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Pandora é aqui, artigo de Samira Feldman Marzochi

Cenas do Filme Avatar (Fotos: Reprodução)
Cenas do Filme Avatar (Fotos: Reprodução)

Mesmo que Avatar não seja um filme de grande profundidade, aproxima-se, sinteticamente, de um estrato da cosmologia contemporânea, e assim nos permite analisá-la. Avatar traduz o modo como, em alguma medida, percebemos nosso mundo. Sabemos que nenhuma representação, mesmo individual ou de um grupo, é absolutamente particular. A representação da lua Pandora é extraída da “consciência coletiva” terrena, produzida em algum nível do “senso comum”, e particularizada pela criatividade de uma equipe. Adentrar em Pandora, por isso, é viver uma cosmologia etnografada em terceira dimensão. De modo inconsciente, o diretor e toda a produção atuaram como etnógrafos de um mundo imaginado.

Mas, sabemos também que os mundos, inclusive a Terra, são sempre imaginados, se tudo o que existe é mediado por símbolos e imagens. Inversamente, toda imaginação é verdadeira: são visões de mundo que se sobrepõem ao “real” entendido como a condição material mínima para a continuidade da vida orgânica. Pandora, portanto, pode ser considerado um planeta Terra de projeção cosmológica que revela alguma coisa sobre o modo como estamos nos vendo. (Em parte, disto advém seu sucesso publicitário).

Pandora revela duas ideologias importantes da contemporaneidade. Uma de ordem política, a outra de caráter sociológico. Ao contrário da caixa mitológica, esta lua guarda as melhores éticas, aspirações e valores políticos. Neste mundo, realiza-se o ideal do pragmatismo bem intencionado em que não há significados transcendentes, distinção entre “pensamentos” e “coisas”, e tudo faz parte de um mesmo “estofo” universal. Desde que não haja interferência alienígena, isto é, humana, todo o seu sistema ecológico permanece em equilíbrio e é capaz de auto-organização.

Neste mundo, não há dominação de uns sobre outros, apenas conexão: o dragão alado de montaria não se subordina ao “dragoneiro”, mas o escolhe num desafio. O enfrentamento físico é encerrado quando ambos se conectam organicamente, e assim conseguem voar em sincronia; quando se mata um animal por defesa, este não pode ser considerado um motivo de alívio ou alegria, mas um fato a lamentar. Mesmo a caça para consumo deve ser um gesto “limpo”, em que se pede desculpas ao animal informando-o que sua alma será libertada e que seu corpo reviverá no corpo do povo que dele se alimente; a autoridade política é também a autoridade familiar. Cada clã possui como chefes um “Pai” e uma “Mãe” idosos, indicando que não há hierarquias de gênero e que a legitimidade do poder provém da experiência e do conhecimento; a participação política e o direito à voz em assembléias em que todos se reúnem, é garantida pelo pertencimento ao clã e pelo domínio da língua. Porém, assim como a língua pode ser assimilada, o pertencimento não é um direito adquirido exclusivamente por descendência ou lugar de nascimento, mas conquistado num processo de iniciação cultural autorizado pelos chefes e selado em um ritual de passagem.

Como ideais políticos, todos estes aspectos são bem compreendidos. Mas, ao revelarem-se também uma forma contemporânea de percepção da realidade, tornam-se bastante problemáticos. Ultrapassam o campo da normatividade para constituir-se como uma nova sociologia deslocada de seus conceitos fundamentais. Note-se a maneira como, de modo implícito, o conceito de “sociedade” aparece em Avatar. O conceito não teria avançado muito desde o século XVIII. Saint-Simon já compreendera a Sociedade como um “ser” independente. Durkheim aprimorou esta observação afirmando que ela não resulta da soma de seus indivíduos mas da interação entre eles. Todas as suas pesquisas partiram e confirmaram o pressuposto da autonomia e transcendência da sociedade em relação aos indivíduos. Porém, como criação coletiva, a Sociedade se impõe ao real jamais identificando-se completamente com ele.

Em Pandora, ao contrário, as árvores sagradas, que seriam a representação mais elementar do próprio clã, não são outra coisa senão o acúmulo literal de vozes e memórias individuais dos antepassados que podem ser “acessadas” uma a uma. Os seres se conectam a estas entidades e entre si fisicamente, não através de um espírito comum, alma do povo, língua ou cultura. É quase desnecessário mencionar que Pandora está impregnada de conceitos tecnológicos. A idéia central do roteiro é, aliás, a da possibilidade de transferência de uma “pessoa” a outro corpo através da tecnologia. A identidade pessoal é determinada pela consciência que habita o corpo, assim como softwares se instalam em hardwares. Há sempre algum grau de determinação do meio material sobre a personalidade, mas o princípio identitário se dá, sobretudo, pela “memória” do indivíduo capaz de garantir a completa unidade do corpo e eliminar qualquer dualidade entre “corpo” e “espírito”.

A atmosfera de Pandora assemelha-se ao interior de um mar profundo em que sementes gigantes movem-se como águas-vivas e poeiras cintilam à luz do sol, planetas e luas que atravessa a floresta. A menor gravidade em relação à Terra, a possibilidade de montanhas flutuantes, sugerem esta inversão de primazia entre a Sociedade e seus elementos. Em menor gravidade, as partes do mundo são suspensas e se tornam mais evidentes. Neste universo em que representação e realidade se indistinguem, assim como não há hierarquias entre sujeito e objeto, a comunicação intersubjetiva entre humanóides, animais e plantas é direta, não mediada por formas culturais

No entanto, assim co­mo nas religiões ditas “e­­lementares”, tudo o que existe em Pandora resulta de um desdobramento da natureza universal a que todas as coisas estão ligadas. A diferença é que esta enorme “rede” conectiva não é pura metáfora, mas sim algo substantivo. A lua, quase toda uma densa floresta onde a invasão humana não fez seu estrago, é riscada de fios pendulares, cintilantes, prontos a tocar e entrelaçar outras linhas para transferir informações. Já na passagem para o século XX, Durkheim esforçava-se por desfazer a falsa idéia cientificista destes fios materiais que nos ligam simultaneamente à natureza e à vida social.

Tão povoada de cores e brilhos, Pandora nos faz ver a Terra, muito depois do filme, como um lugar mais vazio, pálido e fosco. Os corpos dos sapiens sapiens parecem até mais feios que os humanóides azulados. Os “Povos do Céu” continuam insanos e mesquinhos, cada qual com sua idiossincrasia, mas dominados por uma mesma loucura de auto-destruição. Para aprender com os Na’vi, é preciso esvaziar-se dos conhecimentos humanos, tornar-se “copo vazio”. Paradoxalmente, num universo impregnado da linguagem bio-tecnológica, a ciência é tida como indício de loucura, pois é ela quem, na Terra ou em Pandora, legitima a destruição

Ainda que o conexionismo seja um avançado ideal político, crer hoje numa realidade conexionista significa repor, sob a inspiração da cibernética, da informática e da genética, a perspectiva imanentista das ciências modernas (européias e oitocentistas) que esta mesma ideologia contemporânea critica. Além de não traduzir a realidade, tampouco analisá-la criticamente, a perspectiva conexionista não permite a compreensão da mudança social como resultado da contradição entre realidade e representação, ou da desigualdade entre sujeito e objeto de poder e conhecimento. Consiste, portanto, de um ideal que apenas pode realizar-se em outro mundo, de uma não-problematização do poder, de um abandono das questões relativas à emancipação.

Mesmo que Avatar sustente críticas importantes ao comportamento humano face à natureza, e que os invasores nocivos sejam derrotados, é Pandora quem se apresenta como possibilidade existencial para a vida, e não uma Terra radicalmente transformada. O “final feliz” não corresponde, portanto, à emancipação crítica em relação à humanidade, à evolução do homem e da razão, mas à desistência e à fuga do mundo humano. O herói apenas revive em liberdade em um novo corpo, assim como os terráqueos, após destruírem seu planeta, buscam outros mundos. Em seu ímpeto de dominação treinado pelas guerras, torna-se líder entre os povos, assumindo a função histórica de unificar todos os clãs. Estruturalmente, nada de muito distinto.

Em última análise, Avatar simplesmente repõe o “mito da fuga planetária”. Porque assistimos a trama também como avatares distanciados da Terra, quase nos esquecemos de que a felicidade dos mocinhos vem acompanhada da destruição ambiental de nosso planeta, o que já não é um problema para o filme. Se não há como salvar a Terra, se o homem é naturalmente egoísta, nossas aspirações políticas se voltam para “um outro mundo possível”, mas bem longe daqui, aqui mesmo, sob as lentes de 3D.

Samira Feldman Marzochi é pós-graduanda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp

Artigo socializado pelo Jornal da Unicamp, ANO XXIV – Nº 452 e publicado pelo EcoDebate, 06/03/2010

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