Isolados, algumas questões para reflexão, artigo de Conrado R. Octavio e Gilberto Azanha
“Aculturados” x “Isolados”?
[EcoDebate] É comum vermos, ouvirmos e lermos em diferentes veículos de mídia opiniões que tratam os povos indígenas como sociedades “primitivas”, as situando implícita ou explicitamente em um estágio “atrasado” em relação ao da dita “civilização” – ou “civilização moderna”, “civilização ocidental”, dentre outros termos mais utilizados para se referir a nossa sociedade. Esta concepção em relação aos povos indígenas, que reflete bem o pensamento ainda em voga no senso comum, está embasada na idéia de que as sociedades obedecem a uma lógica evolutiva semelhante àquela consagrada no pensamento científico em relação às espécies – proposta por Charles Darwin. Ou seja, de que as sociedades ditas “complexas”, como a nossa, em que existe a instituição do Estado, vasta produção material, rico aparato tecnológico, intensos fluxos de informação, de mercadorias e pessoas, a convivência de diferentes hábitos (apenas para citar algumas características deste mundo dito “globalizado”), estariam muito a frente de sociedades como aquelas indígenas.
Estas seriam primitivas por representarem um estágio que sociedades como a nossa já teriam transposto há séculos; se configurariam como “relíquias do neolítico”, fato flagrante pelo seu parco arsenal tecnológico, frente às sociedades ocidentais, e pela ausência de instituições como o Estado, por exemplo. Ora, tal visão não é exclusividade do senso comum, pois que mesmo no meio acadêmico, em órgãos e instituições envolvidos com a questão indígena e até mesmo no Supremo Tribunal Federal do país ouvimos com freqüência opiniões baseadas nesta equivocada concepção a respeito das sociedades indígenas. Esta idéia sustenta conceitos que, se fazem doer os ouvidos de antropólogos, indigenistas e outros profissionais mais atentos à produção etnológica sobre sociedades indígenas, não incomoda nem um pouco a maioria da população de nosso país, como o conceito de “aculturado” – para citar um exemplo marcante que surge com a cada vez que a questão indígena ganha às telas e páginas dos principais meios de comunicação do país.
Ao utilizarmos este conceito, conferimos ao pensamento indígena, às suas sociedades e às suas culturas um status de inferioridade frente à “sociedade civilizada”: culturas indígenas sucumbiriam ao poder de fogo devastador de nossa sociedade, em um caminho de uma mão só. Ao se aceitar a pertinência deste conceito, o fim deste processo de encontro entre sociedades radicalmente diferentes seria, então, a aniquilação das sociedades e culturas indígenas, e sua total incorporação (ou integração) à “comunhão nacional” e à dita civilização. Já faz algumas décadas desde que alguns antropólogos e indigenistas anunciaram este prognóstico – e o próprio indigenismo esteve a serviço do propósito da “integração” dos índios ao Estado – mas (infelizmente para uns, é bem verdade…) os índios mostraram e mostram à nossa sociedade o contrário. Nossa própria sociedade, se atentarmos bem, nos mostra o contrário. O encontro entre diferentes sociedades (e culturas) se faz em uma via de mão dupla: nenhuma sociedade/cultura incorpora tudo de outra em detrimento do que a caracteriza e constitui enquanto sociedade. É claro que neste processo há profundas desigualdades e ele se revela historicamente como um processo de dominação, mas a aniquilação de uma sociedade em suas diversas dimensões só pode ocorrer no caso da sua extinção física. De outro modo, mecanismos próprios de reprodução (e resistência) sempre irão operar a incorporação de novas práticas, hábitos, métodos e tecnologias.
Sem aprofundarmo-nos sobre as questões acima expostas, sua colocação tem o intuito de chamar a atenção para o risco que existe em considerarmos os índios isolados “mais índios” do que aqueles povos que tem relações mais intensas e sedimentadas com segmentos da sociedade nacional. Aqueles grupos denominados pelo Estado brasileiro como “índios isolados” não são mais “autênticos”, mais “verdadeiros” do que quaisquer outros grupos indígenas. Simplesmente são mais frágeis perante os outros… e mais independentes.
A categoria contato
Primeiramente, precisamos ter em mente que a categoria contato pretende descrever uma situação vivenciada por diferentes indivíduos e sociedades desde a sua existência (independente mesmo da sua concepção de mundo, de origem do universo, etc.). Ou seja, o contato está presente em qualquer sociedade desde a sua existência como tal, seja com sociedades vizinhas, seja com sociedades mais distantes (ou mesmo aquelas de ultramar, para fazer uma referência a situação vivenciada pelos povos indígenas ao entrarem em contato com povos europeus). “Contato” entre grupos humanos pressupõe, sempre, alguma troca, seja de informações, de bens, de mulheres e homens ou de símbolos. Há uma gradação e diversas modalidades de troca (a guerra é uma delas), de forma que se pode classificar as sociedades como mais abertas ou mais fechadas a trocas (gradação), porém estes graus de abertura dependem das estratégias intencionais das sociedades. Em suma: não existe uma sociedade humana totalmente isolada ou “perdida” das outras. Aquelas que decidiram isolar-se do contato com outras o fazem por alguma razão, o mais das vezes por autopreservação.
Portanto, ao nos referirmos a determinado povo indígena como “não-contatado”, essa situação diz respeito ao contato sistemático (ou “perene”, ou “regular” de trocas) com qualquer segmento da “sociedade nacional”. Deve-se ter clareza de que este contato não se refere necessariamente ao órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, a FUNAI. Apenas para ilustrar, podemos citar o caso dos Tsohom Djapá, povo falante de língua da família Katukina que habita a região do alto Jutaí. Pelo menos uma parte deste povo mantém relações de troca regulares com aldeias Kanamari daquele rio antes mesmo que a FUNAI tomasse conhecimento deste “contato” – que se deu, portanto, sem qualquer intervenção marcante do órgão.
O contato com outros povos indígenas, seja através de trocas comerciais, matrimoniais, rituais ou mesmo através de guerras, sempre esteve presente na história dos povos indígenas, desde muito antes da chegada dos europeus. A produção arqueológica recente tem revelado a existência de extensas redes comerciais na América pré-colombiana, articulando relações entre povos desde as terras baixas da Amazônia até os Andes e mesmo a costa pacífica do continente. A produção etnográfica a respeito de povos subandinos e da Amazônia ocidental como um todo corrobora este argumento.
O contato com brancos também precede, muitas vezes, o contato “oficial”, por vezes em décadas ou mesmo séculos. Povos de língua pano como os Marubo e os Kaxinawá travaram contatos com caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros muito antes da chegada da FUNAI ou de outra agência oficial. Mas o que nos interessa mais ainda são aqueles exemplos em que determinado povo travou contato relativamente regular com determinados setores da sociedade branca e, por determinada razão, rechaçou este contato para isolar-se novamente. No Vale do Javari, os índios isolados do rio Quixito (também conhecidos regionalmente e na literatura como Mayá) vivenciaram essa situação. Desde a década de 1940 travaram contato com seringueiros e madeireiros, e alguns integrantes deste povo teriam chegado a trabalhar para alguns “patrões”. Há notícias de que um grupo grande chegou a visitar o povoado de Remate de Males, ainda na década de 1940, pouco antes de isolar-se novamente, após conflitos com seringueiros. Voltam a estabelecer relações com madeireiros na década de 1970, período em que ocorre também um rápido encontro com uma equipe da FUNAI, mas há mais de duas décadas deixaram de travar contatos com brancos. São inúmeros os exemplos como este na história dos povos indígenas em nosso continente.
Outro ponto importante que se coloca é a questão do tempo como argumento indicador do grau de “isolamento” de determinada sociedade indígena. A própria política indigenista oficial nos induz a considerar o marco temporal como definidor da condição de “isolado” ou não, ao estabelecer, por exemplo, a categoria de “recémcontatado”. Trata-se de uma questão muito menos de tempo de contato do que de outros fatores, e devido a complexidade da questão chega a ser insensato o propósito de se estabelecer uma escala cronológica (por flexível que seja) que tenha por objetivo definir o grau de contato entre uma sociedade indígena e nossa sociedade. O ponto central não é o tempo de contato, mas, sobretudo, as concepções próprias de cada grupo que norteiam suas estratégias de relacionar-se com aqueles “estrangeiros”. O melhor seria o tipo de relação e o porquê de determinado grupo antes isolado procurar estabelecer ou aceitar o contato intermitente com os “seus” estrangeiros.
Portanto, são estas concepções que irão orientar em primeira instância, na perspectiva de determinado grupo, o estabelecimento de relações com a FUNAI, com seringueiros, com madeireiros, com missionários ou outros “estrangeiros”. Mais que o tempo, deve-se considerar as condições em que se encontra um grupo quando do estabelecimento de tais relações, no que diz respeito ao contingente populacional, a condições de saúde, à situação de seu território. Daí que o ponto central e mais acertado da política de proteção de índios isolados é a proteção de seus territórios, através da sua interdição, regularização fundiária e da vigilância permanente. Não se trata, fundamentalmente, de preservar territórios, práticas, técnicas, costumes, mas sim de garantir o respeito (e o direito) a outro pensamento, à sua autonomia e reprodução frente às contingências que lhe foram impostas historicamente.
O acima exposto pretende colocar em evidência que o termo isolado não significa que um povo assim designado jamais travou contato com qualquer sociedade (o que é mesmo absurdo dizer), ou que desconhece por completo a sociedade “branca”. Pode-se afirmar que todos os povos indígenas isolados têm conhecimento da existência de “brancos” (como cada um deles nos classifica já é outra questão…), premissa básica inclusive para que reconheçamos sua condição de povos que rechaçam o contato “perene” ou sistemático. Quem rechaça, rechaça algo. Quem foge, foge de algo. O sentido jurídico do termo isolado não deve encobrir a realidade sociológica vivenciada pelos povos indígenas sem contatos regulares com as sociedades do seu entorno.
Buscar entender melhor este algo através do levantamento de informações a partir de vestígios, de entrevistas com grupos vizinhos e população regional, da investigação de arquivos sobre a região e de material etnográfico é, portanto, fundamental. São estas as bases que devem sustentar o trabalho de uma Frente de Proteção Etnoambiental.
Conrado R. Octavio e Gilberto Azanha, Centro de Trabalho Indigenista – CTI
Colaboração de Helena Azanha, Centro de Trabalho Indigenista – CTI, para o EcoDebate, 09/04/2010
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