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Artigo

Genocídio urbano, artigo de Maristela Bernardo

Genocídio urbano
Foto: Tasso Marcelo/AE

[Correio Braziliense] Morei em São Paulo dos sete anos até pouco depois de terminar a faculdade. Minha família migrou do interior e se ajeitou na franja pobre da cidade, o extremo leste, onde se instalaram os bairros operários de então. Quando, afrontando a sina da maioria dos jovens ali criados, passei no vestibular da USP — que ficava no oposto da cidade —, comecei a conhecer melhor a cara feia da metrópole para os pobres. Meu pai e eu nos levantávamos antes das 4h da manhã e seguíamos em silêncio, quase correndo, como centenas de outras pessoas que ocupavam a escuridão das ruas em direção ao ponto inicial do ônibus. Lá, filas monumentais eram engolidas pelos ônibus velhos, malcheirosos, de vidros quebrados, que saíam tão cheios que sequer paravam nos demais pontos.

Uma procissão de ônibus vindos de vários bairros desembocava na Avenida Celso Garcia, chegando ao Largo da Concórdia, onde a multidão se redistribuía. Parte corria para outros pontos de ônibus e parte seguia para a estação ferroviária. Meu pai tomava o trem até a fábrica e eu mais um ônibus para chegar ao câmpus às 8h ou um pouco depois. Quatro horas dentro de uma única cidade, para chegar ao trabalho ou à escola. Na volta, mais umas três horas. O dia praticamente se esgotava naquela agonia que nem mais era sentida como transtorno. O costume tornava a injustiça e o desconforto contingências normais da vida, como se fosse nosso destino. Parecia ser um preço razoável a pagar pelo fato de se ter um emprego ou ter um filho na faculdade.

Quarenta anos depois, as cidades estão ainda mais hostis para os pobres. Os novos contingentes foram sendo empurrados cada vez mais para áreas de risco ambiental, as únicas ao alcance de seu bolso. E ali ficam, à sombra da irresponsabilidade dos governantes e da persistente exclusão social e da segregação, até que uma tragédia mais do que previsível aconteça. Neste ano, temos praticamente um genocídio urbano pelo qual ninguém pagará, exceto os diretamente atingidos. Some-se o número de mortos de Santa Catarina, de São Paulo, do Paraná, do Rio, do Nordeste. E os milhares de semimortos — alguns que perderam toda a família e sequer têm seus corpos para enterrar — sem casa, sem lembranças, sem os poucos bens, sem orientação, sabendo apenas que vão ter que dar um jeito de se reerguer, contra a lógica, contra a cidade que os digere e regorgita a cada novo desastre, contra o poder imbecilizado e incapaz de pensar adiante de sua própria ansiedade de sobreviver politicamente à tragédia alheia.

O Estado abandonou as cidades à lógica do mercado e da cafajestagem política utilitarista, que não se atreve a tomar as medidas necessárias, com medo de prejuízos eleitorais. O planejamento inexiste na prática, apesar de estatutos e programas no papel, porque ele dependeria basicamente de ações implementadas e mantidas no longo prazo. O que é impossível acontecer quando a visão do exercício do poder público está atrelada ao horizonte eleitoral de curto prazo, o que implica desqualificar, descontinuar e desidratar qualquer iniciativa passível de vir a beneficiar o adversário. Nada é permanente. Os governos são, em geral, um fast food requentado que amesquinha e dissolve o papel do Estado. Transformam-no num gerente de negócios, em lugar de ser o mediador das relações sociais e o promotor do interesse público.

As decisões sempre são reativas. Diante do caos, de repente aparecem os bilhões, projetos inteiros saem milagrosamente prontos e com cara de coisa séria diante das câmeras e microfones. Insinua-se que a população é responsável porque se coloca em locais perigosos, joga lixo nas ruas e entope bueiros. Mas alguém viu, por exemplo, em tempo recente ou remoto, algum governo federal, estadual ou municipal usar suas fartas verbas publicitárias para campanhas intensivas, educativas, formativas, destinadas a promover o diálogo entre os cidadãos e suas cidades? Seria o mínimo, mas o que vemos na TV são peças de descarada e oca autopublicidade de governos. A propósito, lembram-se das propagandas da Câmara Legislativa recorrentes na mídia brasiliense? Não, eles não estavam dia e noite trabalhando a serviço dos cidadãos, como sabemos agora.

A coisa vai piorar. Menos porque nos defrontaremos com eventos climáticos cada vez mais intensos, mas porque não nos preparamos para mitigar seus efeitos. É rara, mas deve existir inteligência e sensibilidade política no país para entender que é hora de mudar radicalmente. É nesse ponto que a responsabilidade da sociedade é intransferível. Só ela pode promover essa mudança.

Maristela Bernardo é jornalista e socióloga

Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense.

EcoDebate, 17/04/2010

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