Os ônus a cargo de quem os gera, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Merece ser acompanhado com atenção o projeto de lei enviado pela Prefeitura paulistana à Câmara de Vereadores, que autoriza cobrar de novos empreendimentos comerciais e condomínios residenciais até 5% de seu valor, para financiar melhorias no sistema residencial da área circundante, que será afetada pelo adensamento humano (Estado, 16/4). É uma iniciativa na direção contrária à prática generalizada de transferir para o poder público, e para a sociedade, os ônus de qualquer empreendimento, enquanto as vantagens se circunscrevem a poucas pessoas ou grupos. A “privatização do lucro e socialização do prejuízo”, no dizer do falecido ministro Roberto Campos (que nem por isso deixou de privatizar tantos lucros).
Mas o fato é que, segundo o noticiário deste jornal, será possível, pelo caminho proposto, cobrar até 5% do valor da obra para melhorias no sistema viário, que será afetado pela maior densidade populacional ou de usuários. O exemplo dado é de um shopping center no valor de R$ 300 milhões que, aprovado o projeto, terá de aplicar R$ 15 milhões em iniciativas que “amenizem o impacto no entorno”. Ou um condomínio que tenha 50 vagas nas garagens. Já um pequeno empreendimento teria de contribuir, por exemplo, para implantar faixas de pedestres. O exemplo mencionado de área afetada pelo aumento da ocupação ? sem nenhuma compensação é o da Avenida Francisco Matarazzo, onde em uma década foram implantadas 17 torres residenciais, um hipermercado, duas casas noturnas e uma universidade para 20 mil alunos sem exigência de contrapartida.
É uma visão que precisa ser estendida a qualquer empreendimento na área urbana, para que cesse a transferência de ônus para o poder público e para a sociedade. Em um novo loteamento nas cidades brasileiras, por exemplo, a regra é que o incorporador imobiliário apenas demarque os lotes e os entregue aos usuários frequentemente até sem redes de esgotos, de drenagem e pavimentação. Nesses lugares, caberá ao poder público com o dinheiro proveniente dos impostos pagos por todos os cidadãos, não beneficiários da iniciativa ? implantar tudo o que falta: rede de energia, transporte, saneamento, drenagem, equipamentos de saúde, educação, segurança, lazer, etc. Isso também ocorre onde há aumento da densidade populacional. É ainda o caso em que se permitiu a implantação de habitações em áreas de risco como nos 30 lugares de São Paulo onde há residências construídas em áreas de antigos aterros de lixo (Folha de S.Paulo, 15/4), que desde 2007 estão para ser retiradas e agora exigem urgência.
E tudo isso acontece no momento em que faltam recursos para atender às necessidades mais elementares da população, principalmente das faixas mais pobres. É o caso, por exemplo, da área do saneamento, em que continuamos com metade dos brasileiros morando em casas sem ligação com as redes de esgotos. Ou os quase 10% sem água tratada em suas residências. E com a própria Secretaria Nacional de Saneamento admitindo (Estado, 16/3) que levaremos pelo menos uma década para universalizar o atendimento nessa área e, ainda assim, se o poder público conseguir destinar R$ 20 bilhões por ano para o saneamento ? do que estamos longe. Mas nesse passo continuaremos tendo milhões de brasileiros a engrossar a assustadora estatística da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de que há perto de 1 bilhão de pessoas sem saneamento em suas residências. E outras tantas que defecam ao ar livre.
Nesse quadro, também é muito importante a notícia que o autor destas linhas recebeu numa discussão sobre o setor no Recife, há poucos dias, de que o BNDES já está financiando projetos para reparação, conservação e manutenção de redes urbanas de água. Não é novidade que as redes de abastecimento das maiores cidades brasileiras perdem mais de 40% da água que sai das estações de tratamento por causa de rompimentos, vazamentos e furos ? até mesmo furtos. E até há pouco não havia, em nenhuma instituição, financiamentos para projetos de reparo e manutenção das redes, embora se saiba que custa de cinco a sete vezes menos recuperar um litro de água do que produzir um litro “novo”, com a implantação de novas barragens, novas adutoras e novas estações de tratamento ? estas, produto da visão de administradores que só dão valor a grandes obras acima do solo, bem visíveis, fáceis de serem exibidas em campanhas eleitorais. E fazendo a delícia das construtoras.
A cidade de São Paulo é das poucas que nos últimos anos conseguiu reduzir as perdas de água, inclusive com o uso de tecnologia japonesa que permite detectar os locais de vazamento sem ter de romper o asfalto em toda parte. Antes, também tivera bons resultados reduzindo a pressão nas redes de água nas áreas onde havia indicação de vazamentos.
Esse tema fica ainda mais importante quando se lembra estudo da Agência Nacional de Águas, mostrando que 1.896 dos 2.965 municípios por ela pesquisados sofrerão com falta de água nestes próximos seis anos. Pode ser também o caso da própria capital paulista, que já tem dificuldade de continuar abastecida em grande parte pela água da bacia do Piracicaba/Capivari/Jundiaí, disputada pelos municípios da região de origem. E buscar água em outras bacias ? como no Vale do Ribeira ? exigirá investimentos e preço muito altos para os usuários que terão de incluir a energia para fazer a água captada subir centenas de metros.
Enfim, já passou da hora de, em qualquer empreendimento, fazer todas as contas e atribuir os ônus a quem os gera ou deles se beneficia. Na área urbana, em qualquer ocupação, é preciso exigir também a manutenção de área permeável para infiltração de água; sistemas de eficiência energética; descargas sanitárias com menor uso de água; retenção de água de chuva (contribuindo para evitar inundações) e reúso posterior. Tudo o que ajude a enfrentar os novos tempos de escassez de recursos. E os dramas climáticos.
Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br
Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 03/05/2010
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