‘Tem que investigar tudo’, defende Plínio de Arruda Sampaio na CPMI contra a Reforma Agrária
Plínio de Arruda Sampaio
“Tem que investigar tudo. Não pode investigar um lado só. Tem que investigar isto. Porque a razão pela qual vai um pobre sem-terra incomodar os grandes fazendeiros é por isso. Se isso for resolvido, não tem nenhum sem-terra na frente de ninguém. Não precisa ter barracão de lona”, disse o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) Plínio de Arruda Sampaio, que participou da sessão da CPMI contra a Reforma Agrária no dia 10 de março.
Na sua exposição, ele apresentou um panorama do quadro da pobreza rural, da concrentação da terra. Apontou também temas que devem ser investigados na comissão, como a estrutura fundiária, o analfabetismo nas áreas rurais e a inoperância da Justiça.
Plinio é advogado, militante do PSOL e diretor do “Correio da Cidadania”. Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
Clique e leia uma versão editada e organizada por subtítulos para facilitar a leitura da exposição do presidente da Abra.
Pobreza rural
O primeiro problema básico: a pobreza da população rural, a pobreza enorme da população rural. Não sei se notaram o gráfico vergonhoso para todos que estamos sentados aqui: 40% da população rural, dos trabalhadores dos estabelecimentos, é analfabeta. Isso é o maior indicador de pobreza.
O segundo indicador de pobreza: aqueles que ganham. Entidades, estabelecimentos, que têm um rendimento, têm uma renda da sua produção até 10 mil reais. Isso é menos do que mil reais por mês. Como é que pode manter uma família? E aí tem 10 milhões de pessoas.
Em compensação, aqueles que têm de 100 mil a mais, e 100 mil a mais é um número até que eu poderia dizer ao Presidente do IBGE que conviria explicitar um pouco isso, porque tem os de 100 mil a mais, tem os de 1 milhão a mais e tem os de 10 milhões a mais. Mas esse total, que são 100 mil, até 100 mil, empregam apenas 2 milhões de pessoas. Então a pobreza rural é o primeiro dado grave.
Concentração da Terra
Os índices de Gini, que foram trazidos aqui, mostram o seguinte: o índice de Gini é o índice que mede a concentração da renda, é uma operação matemática. Quando chega perto de um, é porque está péssimo, péssimo; quando está perto de zero, é porque está bom, é porque está bem distribuído.
Em 1920, o índice era de 759; em 2006, é de 854. Ou seja, no Brasil, a concentração de terra de 1920 a 2000 aumenta, não diminui.
No Brasil, a terra fica mais concentrada. De modo que esse dadozinho de que, nos últimos anos, 20 milhões passou daqui para cá não altera a tendência geral da causa básica da pobreza rural, que é a enorme concentração da terra, a vergonhosa e absurda concentração da terra nesse país.
Mas não é a única causa. Nós temos uma segunda causa, que é a comercialização agrícola, que, de fato, liquida todo o rendimento do pequeno agricultor, como vocês viram aí.
Justiça deficiente
E, finalmente, eu queria dizer o seguinte: a deficiência da nossa justiça. A nossa justiça é profundamente deficiente, porque ela leva 3, 5, 10, 15, 20 anos, para julgar uma questão de terra. A terra devoluta, com GPS, com georreferenciamento. Hoje, se o senhor quiser encontrar, Presidente, uma guerrilha nesse país, o senhor pega o GPS, e quando o senhor vê, o senhor chega direitinho no guerrilheiro. É uma coisa fantástica. E, no entanto, leva 10 anos para discriminar uma terra para saber se ela pertence ao particular ou se essa terra pertence ao Estado, porque se pertencer ao Estado, ela é da reforma agrária, porque está escrito na Constituição que nós votamos aqui nessa Casa.
Deveria ser objeto de séria investigação, por exemplo, por que razão um desembargador de São Paulo leva quatro anos para designar o relator de um projeto, de um processo de reivindicação de terra posto pelo Governo da República. Esse desembargador devia vir aqui explicar a razão pela qual ele levou quatro anos para dizer: “Designo o desembargador tal para relatar esse caso”.
Analfabetismo
De modo que eu queria deixar muito claro que era fundamental que essa Comissão investigue mais esta pobreza rural, não apenas a transferência de algum recurso que, eventualmente, foi fazer uma lona para incomodar algum grande fazendeiro, mas que perguntasse “Por que 40% da população rural é analfabeta?”, que perguntasse “Por que 10 milhões de pessoas ocupadas em pequenas propriedades têm menos de 10 mil reais de renda por ano?” Isso que é objeto de uma comissão que quer discutir, de fato investigar a estrutura fundiária agrária brasileira.
De modo que eu acho que essa Comissão é extremamente importante. A tarefa dos senhores é enorme, porque precisa verificar o que está aqui: analisar e diagnosticar a estrutura fundiária agrária, estrutura fundiária urbana brasileira, e junto com a promoção da reforma agrária.
Parcialidade
De modo que se nós vamos investigar, vamos investigar. Eu sou pela investigação. Quando fui deputado nessa Casa aqui, as três vezes que fui deputado aqui dentro, nunca neguei a minha assinatura a um requerimento de CPI. Nunca. Todos os requerimentos que me foram apresentados, eu assinei sem ver. Agora, tem que investigar tudo. Não pode investigar um lado só. Tem que investigar isto. Porque a razão pela qual vai um pobre sem-terra incomodar os grandes fazendeiros é por isso. Se isso for resolvido, não tem nenhum sem-terra na frente de ninguém. Não precisa ter barracão de lona.
O senhor não pode ter 5 milhões de estabelecimentos com até 10 mil de produção, e ter menos de 160 mil com 100 milhões a mais. Isso precisava ser investigado aqui. De modo que eu acho o seguinte: se alguma irregularidade foi feita pelo MST, deve ser apurada, deve ser mandada para o Ministério Público, para as possíveis providências, mas se a comissão ficar só nisso, me perdoem, eu tenho o direito de supor que nem todos esses objetivos estão sendo observados com o mesmo afinco por todos os membros da comissão. Muito obrigado a V. Exa..
Os camponeses são humildes, Presidente, os sem-terra pedem pouco. Então vamos ver os desvios.
Aqui eu leio: “analisar desvios e irregularidades verificados em convênios de contratos firmados entre a União, organizações ou entidades de reforma agrária e desenvolvimento agrário”.
Queria fazer uma pergunta: o CNA é de desenvolvimento agrário ou… do que ele é? É uma entidade do quê? É de desenvolvimento agrário ou não? Contribui para o desenvolvimento agrário? Faz convênios com o governo? Não tem nenhuma? Nenhuma entidade de agricultores tem convênio com o governo? Isso era uma coisa importante de verificar. Eu também desconheço, também não sei.
Eu estou fazendo uma pergunta: se é só para investigar o MST ou se é para investigar também as outras entidades agrícolas que lidam com a reforma agrária e que cuidam, e que recebem recursos de convênios, porque aí, então, nós estamos imparcialmente, aí, então, nos estamos em paridade.
Eu queria dizer aos senhores o seguinte: eu fui deputado nessa Casa, em 1964, e fui o relator do projeto da reforma agrária. E quero dizer aos senhores: se este país é o desastre que é, se esta Casa aqui periodicamente é assacada por um escândalo… Ainda agora, há poucos dias, funcionários aqui dentro conseguiram desviar 6 milhões, 8 milhões, pagando funcionários mortos. Nós precisamos fazer uma CPI para isso.
Êxodo rural
Eu queria lembrar também a V. Exa. as consequências, as consequências desta pobreza rural: a enorme migração campo-cidade; a localização da periferia das cidades de uma população que não é nem urbana nem rural, que é o boia-fria, que é o homem que fica ali a espera que um “gato” o leve para fazer algum trabalho agrícola absolutamente desqualificado; são salários baixíssimos.
Mortes no corte da cana
Eu queria que V. Exa. investigasse, por exemplo, as mortes que estão ocorrendo, que estão ocorrendo nas usinas de açúcar de Ribeirão Preto, cuja produtividade a CNA acabou de nos mostrar aqui. Um enorme aumento da produtividade e, no entanto, trabalhadores morrendo de fadiga, porque o salário é tão baixo, tão baixo, que, para poder sobreviver, ele trabalha tantas horas, tantas horas, que ele morre de cansaço. Isso acontece para todos nós aqui no Brasil, e isso deveria ser objeto de séria investigação.
Quem morre nos conflitos
Não passa um dia que não haja conflito e, nesse conflito, se nós fizéssemos um quadro aqui, 99,9% o ferido e o assassinado é o sem-terra; o que perde a vida é o sem-terra. De modo que eu acho que era muito importante que a gente verificasse aqui essa colocação. Acho que seria importantíssimo.
Destruição ambiental e monocultura
O segundo problema da agricultura brasileira, dessa estrutura fundiária, é o ataque à natureza, a destruição do nosso meio ambiente, a poluição dos rios, a devastação das florestas. E aí nós vamos encontrar um responsável claro: se chama monocultura. A tecnologia agrícola usada pela grande propriedade é uma tecnologia predadora da terra. Ela é uma tecnologia que realmente, ela destrói a natureza. Então, seria necessário que aqui fosse verificado e trouxesse essas grandes unidades agrícolas, monocultura, para saber qual é a tecnologia que usam, como é que elas usam o agrotóxico, e como é que esse agrotóxico, passado de avião, prejudica o seu vizinho, pequeno agricultor, que, como nós vimos aqui, é quem sustenta todos os indicadores interessantes que você possa ter no país.
Veja, por exemplo, na estatística do IBGE, a propriedade familiar, 84%; área ocupada, 80 milhões; valor da produção, 54 milhões; pessoas ocupadas, 13 milhões. Agora, propriedade não familiar, propriedade muito bem representado nessa Casa, altamente representada, ela tem 16% das unidades; 89% do valor da produção; e emprega 4 milhões de pessoas.
Acampamentos
Algum dos senhores já entrou num barracão de lona? Algum dos deputados, senadores, já entrou? Eu também. É bastante fresco, não é verdade, deputado? É um ar agradável. E é um ar lá dentro muito gostoso, não é? Eu entrei uma vez, fiquei dez minutos e saí correndo, porque a temperatura é 40 graus.
Cadastro das terras
Oitocentos milhões, portanto ele [o Brasil] tem 800 milhões de hectares de terra, não tem? Mas eu só vi 500 milhões aqui [na apresentação do IBGE]. Trezentos milhões é um negócio chamado terras ocupadas. O que é terra ocupada, Dr. Eduardo? Eu não sei o que é. Porque eu fiz o seguinte cálculo, eu fui vendo: 800 milhões, tirou trezentos e tantos milhões ocupados com propriedades que têm título de propriedade, têm matrícula, estão matriculados num cartório. Depois tirou terra de índio. Tirou. Depois tirou terra de conservação, as reservas florestais. Tirou. Depois tirou aquela área ocupada por lagos e rios. Tirou. Depois tirou.
E ficaram 300 milhões de terras ocupadas, o que quer dizer terras que não têm título de propriedade, se eu entendi. Se eu entendi, são terras sem título de propriedade. Então quais são os títulos? Por que não está titulado? Porque ou é terra pública ou é terra particular, juridicamente tutelada.
Eu quero saber, gostaria de ter uma explicação aqui a respeito de 300 milhões de hectares de terras que são chamadas ocupadas. Ocupadas por quem? Ocupadas a que título? Porque eu posso chamá-las de 300 milhões de terras griladas, e estas terras pertencem aos trabalhadores rurais sem-terra. E é isso que essa Comissão, se vai analisar e diagnosticar.
Esses 300 milhões é que os senhores deveriam investigar aqui. Onde estão esses cartórios? Aí que nós temos que ver. É isso que nós temos que examinar.
Necessidade da Reforma Agrária
Quero lhes dizer: tudo isso acontece, nesse país, porque foi incapaz de fazer até hoje uma reforma agrária. É preciso que nós enfrentemos essa questão, não cortando a reforma, não segurando a reforma. Os senhores viram os dados. Então não é propriamente um programa de reforma agrária, é um programa de assentamentos rurais. O que precisa, este país, é fazer, de fato, uma reforma agrária, para completar a abolição da escravatura, porque, enquanto isso não for feito, não existe cidadania e, enquanto não houver cidadania neste país, não será possível evitar a corrupção.
Desigualdade
A categoria dos grandes proprietários tem mais força do que a categoria dos sem-terra. Então ela sempre obsta e, agora, mais ainda, porque, agora, as mudanças do mundo jogaram o Brasil para voltar a ser um país primário exportador, e nós estamos jogando todo o peso da nossa política – e aí eu faço uma crítica ao Governo da República – na exportação de quatro produtos: da soja, da cana de açúcar para fazer álcool, da carne bovina sem colesterol para melhorar o coração dos países de primeiro mundo, e a celulose. Sabe por quê? Porque produz um papel higiênico extremamente fino e é [ininteligível] comprado na Europa. Então o mundo está nos jogando, de novo, para isso. E, realmente, a situação que nós vimos retratada aqui, pode piorar, pode piorar.
Texto socializado pela Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária e publicado pelo EcoDebate, 23/03/2010
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