Depois da catástrofe, mulheres do Haiti caem no desamparo
Uma mulher no centro de ginecologia Isaie Jeanty, Porto Príncipe, Haiti. Foto de CRISTÓBAL MANUEL | 25-01-2010/El País
Agora que finalmente em muitas áreas de Porto Príncipe se veem filas organizadas de pessoas recebendo água e comida; agora que o governo anunciou que os que ficaram sem casa chegam a 1 milhão, os feridos são cerca de 200 mil e os mortos, mais de 150 mil…, agora continuam morrendo mulheres no Haiti por causa do terremoto. Mas já não engrossarão nenhuma estatística. Morrerão em silêncio, muitas delas em suas casas, sem assistência médica nem fotógrafos ao redor.
No Haiti não é raro que as mulheres tenham de dar à luz em suas próprias casas, sem nenhuma ajuda, no mais absoluto desamparo. Reportagem de Francisco Peregil, El País.
É o que explica a enfermeira norueguesa da ONG Médicos Sem Fronteiras Veronica Gran, no hospital Saint Catherine do bairro Cité Soleil, rodeada de parturientes em barracas de campanha. “Algumas mulheres nunca vêm ao hospital porque não têm dinheiro nem sequer para o transporte. Outras, porque não sabem que o parto é grátis, que não vão lhes cobrar nada. E outras, porque sabem que se dá prioridade às intervenções cirúrgicas ao resto dos tratamentos médicos. Como ocorre em todas as catástrofes, as principais vítimas voltaram a ser os mais fracos: as mulheres e as crianças.”
“Estou convencida de que vêm muito menos mulheres ao hospital do que deveriam vir”, acrescenta Gran. “E muitas das que estão vindo chegam tarde demais, sem ter feito qualquer acompanhamento médico durante a gravidez. Sofrem infecções urinárias, algo que teria sido muito fácil tratar se fosse detectado a tempo. Mas, como não se faz isso, as probabilidades de que a criança nasça com infecções são muito altas. Outras sofrem contrações em casa há vários dias e no meio de tanta dor não sabem aonde ir. Quando chegam aqui, trazem o bebê morto dentro delas. Outras vieram com a pressão muito alta e com anemia, e seus filhos nasceram muito pequenos e frágeis.”
“Mas se você tem um equipamento para partos e não sabe como usá-lo, de pouco serve. As mulheres com anemia, se começam a sangrar, é muito difícil que superem o parto com vida”, indica a enfermeira da Médicos Sem Fronteira que distribuiu o material.
Na maternidade do Centro Ginecológico Isaie Jeanty & Leon Audain, o médico residente de terceiro ano Bordes Edouard confirma que as mulheres foram afastadas para atender casos supostamente prioritários. E lamenta a desinformação que as parturientes sofrem. “Esse hospital fechou com o terremoto, mas abriu há três dias e muitas mulheres não sabem disso, apesar de estarmos anunciando pelo rádio. Outras creem que ainda é preciso pagar para dar à luz, quando há alguns meses os partos são grátis nos hospitais públicos.”
Se é difícil para as grávidas chegar aos hospitais, para as violentadas o caminho se torna inútil. Paul Henock, gerente do centro ginecológico citado, afirma que desde o dia do terremoto chegaram ao hospital três mulheres para ser examinadas depois de sofrer violência sexual. “Mas tivemos de enviá-las para outros centros, porque não havia tempo para atendê-las”, indica Edouard.
Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento no Haiti publicado em 2006 indicava que um terço das mulheres do país tinha sofrido violência física ou sexual. E que a metade delas era menor de 18 anos.
No distrito de Carrefour foram organizadas patrulhas de cidadãos para proteger as centenas de pessoas que hoje vivem nas ruas. Como o edifício da prefeitura de Carrefour ficou destruído, o prefeito recebe sentado sob uma árvore todas as famílias que vêm pedir dinheiro. A assistente social Malía Joseph atende às mulheres. “Aqui vêm muitas que não têm dinheiro, estão sós e não sabem aonde ir. Para mim isso também é uma espécie de violação.”
“Mas quantas chegaram desde o terremoto para denunciar violações físicas?” “Nenhuma. Para isso vão à delegacia.”
Meio quilômetro além, o subcomissário de Carrefour, Angenor Pierre, sentado à sombra com uma perna cruzada sobre a outra, confessa: “Vieram brigadas de cidadãos para nos dizer que houve duas tentativas de violações. Mas não tivemos tempo de investigar nada até agora. A partir de terça-feira o faremos. De todo modo, as mulheres não costumam vir aqui quando são violentadas.”
“Aonde vão, então?” “A um colégio de freiras, aí em cima.”
Finalmente, no colégio de salesianos de Carrefour, podem-se ver centenas de barracas de campanha erguidas para receber os que ficaram sem casa. Junto delas, a freira colombiana Rocío Pérez, de 67 anos, que chegou há 44 ao Haiti. “Neste país as mulheres fazem às vezes de mãe e de pai. São elas que trazem as crianças para a escola e que cuidam das casas. Os homens pobres são muito negligentes.” Pérez comenta que no sábado chegou uma mulher sozinha que pariu ali mesmo em uma barraca.
“E chegaram mulheres violentadas?” “Disso não sei. Mas neste país esse é um problema muito antigo. O governo sempre diz que vai fazer algo contra os bandidos, mas nunca faz nada. Eu lembro que com frequência, no bairro onde eu trabalhava, antes se comentava que as meninas jovens saíam para buscar água à noite e eram violadas. Mas não diziam nada. Nunca dizem nada.”
Se estas são as voltas que um branco tem de dar para tirar algo claro sobre as violações depois do terremoto, quantas não dará uma mulher negra, com ou sem marido, que durma na rua e que tenha se armado de coragem para denunciar uma violação. E se decidisse abortar seria melhor descartar a idéia. “Um aborto custa de US$ 100, que cobra qualquer médico charlatão que se encontra na rua, até US$ 250 de um sério”, informa a assistente social Malía Joseph.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Reportagem [Las mujeres aún mueren por el seísmo] do El País, no UOL Notícias.
EcoDebate, 27/01/2010
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