Só um sonho é possível, artigo de Samantha Buglione
[A Notícia] Qual o conceito da caridade? Viver a vida possível e num gesto contingente, fazer uma grande ou alguma boa ação? No filme “Um Sonho Possível”, uma família rica dos Estados Unidos permite que um menino negro se torne um grande jogador de futebol e tenha uma família amorosa. O menino, de família pobre, mãe drogada, pai e irmãos desconhecidos, cresceu vivendo entre sofás e marquises. O que passa silencioso no filme, entre as lágrimas e soluços da plateia diante da bonita ação do casal, é o fato de eles serem donos de 85 lojas entre KFC e Taco Bell. Lojas como essas são responsáveis por achatar salários, diminuir empregos e criar redes de produção de alimentos que não apenas exploram os animais, mas os seres humanos que trabalham em seus processos.
“Um Sonho Possível” ensina que só um sonho é possível ao custo de muitos outros. Na lógica atual das relações humanos, é mais fácil lidar com os resíduos das nossas ações, e fazer caridades sobre eles, do que mudar nossas ações e evitar esses resíduos. O resíduo, aqui, é a pobreza, os salários achatados, a falta de oportunidade, a violência, a desesperança, a concentração de renda. Em todos os casos, lá ou aqui, o discurso é muito similar: se não fossem essas empresas, a pobre família não teria como viver bem e, por consequência, fazer, ao final, sua caridade. O que não podemos ignorar é que se não fosse o modelo dessas empresas, centenas de famílias teriam outra sorte. Por isso que aquele discursinho raso da geração de emprego é sempre perigoso, porque emprego em fast food, em estaleiro e em fosfateiras a um custo residual alto deve ser questionado.
A filosofia já ensinou que a melhor solução é sempre a mais simples. Uma boa tese é aquela cujo processo argumentativo não cria voltas e lógicas esquizofrênicas. Apesar disso, parece que cada vez mais admiramos os esquizofrênicos morais. Esquizofrênico moral é um sujeito que convive com duas personalidades que se ignoram. De um lado, contrata pessoas por um péssimo salário ou compra frango ou carne processada num sistema que causa cada vez mais poluição e prejuízo para a saúde de humanos e não-humanos, mas, por outro lado, faz uma ou outra ação de caridade e se acha bom e é visto como um homem bom.
Um sonho possível tem um preço: centenas de milhares de sonhos que poderiam se realizar se o caminho eleito fosse mais simples. Se ao invés de investir R$ 2 bilhões para construir um estaleiro em Biguaçu com grande impacto no sistema viário, nas praias do Forte, Pontal da Daniela, Jurerê, Governador Celso Ramos, na reserva do Arvoredo, na vida dos ecossistemas naturais e de várias aves e animais da região, investíssemos o dinheiro no campo o impacto seria direto na vida de milhares de família com um número muito maior de gente empregada.
O mesmo pode se dizer da fosfateira, cujo prejuízo ambiental ao final do seu processo só será sentido no bolso de quem ficará na região, na vida e na saúde das pessoas de lá. Contudo, não vamos nos importar, porque tanto um empreendimento quanto outro, no meio ou ao final de sua saga irá dar alguma bolsa de estudo e vai tirar várias fotos de algum menino pobre negro ou loiro de olhos azuis e fazer um documentário para mostrar que valeu a pena, afinal, um sonho é possível. Mas só um.
As escolhas eleitas pelos senhores do nosso tempo não são as simples. Talvez não percebamos isso porque somos alienados, talvez por conta da nossa esquizofrenia moral, talvez por conta de uma cultura que virou dogma religioso. Ao mesmo tempo em que mudamos o ciclo natural dos ecossistemas e da vida de milhares de seres vivos, damos dinheiro para o Instituto Chico Mendes e fazemos folhetos em prol da Amazônia e da mata atlântica. Defendemos a floresta, mas, esquizofrenicamente, seguimos fazendo churrasco!
Desejamos, todos nós, salvar o negro pobre, mas o levamos para almoçar no fast food, e, ali, num ato alienado de extrema bondade moderna, alimentamos o sistema que criou a sua pobreza, mas que, graças a Deus, é o sistema que garante o ato de caridade possível e meu BMW querido.
*Professora de direito, bioética e do mestrado em gestão de políticas públicas da Univali. Doutora em ciências humanas. buglione{at}antigona.org.br
Artigo originalmente publicado no jornal A Notícia, SC.
EcoDebate, 24/03/2010
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