Biodiversidade: Um imperativo para a sobrevivência de todos. Entrevista com Silvia Ribeiro
" A biodiversidade implica uma enorme riqueza, já que é a base do sustento em seu sentido mais amplo, e por isso é fundamental conservá-la, defende Silvia Ribeiro "
Para a pesquisadora Silvia Ribeiro, “tanto a biodiversidade natural como a cultivada são elementos essenciais para a sobrevivência. Da biodiversidade dependem a existência das florestas e seus habitantes, as fontes de água, os solos, o ar, a regulação do clima, mas também a alimentação e as fontes de remédios”. Ela concedeu a entrevista que segue, por e-mail, para a IHU On-Line, onde afirma que o que mais provoca impactos sobre a biodiversidade cultural, natural e cultivada na história da humanidade “é a civilização petroleira que vivemos, o capitalismo industrial, particularmente nos últimos 50 anos. A diferença com outras é que o capitalismo industrial globalizou a devastação e a erosão genética e provocou, além disso, uma mudança no clima do planeta, que é atualmente um fator de aceleração vertiginosa da destruição da biodiversidade”. E Silvia continua: “frente ao avanço desta civilização capitalista, que continua criando caos climático e destruição da diversidade biológica e cultural, os pequenos projetos de conservação da biodiversidade acabam diluídos”.
Silvia Ribeiro é pesquisadora e coordenadora de programas do Grupo ETC, grupo de pesquisa sobre novas tecnologias e comunidades rurais, com sede no México. Ela tem ampla bagagem como jornalista e ativista ambiental no Uruguai, Brasil e Suécia. Silvia também produziu uma série de artigos sobre transgênicos, novas tecnologias, concentração empresarial, propriedade intelectual, indígenas e direitos dos agricultores, que têm sido publicados em países latino-americanos, europeus e norte-americanos, em revistas e jornais, bem como vários capítulos de livros. Ela é membro da comissão editorial da Revista Latino-Americana Biodiversidad, sustento y culturas, e do jornal espanhol Ecología Política, entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a importância da biodiversidade para nossa qualidade de vida?
Silvia Ribeiro – Tanto a biodiversidade natural como a cultivada são elementos essenciais para a sobrevivência. Da biodiversidade dependem a existência das florestas e seus habitantes, as fontes de água, os solos, o ar, a regulação do clima, mas também a alimentação e as fontes de remédios, enfim, são tantas coisas que é difícil enumerá-las. Em geral, nenhuma espécie sobrevive sem diversidade, porque o estreitamento da base genética de qualquer espécie significa cada vez maior vulnerabilidade às enfermidades e falta de adequação e coevolução com o meio, o que leva à extinção. Existe uma inter-relação permanente entre a diversidade natural e a cultivada ou manipulada. No Grupo ETC, dizemos que não existe quase nada no planeta que seja somente “natural”; tudo é tocado e influenciado pelas diferentes culturas que os seres humanos criaram. Na maioria dos casos, esta relação é positiva e um elemento essencial para a existência e a qualidade de vida da humanidade. Este é o caso da biodiversidade agrícola e da manipulação comunitária e artesanal da biodiversidade florestal, pesqueira, pecuarista, assim como os conhecimentos das comunidades sobre as ervas e outros elementos medicinais naturais. Todas as sementes que utilizamos atualmente não eram assim desde o começo, foi um processo de criação, de adaptação, para chegar aos alimentos que temos. O mesmo aconteceu com os animais domésticos. Este foi o trabalho de milhões de camponesas e de camponeses indígenas durante milhares de anos, de forma coletiva e descentralizada, culturalmente diversa, adaptada a muitíssimas variáveis, como as condições geográficas e climáticas aos gostos, às culturas, às sensibilidades etc. Portanto, não há uma separação entre a diversidade cultural e a diversidade biológica; é uma relação mútua e contínua.
Por outro lado, historicamente, algumas culturas humanas destruíram a biodiversidade e os habitats onde viviam, como aconteceu, por exemplo, na Suméria e na chamada “meia-lua fértil”, (antiga Mesopotâmia, hoje parte do Irã, Iraque, Síria) e em regiões com produção agrícola intensiva, e pesca e caça de animais em excesso. Mas a mais grave de todas, a que mais impactos tem sobre a biodiversidade cultural, natural e cultivada na história da humanidade, é a civilização petroleira que vivemos, o capitalismo industrial, particularmente nos últimos 50 anos. A diferença com outras é que o capitalismo industrial globalizou a devastação e a erosão genética e provocou, além disso, uma mudança no clima do planeta, que é atualmente um fator de aceleração vertiginosa da destruição da biodiversidade.
IHU On-Line – Como a senhora vê os esforços já empreendidos para salvar a biodiversidade até o momento?
Silvia Ribeiro – Oficialmente, na comunidade internacional, se reconhece o problema muito parcialmente e praticamente não existem medidas para reduzir a perda da biodiversidade. Em geral, e no melhor dos casos, só se vê a perda da diversidade biológica sem conectá-la com a diversidade cultural, com a existência das culturas campesinas, indígenas, locais, quilombolas, dos habitantes das florestas, pescadores e pastores artesanais, catadores etc. Então, o que se propõe são projetos mais conservacionistas, de áreas naturais ou de espécies, que não são soluções de fundo, e inclusive podem criar problemas graves de gestão com os verdadeiros “atores da biodiversidade”, que são os que historicamente a tem cuidado por séculos.
IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre as iniciativas de trabalho para reduzir a perda da biodiversidade?
Silvia Ribeiro – Mesmo quando há estimativas das perdas e o avanço da erosão na biodiversidade, e são tremendas, não há ações para atacar as causas. As causas são o avanço dos interesses industriais pelo lucro, sobretudo de empresas transnacionais, que se traduzem em projetos de infraestrutura e urbanização selvagem (estradas, especulação imobiliária, lixeiras, plantas industriais etc.), avanço da agricultura industrial, grandes monocultivos de árvores, megaprojetos energéticos (petróleo, carbono, hidráulicas), mineração e outras indústrias extrativas. Também é preciso citar a exploração dos recursos da biodiversidade que as empresas farmacêuticas e cosméticas fazem. Na maioria dos casos, os estados atuam também neste tipo de projetos, que ainda que sejam chamados “públicos” têm a mesma mentalidade e favorecem diretamente ou são complemento dos interesses das grandes empresas. Frente ao avanço desta civilização capitalista que continua criando caos climático e destruição da diversidade biológica e cultural, os pequenos projetos de conservação da biodiversidade acabam diluídos.
IHU On-Line – Quais os caminhos para aumentar a consciência pública sobre a importância de salvaguardar a biodiversidade para a continuidade da vida na Terra?
Silvia Ribeiro – A informação é muito importante. Muita gente não sabe que a biodiversidade é fundamental para a sobrevivência, que sem ela podemos desaparecer, que é a base de toda a alimentação e da medicina, que é o que regula o clima e os aquíferos e, sobretudo, que tem atores que precisam ser apoiados e fortalecidos. Sem culturas locais diversas, sem camponeses, nem indígenas, acaba a biodiversidade. Também se podem tomar muitas medidas no cotidiano: por exemplo, escolher produtos de variedades crioulas, da produção campesina. Isto deve ser apoiado a partir de políticas públicas.
IHU On-Line – O que significa para o mundo o conhecimento de que nossa biodiversidade é tão rica? Quais as implicações da abundância da biodiversidade para os outros setores da nossa sociedade, como a economia, por exemplo?
Silvia Ribeiro – A biodiversidade implica uma enorme riqueza já que é a base do sustento em seu sentido mais amplo (água, alimentos, animais, abrigo, forragens, vestidos, materiais de construção, energia), e por isso é fundamental conservá-la. Por isso também motiva um grande interesse e estímulo das transnacionais por explorar e controlar a biodiversidade, por exemplo, para as indústrias farmacêuticas, cosméticas, alimentícias, florestais, pelo seu potencial energético e madeireiro. O Brasil, além disso, foi o primeiro país na América Latina (e quase no mundo, com exceção dos Estados Unidos) a permitir o uso de micróbios vivos artificiais, ou seja, de biologia sintética, para produzir combustíveis, a favor da empresa Amyris. Isto é um começo de uma nova escalada de ameaças à biodiversidade, em parte porque a interação de micróbios vivos artificiais na natureza é totalmente desconhecida e pode trazer grandes impactos, mas, além disso, porque abre as possibilidades de ver e usar toda a biodiversidade, seja cultivada ou natural, como “biomassa” que pode ser processada para produzir combustíveis, ou plásticos, farmacêuticos ou outras substâncias industriais.
IHU On-Line – Como podemos caracterizar hoje a biodiversidade das sementes?
Silvia Ribeiro – A erosão genética de sementes tem sido devastadora a partir da Revolução Verde, pelo uso de agrotóxicos e da uniformização de sementes. Muitíssimas variedades de sementes desapareceram, o exemplo talvez mais brutal seja na Ásia, onde, de 130.000 variedades camponesas de arroz, restam apenas umas 30.000. Também tem havido uma forte erosão de variedades de muitos outros grãos e hortaliças básicas. No entanto, continua existindo uma enorme diversidade de sementes nas mãos de camponeses e de camponesas em todo o mundo, e são os produtores de pequena escala os que realmente produzem a alimentação da grande maioria do planeta enquanto cuidam da diversidade. Porém, a nível global, as transnacionais dos agronegócios têm, no mercado, sementes de umas 150 espécies vegetais – mas na realidade se focam em 12 – os camponeses e as camponesas trabalham com mais de 5.000 espécies de forma cotidiana. A indústria do fitomelhoramento vegetal comercializa por hora cerca de 80.000 variedades de plantas. Mas quase 60% são plantas ornamentais, rosas, cravos e crisântemos. Não se preocupam em produzir comida, mas o que dê mais lucro. Por outro lado, desde 1960, os camponeses e as camponesas do mundo têm oferecido aos bancos genéticos mais de 1.900.000 variedades, que são majoritariamente alimentícias e de livre acesso, e isso é somente uma parte das variedades criadas, as que têm chegado aos bancos. O Grupo ETC publicou recentemente o relatório “Quem nos alimentará?, Perguntas sobre as crises alimentares e climáticas” (http://www.etcgroup.org/es/node/4952) que justamente mostra esta mesma relação entre a indústria e os camponeses na pesca, pecuária, floresta etc. Fica demonstrado que são os pequenos produtores os que, além de manter a diversidade, alimentam a maior parte do planeta e são os que estão todo o tempo contra-arrestando o aquecimento global com suas formas de produção e de vida.
IHU On-Line – Como pensar na recuperação das sementes crioulas considerando a presença cada vez maior dos transgênicos?
Silvia Ribeiro – As empresas de agronegócio produzem sementes transgênicas, não porque são melhores que as híbridas, mas porque lhes permitem aumentar a dependência dos agricultores. No caso dos transgênicos, a contaminação que se dá por pólen, vento ou nos transportes e armazenamento se transforma em um delito para as vítimas, que podem ser demandas para obrigá-las a pagar patentes às empresas. Isto acelera ainda mais a erosão genética e os impactos sobre a biodiversidade, ao reduzir a oferta das empresas a cada vez menos sementes e contaminar as crioulas e as variedades não híbridas. A pior iniciativa atual contra a biodiversidade agrícola é a tecnologia Terminator, (tecnologia de restrição genética do uso de GURT), uma tecnologia transgênica para esterilizar as sementes em segunda geração, que obriga os agricultores a ter que comprá-las para cada estação de semear. Além disso, transmite esta característica de esterilização para a maioria das plantas vizinhas que contamina. Assim, soma-se o problema da esterilização e da contaminação, ameaçando a biodiversidade. No Brasil, esta tecnologia está proibida agora, mas há um projeto de lei do deputado Cândido Vacarezza, líder do governo na Câmara dos Deputados, para permitir esta tecnologia, e pior ainda, para usar plantas “biorreatoras”, ou seja, plantas transgênicas que produzam substâncias não comestíveis, o que é um enorme risco ambiental. Esta iniciativa é gravíssima e fala muito mal da política do governo sobre a biodiversidade agrícola. Para sair destas armadilhas que ameaçam a biodiversidade, é preciso voltar a proibir os transgênicos, que além de tudo usam muito mais agrotóxicos e produzem menos que os cultivos híbridos. Para recuperar as sementes crioulas, além de eliminar este tipo de ameaças, é necessário apoiar a produção camponesa, familiar, que são as que têm criado e cuidado das sementes. Isto significa que podem ter terra, que podem ficar com ela e viver dignamente de seu trabalho. Isso é muito mais que somente uma posição política, na situação de devastação ambiental, climática e da biodiversidade; é um imperativo para a sobrevivência de todos.
IHU On-Line – Qual a importância das mulheres no processo de manter a riqueza das sementes crioulas?
Silvia Ribeiro – A agricultura e as sementes são uma criação das mulheres, indígenas, camponesas. No mundo todo, a seleção e o cuidado das sementes têm sido fundamentalmente uma tarefa das mulheres. Portanto, seu papel é fundamental.
Leia mais…
* Silvia Ribeiro já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira: “O consumo excessivo e injusto é intrínseco à lógica capitalista“. Entrevista publicada em 10/12/2008
(Ecodebate, 19/04/2010) Entrevista realizada por Graziela Wolfart e publicada pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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