natureza pudesse despertar para a insanidade que consiste o projeto de transposição.

E esse grito deu conhecimento a nível nacional e internacional deste projeto insano. É por isso que nós estamos aqui: para mostrar para o mundo o absurdo em que consiste este projeto. E o nosso grito através dos jejuns também teve o mérito de fortalecer os movimentos sociais, que se uniram no sentido de combater esses projetos que vêm contra os interesses da população.

swissinfo.ch: A Justiça brasileira não teria condições de barrar o projeto?
D.L.C.: Existem duas ações no Supremo Tribunal Federal contrárias ao projeto: uma falando da inconstitucionalidade e a outra porque o projeto invade territórios indígenas. E essas duas ações nunca foram julgadas. Os ministros do Supremo Tribunal Federal são escolhidos pelo presidente da República. A Justiça brasileira infelizmente está atrelada ao Executivo. E nós atribuímos a isso o não julgamento dessas duas ações.

swissinfo.ch: O senhor espera mudanças no projeto da transposição e em outros projetos semelhantes depois do governo Lula, principalmente na questão do diálogo com a sociedade civil?
D.L.C.: O grande objetivo dos grandes projetos governamentais, tipo transposição do Rio São Francisco, é um objetivo corrupto, de angariar fundos para as eleições deste ano. Se o projeto vai adiante ou não, não é importante para o governo brasileiro porque o objetivo já foi alcançado: obter fundos para as eleições de 2010.

Transposição do Chico

A ideia de transpor águas do Rio São Francisco para o sertão vem do tempo do Império, mas só ganhou status de prioridade no governo Lula, sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional

Prevê a construção de 720 km de canais para levar água a bacias hidrográficas no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.

Segundo o projeto, 70% da água captada (o total deverá ser de 26 m3/s) será para irrigação, 30% para uso urbano e insdustrial.

O custo estimado das obras, que já estão em andamento, é de R$ 5 bilhões. Segundo o governo, elas geram 5 mil empregos diretos.

O projeto gerará 180 mil empregos somente na área rural e beneficiará 12 milhões de pessoas no semiárido, diz o governo.

Os críticos do projeto dizem que isso não passa de propaganda e que a intenção do governo é apenas beneficiar a agroindústria através de projetos de irrigação.

Dom Cappio

Luís Flávio Cappio nasceu em 4 de outubro de 1946, em Guaratinguetá (SP).

De origem italiana, estudou no Rio de Janeiro, foi ordenado padre em 1971 e trabalhou na Pastoral Operária em São Paulo.

Desde 1971 vive no sertão nordestino. Em 1992, fez uma peregrinação de 6 mil quilômetros da nascente até a foz do Rio São Francisco.

Nos anos de 2005 e 2007, tornou-se conhecido internacionalmente devido a duas greves de fome contra o projeto de transposição do Velho Chico.

Em 6 de julho de 1997, foi ordenado bispo da diocese de Barra (BA).

Em 2008, obteve o 2008 Prêmio da Paz, concedido pela Pax Christi Internacional, com sede em Bruxelas.

Em 2009, recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant, na cidade de Freiburg (Alemanha).

* Colaboração de Ruben Siqueira, CPT/BA, para o EcoDebate, 11/05/2010

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3 thoughts on “Entrevista com Dom Cappio: ‘O objetivo da transposição já foi alcançado’ (texto e áudio)

  • Paulo Afonso da Mata Machado

    Excelentíssimos senhores D. Luiz Flávio Cappio, Ruben Siqueira e outros críticos da transposição:
    Os senhores sabem que o semi-árido brasileiro é um dos mais povoados do mundo, com cerca de 20 milhões de habitantes ou 40% da população do Nordeste.
    Sabem, portanto, que não adianta apregoar que os habitantes do semi-árido têm que aprender a conviver com a seca. A espécie humana tem necessidades diferentes dos animais. Se até estes abandonam as regiões secas durante o período de estiagem (“até mesmo asa branca, bateu asas e voou” ) por que a espécie humana deve se sentir obrigada a permanecer num local inóspito sem buscar alternativas que possam melhorar sua convivência nesse local? Por que condenar as transposições, sendo elas tão usadas no Brasil e sempre com absoluto sucesso?
    A ONU estima que, em todo o mundo, 25% dos leitos hospitalares são ocupados por pessoas que têm doenças relacionadas à água. É simplesmente inacreditável que haja cidades no Brasil com população superior a 5.000 habitantes sem água tratada. Por isso os hospitais públicos estão cheios de pessoas com verminoses, dermatites e outras doenças de contaminação hídrica. Será que impedindo a chegada da água a quem não a tem em quantidade suficiente vai fazer com que esse quadro seja revertido?
    Por que os senhores usam o portfólio denominado Atlas Nordeste para combater a transposição, sendo que uma coisa não tem nada a ver com a outra? Quando a ANA elaborou esse portfólio, jamais imaginou que seria usado pelos senhores como alternativa à transposição e foi preciso que seu presidente emitisse nota protestando veementemente contra o uso indevido que os senhores fazem do Atlas Nordeste.
    Ao invés disso, sugiro usarem suas energias para exigir que essa situação mude. Os senhores não ignoram que a transposição será de grande valia para reverter essa situação, mesmo que o número de pessoas a serem beneficiadas pelo projeto não seja doze, mas sete milhões como concluiu o TCU. Independente de serem sete ou doze milhões, o certo é que milhões de pessoas do semi-árido serão beneficiadas pela transposição.
    Por que lamentar que a transposição possa trazer um grande desenvolvimento para o estado do Ceará, a ponto de “competir com os produtos de exportação gerados na bacia do Rio São Francisco, devido à maior proximidade dos portos da Europa” (Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco, pag. 240)? Por acaso o Ceará não faz parte do Brasil?
    Por que ficar lembrando transposições que não deram certo em outros países, procu-rando ignorar as transposições cobertas de êxito feitas no Brasil?
    Em minha cidade, Belo Horizonte, a única capital situada na bacia do Rio São Francisco, essa medida é adotada, transferindo-se água do Rio Manso para complementar a água do Rio das Velhas no abastecimento da capital mineira. Como ambos – o Rio das Velhas e o Rio Manso – são afluentes do Rio São Francisco, trata-se de uma transposição entre sub-bacias, ou uma transposição interna, como é defendida pelos senhores (Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 100).
    Uma transposição de maior parte é a que abastece a cidade de Fortaleza pela transfe-rência de águas armazenadas no açude Castanhão. A propósito, se não fosse a transferência de águas do Castanhão, Fortaleza teria um déficit hídrico enorme e a cidade somente cresceu e se tornou uma das mais populosas do país devido a essa transposição.
    O Rio Tietê, em cuja bacia se insere a capital paulista, mesmo represado, não tem va-zão suficiente para abastecer São Paulo e região. Para solucionar o problema de falta de água na capital paulista, foi construído o Sistema Cantareira, que tem a vazão de 33 m3/s, sendo 31 m3/s oriundos de transposição da bacia do Rio Piracicaba e 2 m3/s transferidos do Rio Juquery, afluente do Tietê.
    É possível que, sendo o estado de São Paulo beneficiário da maior transposição entre bacias já feita no Brasil, seja essa a razão pela qual seu governador tenha-se recusado a rece-ber os integrantes da Caravana em Defesa do São Francisco e do Semi-Árido e Contra a Trans-posição e também se explica a atitude do governador do Rio de Janeiro com relação à caravana. A cidade do Rio de Janeiro, beneficiária da transposição de águas do Rio Paraíba do Sul para fortalecer o Sistema do Guandu, é a capital brasileira que usufrui por mais tempo de uma transposição entre bacias.
    Os sistemas Cantareira e do Guandu são responsáveis pelo abastecimento de 19 mi-lhões de habitantes.
    Os senhores reconhecem que os habitantes do semi-árido vivem num ambiente de estagnação econômica e que esse baixo patamar econômico em que vivem se deve, principalmente, à carência de água na região. Por que, então, os senhores combatem com tanta veemência um projeto que objetiva levar água para quem precisa?
    Os senhores admitem que existe uma baixa disponibilidade hídrica nos estados da Paraíba e de Pernambuco, pois sugerem uma vazão constante de 9 m3/s ou, até mesmo, de 10 m3/s para o Eixo Leste , superior mesmo à vazão firme de 8 m3/s que está sendo implantada. Por que, então, insistem em lutar contra uma necessidade real da região? Sabem que uma disponibilidade hídrica inferior a 2.500 m3/(hab.ano) é considerada pobre e, sendo inferior a 1.500 m3/(hab.ano), a situação pode ser considerada como muito pobre. Paraíba, com 1.437 m3/(hab.ano) e Pernambuco, com 1.320 m3/(hab.ano), são estados pobres de água.
    Os senhores não ignoram que, com o crescimento da população, estima-se que cerca de 17,5 milhões de nordestinos vão ter menos de 500 m3/ano nos próximos 20 anos. Isso é menos da metade do mínimo recomendado pela ONU.
    Vamos falar, agora, das transposições de águas do próprio Rio São Francisco.
    Os senhores sabem que já existe mais de uma transposição de águas do Rio São Francisco, como, por exemplo, a adutora do Oeste, com 200 km de extensão, que retira 0,4 m3/s do Rio São Francisco, no município de Orocó, levando essa vazão para o município de Ouricurí, distante 623 km de Recife. O PISF não ignorou essa necessidade dos habitantes do agreste de Pernambuco, pois derivará 0,23 m3/s da vazão do Eixo Norte para abastecer os açudes Entre Montes e Chapéu, na própria bacia do Rio São Francisco, por meio de uma adutora de 110 km de comprimento, que atenderá aos municípios de Brígida, Terra Nova e Pajeú.
    Por que os senhores insistem em ignorar o paralelo entre a situação atual do Nordeste Setentrional e a situação que vivenciou Aracaju anos atrás? Os senhores não desconhecem que mais de 60% da água consumida em Aracaju e em cidades vizinhas é importada da bacia do São Francisco. Talvez isso explique a posição do governador de Sergipe frente à Caravana em Defesa do São Francisco e do Semi-Árido e Contra a Transposição. Afinal, não é de bom tom cuspir no prato em que se come.
    Os senhores sabem que as adutoras de transposição para Aracaju foram, inicialmente, concebidas para atender ao parque industrial do município, mas, em pouco tempo, a população passou a demandar mais água e o Rio Sergipe, que banha a cidade, não se mostrou suficiente para o abastecimento da capital e a solução foi ampliar a vazão transferida do Rio São Francisco, que passou a atender também ao consumo humano. Uma maior oferta de água sanou as demandas reprimidas, principalmente do parque hoteleiro, pois, recentemente, houve um aumento na vazão captada de 1,8 para 3 m3/s, (de 57 milhões de m3/ano para 95 milhões de m3/ano).
    A transposição para Aracaju vem quebrando vários paradigmas.
    Os senhores insistem em alegar que, se os estoques de água são suficientes para o a-bastecimento, não se deve buscar água em outras bacias. A importação de água do São Francisco demonstrou que havia uma forte demanda reprimida na capital sergipana e em cidades vizinhas, embora a vazão retirada do Rio Sergipe fosse considerada suficiente.
    Um segundo paradigma quebrado é o de que a retirada de água junto à foz poderia acelerar o processo de salinização da água do São Francisco. A captação de água para Aracaju é feita próximo à foz, sem que possa ser relacionada à intrusão de água salgada no Velho Chico.
    Quando se trata de agricultura, não existe nenhuma diferença em se retirar água para ser usada na bacia ou para ser usada fora da bacia, pois as modernas técnicas agrícolas não mais admitem consumo excessivo, com o retorno de parte da captada volte para o rio. Essa suposta diferença, que fez tanta gente combater toda e qualquer transposição, já não existe.
    Ressalte-se que, nos projetos ultrapassados de irrigação com pivô central, inundação ou outros métodos que não se preocupam com a economia da água, parte dela volta, sim, ao rio. Mas volta carregada de agrotóxicos, que matam os peixes. Por essa e outras razões é que se está a reclamar uma revitalização do Velho Chico que todos nós defendemos, sejamos favoráveis ou contrários à transposição.
    Outro paradigma quebrado pela transposição para Aracaju é com relação ao destino da água transposta.
    A Deliberação CBHSF nº 18, de 27.10.2004, estipula, em seu art. 3º, que a concessão de outorga para uso externo à bacia do São Francisco deve ser feita, exclusivamente, para consumo humano ou animal.
    Como foi dito, a transposição para Aracaju foi feita, inicialmente, para atender ao setor industrial e, ainda hoje, boa parte da vazão retirada do São Francisco é utilizada pela Companhia Vale do Rio Doce, pelo complexo industrial de Socorro e pela Fábrica de Fertilizantes do Nordeste.
    Diga-se, de passagem, que o citado dispositivo da Deliberação CBHSF nº 18 é inconsti-tucional, pois fere o princípio da isonomia. Os senhores sabem que o Rio São Francisco é um rio nacional, que pertence a todos os brasileiros. Reservar aos habitantes da bacia do São Francisco água para ser usada na agricultura e na indústria e exigir que a água entregue a não habitantes da bacia seja usada estritamente para consumo humano ou animal é semelhante a um governador decretar que todas as obras de grande e de médio porte no estado fiquem reservadas para as empresas nele sediadas, permitindo-se às outras empresas apenas a participação em concorrências para obras de pequeno porte.
    Mesmo não sendo argüida a inconstitucionalidade do art. 3º da Deliberação CBHSF nº 18, este não pode se aplicar a Aracaju, pois a cidade já utilizava água do São Francisco para as empresas hoje pertencentes à Companhia Vale do Rio Doce antes de se promulgar essa deliberação ou até mesmo antes que existisse o próprio CBHSF.
    Há, no entanto, outro paradigma que precisa ser quebrado. Diz o ditado popular que o roto se ri do esfarrapado. Faço sugestão ao que foi roto para não procurar impedir o esfarrapado de conseguir roupas melhores, ou seja, os habitantes de Aracaju, beneficiários de uma transposição do Rio São Francisco, não devem combater outra transposição do Velho Chico, que tem o objetivo de beneficiar os habitantes do Nordeste Setentrional.
    Digo isso porque a resistência ao PISF é muito grande em Aracaju. Conhecedor da alma nobre do nordestino, acredito que isso somente se explica pelo fato de muitos aracaju-enses temerem que essa nova transposição possa “matar” o Rio São Francisco ou que possa comprometer o abastecimento de água em sua cidade. Posso garantir que não acontecerá nem uma coisa nem outra e gostaria de sossegá-los citando números que não são desconhecidos dos senhores.
    A vazão mínima ecológica na foz do Velho Chico, como dispõe a Deliberação CBHSF 08, art. 4º, é de 1.300 m3/s. Em algumas situações de seca intensa no Alto São Francisco (tudo o que ocorre ao longo de todo o Rio São Francisco é reflexo do que acontece na sua parte alta ), a CHESF solicita autorização para reduzir essa vazão para 1.100 m3/s.
    Pois bem, comparemos esses números com a vazão firme de transposição para o Nordeste Setentrional, que será de 18,4 m3/s para o Eixo Norte e de 8 m3/s para o Eixo Leste e com a vazão de transposição do São Francisco para Aracaju, que é de 3 m3/s.
    Conforme foi dito, o Rio São Francisco transfere para Aracaju menos de 100 milhões de m3/ano, enquanto descarta no Atlântico quase 100 bilhões de m3/ano , ou seja, para cada litro de água transferido para Aracaju, o Velho Chico despeja quase 1.000 litros no mar.
    A transposição para Aracaju, por meio de adutoras, gerou uma grande dúvida com relação à utilização de canais pelo PISF. Argumenta-se que o Eixo Leste deveria também atender à população de Pernambuco e da Paraíba por meio de adutoras, a exemplo do que faz a concessionária de águas de Sergipe. Trata-se, no entanto, de um raciocínio equivocado, pois isso eliminaria uma das grandes vantagens do PISF.
    A vazão firme prevista para o Eixo Leste é de 8 m3/s. Entretanto, quando a Represa de Sobradinho estiver em regime de espera para controle de enchentes ou quando estiver com 94% de seu volume útil, está prevista uma vazão de até três vezes e meia esse valor, ou seja, de 28 m3/s. Uma adutora com vazão tão variável funcionaria quase todo o tempo com velocidade muito baixa, o que facilitaria a entrada de ar na tubulação.
    Há, ainda, outras questões que não recomendam, nesse caso, o uso de adutoras. O divisor de águas entre as bacias do Rio São Francisco e do Rio Sergipe é muito mais baixo que o divisor de águas ao norte da bacia do São Francisco, cuja altura é de 304 metros em relação ao ponto de captação na Represa de Itaparica. Isso exigiria que a adutora tivesse material de altíssima resistência, com tubulação de grande espessura, ou que fossem realizados vários bombeamentos em série, encarecendo a operação do sistema.
    Devo, no entanto, reconhecer que muitos dos senhores admitem que, sob o aspecto técnico, o projeto seja inatacável. Gostaria que analisassem não apenas os aspectos técnicos do projeto, mas, também, seus aspectos sociais.
    Recomendo aos senhores que considerem a grande responsabilidade de combater um projeto que vai amenizar a situação de atraso em que se encontra o Nordeste Setentrional, a qual é reconhecida por todos nós.

  • Francisco Valmir de Freitas

    Eu não acredito ver ninguem comendo um maxixe pruduzido com agua da transposição. Se isso acontecer muito me sintirei honrrado por meus compatriotas.

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