A era pós-mídia de massa: a desconfiguração e descentralização da Comunicação. Entrevista especial com Ivana Bentes
Desconfigurar, descentralizar, até mesmo “explodir”. Para a doutora em Comunicação e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivana Bentes, o que caracteriza a “era pós-mídia de massa são justamente as práticas descentralizadas de comunicação”. “A Internet é esse lugar de desconfiguração”, afirma a professora em entrevista concedida, por email, à IHU On-Line.
Ivana acredita ainda que o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo “abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais bem mais interessantes do que o velho muro das lamentações corporativas”. Segundo ela, os cursos de Comunicação precisam “dar uma virada e explodir” o ambiente da sala de aula tradicional e pensar uma formação por projetos, uma “wiki-universidade”.
Analisando os resultados do Fórum de Mídia Livre e da Confecom, afirma que foram “um momento histórico, vivo, vibrante das possibilidades e limites da atual democracia brasileira”. “É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo, explodindo o jornalismo corporativo”, defende.
Ivana Bentes é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ e Diretora da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ), também atua na área de Comunicação, com ênfase em estética, audiovisual, cinema, imaginário social, pensamento contemporâneo e cultura digital. Atualmente se dedica a dois campos de pesquisa: Estéticas da Comunicação, Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo e Periferias Globais: produção de imagens no capitalismo periférico. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ. É curadora na área de arte e mídia, cinema, audiovisual.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Uma das principais discussões do II Fórum de Mídia Livre é pensar a produção de um novo mercado da comunicação: o mercado do diálogo. Como se apresenta esse mercado?
Ivana Bentes – O mercado não vem “primeiro”. Ele é um resultado da articulação das redes de mídia livre, é o resultado da emergência de um movimento mídia-livrista. O que o Fórum de Mídia Livre tem buscado é dar visibilidade a essa rede de produtores de conteúdo em todas as mídias e aos novos movimentos do campo da comunicação, como o pessoal do Música Para Baixar, do Software Livre, dos blogs, além dos protagonistas históricos que lutam e lutaram pela democratização dos meios de Comunicação no Brasil (do rádio, das TVs comunitárias, públicas, do vídeo, da videoarte etc.).
“O que caracteriza a era pós-mídia de massa são práticas descentralizadas de comunicação, que podem criar novos ambientes colaborativos e participativos” |
Então, é nesse sentido que temos que criar “mercados”, num momento em que é a sociedade como um todo que produz mídia. Ou seja, se a mídia somos nós, com nossa capacidade cognitiva, afetiva, de produzir linguagem, valor, o mercado potencial de atuação é enorme, heterogêneo e diversificado. Mas, para existir, depende de uma série de fatores, entre eles a massificação das ferramentas e infra-estrutura para acesso amplo, livre, gratuito, a custo baixo, às redes e acesso às tecnologias e ferramentas de comunicação.
Ou seja, a questão do Fórum de Mídia livre é antes de mais nada potencializar esse momento de transição em que os intermediários e corporações que tinham uma “reserva de mercado” para a produção de conteúdos se veem em crise diante de uma tecnologia como a Internet, que tem potencial “livre”, participativo e colaborativo, que demanda uma outra lógica, não hierarquizada, não centralizada, polifônica na produção das informações.
A palavra “mercado” não pode ser demonizada. Temos que criar e reivindicar a criação de novos mercados. Por exemplo, toda essa economia pós-Google dos centavos, dos downloads pelos aparelhos de celulares, os sites de textos, imagens em domínio público, os conteúdos licenciados em “creative commons”: são mercados novos em que as próprias empresas pós-mídias de massa estão apostando, investindo e criando. Nós temos que inventar, criar valor e tornar desejável os nossos mercados a serem inventados.
No Fórum de Mídia, foi muito discutida, por exemplo, a possibilidade de criação de moedas sociais, moedas baseada na troca de serviços de comunicação ou outros, na linha do que o Cubo Card (www.cubocard.blogger.com.br) e Pablo Capilé inventaram para a cena musical e que deu muito certo. Inventaram uma moeda que faz circular serviços, bens e pessoas. Um mercado que vem viabilizando e dando visibilidade às bandas de rock do circuito fora das grandes capitais brasileiras, o projeto Fora do Eixo.
IHU On-Line – A situação dos realizadores independentes ainda é muito complicada nessa “Era pós-mídia”? Quais são os maiores desafios de se fazer comunicação alternativa hoje, em nosso país?
Ivana Bentes – Melhor falar em “produtores de conteúdo” de forma ampla, e sem o adjetivo “independente”, pois o ambiente, seja para a mídia de massa, seja para novas mídias, está convergindo. Claro que existem assimetrias gigantescas entre os diferentes produtores de mídia, conteúdo etc. Mas nada está configurado ou determinado. Estamos no meio de dinâmicas muito velozes, que exigem uma disposição e experimentação de quem quer fazer mídia.
“A Internet, que tem potencial ‘livre’, participativo e colaborativo, demanda uma outra lógica, não hierarquizada, não centralizada, polifônica” |
O que caracteriza essa era pós-mídia de massa são justamente as práticas descentralizadas de comunicação ponto a ponto, P2P (peer-to-peer), pós-Internet, que têm esse potencial de criar novos ambientes de trabalho, de educação, de lazer, colaborativos e participativos, rompendo com velhas formas de hierarquização e de aprendizagem unidirecionados e/ou centralizados, estimulando processos coletivos de ampla conectividade em rede. Essas proposições não têm nada de utópicas, são bem realistas, pragmáticas e imanentistas. Aliás, basta olhar para algumas práticas emergentes de mídia (a blogosfera, por exemplo) e os ambientes de ensino/aprendizado/convivência reais/virtuais.
Vejo de forma bem ampla a questão do mídia-livrismo, com a entrada de novos sujeitos sociais na produção de mídia, o que podemos chamar de inclusão subjetiva. As coberturas das guerras, catástrofes – como agora no Haiti, Afeganistão – e mesmo uma nova sensibilidade e crônica do cotidiano estão sendo feitas nos blogs, twitters, mídias sociais, redes de “pessoas comuns” que impactam o mundo.
Inclusão subjetiva significa que essas vidas, essas pessoas têm um potencial de produzir outras “linguagens”. As redações de jornais e TVs têm um ambiente marcado socialmente, homogêneo demais. Então, a explosão dessa produção desterritorializada, heterogênea pode produzir dissenso, fricção, tensão. Falando das mídias tradicionais, é urgente colocar dentro das redações de jornais, TV, mídia, pessoas vindas de outros grupos sociais. Isso muda tudo. Um editor de polícia, urbanismo, que tem outra vivência da cidade, por exemplo. A Internet é esse lugar de desconfiguração. Claro que pode simplesmente reproduzir o modelo da mídia de massa, mas essa potencialidade está aí.
Existem projetos de produção de conteúdos e de mídia que podem vir diretamente das favelas, das prisões, dos hospitais, dos asilos, de ambientes quaisquer, que podem trazer consigo uma outra expressão e comunicação. Um exemplo brasileiro é a forma como os motoboys se articularam usando a Internet e produzindo mídia (http://www.zexe.net/SAOPAULO/intro.php?qt=).
São 12 motoboys de São Paulo que percorrem espaços públicos e privados da cidade com celulares e acesso a um site. Fotografam, filmam e publicam em tempo real na Internet as suas experiências. Fazem uma crônica/cobertura singular da cidade, gerando um conhecimento coletivo e partilhado. É um projeto original de mídia, em que a “vida” desses motoboys é que produz “linguagem” e valor.
Tem ainda projetos como o Observatório da Maré, os repórteres-comunitários do Viva Favela, sites do Rio que apontam para essas possibilidades, de gangues-guerrilheiras das notícias. Isto é a Ciberperiferia: a apropriação das novas mídias por outros grupos sociais.
IHU On-Line – O que você pensa sobre essa nova Lei de Publicidade? E quanto à retirada da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão?
Ivana Bentes – O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo no Brasil (como em tantos países do mundo inteiro) abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais, bem mais interessantes do que o velho muro das lamentações corporativas. Agora, será necessário constituir novos “direitos” para jornalistas e não-jornalistas, free-lancers, blogueiros e mídia-livristas. Todos terão que inventar novas formas de lutas comuns.
O fim do diploma tira da “invisibilidade” a nova força do capitalismo cognitivo, as centenas e milhares de jovens free-lancers, autônomos, mídia-livristas, inclusive os formados em outras habilitações de Comunicação que eram impedidos por lei de fazer jornalismo e exercer a profissão e que, ao lado de qualquer jovem formado em comunicação, constituem hoje os novos produtores simbólicos, a nova força de trabalho “vivo”.
“O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo abre novas questões sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais” |
Parece que vamos, finalmente, sair do piloto automático dos argumentos prontos “de defesa do diploma”, que sempre escamotearam alguns pontos decisivos.
O fim da exigência de diploma para trabalhar em jornalismo não significa o fim do ensino superior em jornalismo, nem o fim dos cursos de Comunicação que nunca foram tão valorizados. Outros cursos, extremamente bem sucedidos e disputados no campo da Comunicação (como publicidade) não têm exigência de diploma para exercer a profissão e são um sucesso, com enorme demanda.
A qualidade dos cursos e da formação sempre teve a ver diretamente com projetos pedagógicos desengessados, com consistência acadêmica, professores de formação múltipla e aberta, diversidade subjetiva, e não com “especificidade” ou exigência corporativa de diploma. Isso traz um questionamento sobre a atual formação, pois as universidades não precisam (ou não deveriam) formar “peões” diplomados, mas sim jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das corporações, não profissionais “para o mercado”, mas sim capazes de “criar” novos mercados e ocupações, jornalismo público, pós-corporações, midiarte, jovens que inventam ferramentas, práticas e mercados pós-mídias massivas.
Nada justificava, pois, a “excepcionalidade” do diploma para os jornalistas, o que criou uma “reserva de mercado” para um pequeno grupo, reserva que diminuía a empregabilidade de jovens formados em cinema, rádio e TV, audiovisual, publicidade, produção editorial etc., proibidos pela exigência de diploma de exercer… jornalismo.
O raciocínio corporativo constituiu, até hoje, uma espécie de vanguarda da retaguarda, com um discurso fabril, estanque, de defesa da “carteira assinada” e dos “postos de trabalho”, enquanto, no capitalismo cognitivo, no capitalismo dos fluxos e da informação, o que interessa é qualificar não para “postos” ou especialidades (o operário substituível, o salário mais baixo da redação!), mas sim para campos do conhecimento, para a produção de conhecimento de forma autônoma e livre, não o assujeitamento do assalariado, paradigma do capitalismo fordista.
A ideia de que, para se ter “direitos”, é preciso se “assujeitar” em uma relação de patrão/empregado, de “assalariamento”, é uma ideia francamente conservadora. O precariado cognitivo, os jovens precários das economias criativas estão reinventando as relações de trabalho; os desafios são enormes, a economia pós-Google não é o jornalismo fordista, não vamos combater as novas assimetrias e desigualdades com discursos e instrumentos da revolução industrial.
“As universidades não deveriam formar ‘peões’ diplomados, mas sim jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade” |
Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas pelos novos movimentos sociais de organização e defesa do precariado, lutar pela autonomia fora das corporações, para novas formas de organização e seguridade do trabalhador livre do patrão e da corporação.
As forças livres (frágeis, sem direitos, sem seguridade, nômades globais, precários, imigrantes, periféricos, doutores ou favelados) do precariado são a nova classe, grupo, força no capitalismo contemporâneo. São novos direitos, novas lutas… Não tem volta. Mesmo sabendo que o capitalismo cognitivo produz obviamente novas formas de coerção, capturas e despotencialização, a primeira questão é compreender as mudanças para intervir e construir o devir.
IHU On-Line – Em termos gerais, quais são os principais dilemas da comunicação no Brasil?
Ivana Bentes – Atualmente, é fazer a passagem de um sistema de Comunicação concentrado, hierarquizado e monopolista, que tem apenas privilégios e cujo horizonte são audiências massificadas, para um sistema de Comunicação horizontal, descentralizado, organizado em redes abertas, públicas e que pense não em termos de “audiência” ou público, mas sim em produtores de conteúdo e expressão. E que possa ter algum tipo de regulação social. Ou seja o consumidor de mídia como produtor e “observador” de mídia. Ninguém mais quer “aparecer” na TV ou no jornal simplesmente. As pessoas, grupos, coletivos, entidades, associações querem um canal de expressão, um canal de TV, acesso imediato aos meios de produção e distribuição, logo, de expressão.
Outra questão muito importante nesse momento é a universalização do acesso dos brasileiros à banda larga, com a criação e manutenção de uma rede de infra-estrutura pública de Internet, garantindo que essa passagem e mutação tecnológica não produzam mais assimetria de poder e aumentem a produtividade social como um todo. E também a criação de um marco legal civil para a Internet e as novas mídias que não criminalize as novas práticas sociais, como compartilhar arquivos, disponibilizar conteúdos em domínio público, assegurar a navegação anônima, uma série de “direitos” importantíssimos.
Outra questão: a alteração da legislação de Direito Autoral para garantir a ampliação das possibilidades de uso das obras protegidas para flexibilizar ou liberar totalmente os usos para fins de educação, pesquisa, de difusão cultural, preservação, uso privado de cópia integral sem finalidade comercial e também para uma gestão coletiva e estímulo ao licenciamento alternativo e garantia à proteção dos conteúdos em domínio público, de modo que esses conteúdos financiados publicamente (e outros) possam continuar livres.
“O raciocínio corporativo constituiu uma espécie de vanguarda da retaguarda, com um discurso fabril, estanque” |
No campo da formação para as novas mídias, é importante a criação de escolas livres de formação multimídias em todo país, experimentando novas metodologias, novas ferramentas, jornalismo-cidadão, web jornalismo, blogagem, explodindo a formação disciplinar e hiperespecializada atual. Os cursos de Comunicação precisam dar uma virada e explodir (ou mudar) o ambiente da sala de aula tradicional e pensar uma formação por projetos, laboratórios, uma wiki-universidade, dinâmicas novas.
Isso sem falar em todas as mudanças necessárias na atual Lei Geral das Comunicações da década de 70 e totalmente defasada em termos tecnológicos, conceituais e que não está à altura da democracia já conquistada e desejada neste país.
IHU On-Line – A imagem é o novo capital? Poderia comentar essa ideia que inspira um de seus artigos?
Ivana Bentes – Estamos em um capitalismo cognitivo que tem como base o design, a publicidade, as imagens, a informação. Ou seja, a intuição do teórico francês Guy Debord nos anos 60/70 sobre a “sociedade do espetáculo” é interessante e importante, mas não pensada de uma forma simplificada e moralista pelo pessoal que sofre de iconofobia (medo das imagens) e que banalizou e generalizou de tal forma a critica da “sociedade do espetáculo” que a própria crítica virou um clichê teórico que se aplica de forma generalizada.
A frase decisiva de Guy Debord é: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens” (Ver o texto “Depois do espetáculo: reflexões sobre a tese 4 de Guy Debord”, de Juremir Machado da Silva, que vai em outra direção, mas é excelente).
Mas o que interessa aí, ao meu ver, é entender essa “relação social mediada por imagens”, é reverter a impotência das imagens e dos clichês. Não é a “iconofobia”, mas sim a iconofilia, o amor às imagens, que pode reverter os clichês em potência e arrancar dos clichês novas virtualidades. “Rachar” e explodir os clichês e arrancar daí a nova potência das imagens (Deleuze, Foucault dizem isso). Senão, seremos os anunciadores do apocalipse da sociedade do espetáculo, um tipo de discurso da impotência e do ressentimento diante do mundo, que faz o maior sucesso no nosso meio acadêmico.
“Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas por novos movimentos sociais de organização e defesa do precariado” |
Vivemos com as imagens e entre imagens. É preciso entender o estatuto e nossa relação vital com as imagens. A imagem nunca foi investida de tanto valor, real e simbólico. A imagem-publicitária, a imagem-capital, as imagens produzidas no campo da arte, que podem atingir valores irracionais. Mas também o valor afetivo incomensurável de certas imagens com as quais nos relacionamos, que têm uma duração, que sobrevivem ao fluxo aniquilante, ao “esgoto público das imagens” que nos atravessa (YouTube, TV, web, jornais, publicidade na cidade, fluxo de imagens e discursos nos dispositivos tecnológicos).
Por isso é tão importante aprender (e ensinar) a “ler” as imagens e a produzir discursos pela imagem. Também as tecnologias de visualização me parecem decisivas, da câmera digital até o Google Maps, Google Stret View, Google Ocean, Marte etc. ferramentas capazes de escanear, mapear, localizar, de sobrepor camadas de informação vivas, criar imagens que não são mais representações de nada, mas que são a experiência mesma do mundo, mediado pelas imagens.
Ou seja é preciso pensar a imagem como algo “vivo” e nós como imagens entre imagens. Nada disso enfraquece o sentido da crítica, do pensamento. É preciso pensar com as imagens, através das imagens e, quando necessário, contra as imagens. Nesse sentido o último livro do Jacques Rancière, “O Espectador Emancipado”, é excelente: esse espectador “alienado” não existe. Todo espectador é ativo.
IHU On-Line – De que forma essa imaterialidade influencia as práticas do trabalhador jornalista?
Ivana Bentes – O jornalista, os produtores de mídia e conteúdos sempre trabalharam com o “imaterial”, produção de sentido, criação de valor, produção de “consensos” e opiniões (para o pior e para o melhor). A questão hoje é que há uma mudança, uma mutação em curso, que torna qualquer um habilitado a ocupar esse lugar dos “especialistas”. A sociedade como um todo pode produzir mídia, com a universalização das técnicas, tecnologias, dispositivos outrora reservados e dominados por uma corporação. É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo. Explodindo o jornalismo corporativo (ou reforçando, claro). Para mim, esta é a mudança que interessa: a apropriação tecnológica pela multidão, visando as novas lutas dentro do capitalismo cognitivo, imaterial, de produção e disputa de linguagens e processos. É a guerrilha semiótica, a disputa e a partilha do sensível pelas imagens e discursos.
Estamos numa cultura/contexto em que a metalinguagem vai se tornando um aprendizado de massas: Alice atravessou o espelho, e é para esse mundo que o trabalhador-jornalista tem que produzir, ou seja, trabalhar ironicamente pela sua “desaparição”, como mediador clássico. Não se trata de nenhuma contradição. Estou diretora e sou professora de uma Escola de Comunicação, mas luto para que qualquer brasileiro possa se tornar um produtor de informação, de linguagem, de estética singular e diferenciado. Essa é a revolução digital, tecnológica, mental que interessa.
IHU On-Line – Você sempre diz que a comunicação é importante demais para ficar sendo discutida apenas por profissionais da Comunicação. A partir disso, qual foi a consistência dos debates na Confecom?
Ivana Bentes – Um dos pontos positivos da Confecom foi ter mobilizado os novos movimentos sociais que pensam a mídia e a comunicação de “fora” das corporações, e que trazem um oxigênio novo. Todo mundo quer fazer mídia, entender de mídia. A mídia somos nós, toda a sociedade, a multidão, os movimentos ligados à música, ao software livre, aos direitos autorais, às favelas e periferias. Não para reforçar discursos identitários ou de guetos, simplesmente, mas quando conseguem se colocar como produtores de subjetividade, de linguagem e exigem sua inclusão subjetiva nas mídias.
“Os cursos de Comunicação precisam dar uma virada e explodir (ou mudar) o ambiente da sala de aula tradicional” |
Vi claramente muitas vezes um “confronto” entre os que só pensam a mídia e a comunicação de forma “tradicional”, clássica, mídia de massa, corporativa, “profissional”, e essa emergência de um zona livre, dos mídia-livristas, dos que lutam por essa inclusão subjetiva.
Os debates foram bons, às vezes tensos e muito negociados para a votação dos pontos finais. Fiquei bastante decepcionada com a atuação de algumas entidades partidárias, entidades classistas, sindicatos, federações. Vêm com um discurso muito “conservador”, com práticas antigas de fazer política, que não colam mais no horizonte de uma democracia participativa e não simplesmente representativa e aparelhada.
IHU On-Line – Como a Confecom e o Fórum de Mídia livre ajudam a democratizar a comunicação em nosso país?
Ivana Bentes – Esses Fóruns e conferências são o palco das lutas do presente e são também os laboratórios de criação de futuros. Futuros imaginados, fabulados, disputados, abortados. É uma experiência extraordinária e revitalizante, apesar de todos os obstáculos eventuais com propostas extraordinárias que vão ficando pelo caminho. Para mim, são espaços para existirmos criando e fabulando, e não apenas reagindo contra o estado das coisas. Nesse sentido, o fato de serem “diretrizes”, propostas, carta de intenções não diminui em nada sua efetividade. São territórios de produção de virtualidades, a maior riqueza de todas.
IHU On-Line – Você defendeu também que um novo marco regulatório deve ser criado. O que deveria constar obrigatoriamente neste documento e porque ele é tão importante?
Ivana Bentes – São todas as mudanças necessárias na atual Lei Geral das Comunicações, da década de 70, que está totalmente defasada em termos tecnológicos, conceituais, em termos de democracia. São muitas as mudanças, e uma parte delas entrou nas propostas aprovadas pela Confecom e também no Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), bombardeado nesse momento pelas forças mais conservadoras da sociedade brasileira.
“A iconofilia pode reverter os clichês em potência e arrancar dos clichês novas virtualidades. Vivemos com as imagens e entre imagens” |
As mais importantes ao meu ver: o fim da propriedade cruzada e a proibição de monopólios e oligopólios em todos os setores das comunicações; a revisão dos critérios de concessão de canais de Rádio e TV, para que não sejam outorgas vitalícias; criação de mecanismo de avaliação destas outorgas; criação de mecanismos de monitoramento dos meios de Comunicação pela sociedade (observatórios, conselhos), como qualquer outro serviço público; a elaboração de um novo marco regulatório para os trabalhadores autônomos; a democratização das verbas publicitárias e propostas de apoio e financiamento público para criação de veículos de comunicação, redes de comunicação, de interesse público/comum. Ou seja, assegurar a Comunicação como um direito para toda a sociedade, em todos os níveis (Internet, telefonia, radiodifusão etc.)
O novo marco legal para as Comunicações implica em muitas alterações de ordem jurídica, ética, técnica. É um documento complexo que terá que ser construído coletivamente, mas as principais propostas já estão aí. Recomendo a leitura do documento final da Confecom e o Programa Nacional dos Direitos Humanos.
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação geral sobre a Confecom? Quais são os principais avanços contidos no Relatório Final?
Ivana Bentes – A Confecom é uma criação de “futuro”, o que a sociedade brasileira, os movimentos sociais, os movimentos pela democratização da comunicação lutaram nesses anos todos. E que teve que se confrontar ou se aliar com outros atores sociais: setor público, empresariado etc. Esse lugar de diálogo e disputa é decisivo e tem que ter continuidade e regularidade. Vejo muitos avanços, mas são propostas que terão ainda que ser defendidas no Congresso, diante da própria sociedade como um todo para serem implantadas e cumpridas.
Algumas questões históricas foram aprovadas dentre essas diretrizes como: a universalização da banda larga no país; o fim da propriedade cruzada e a proibição de monopólios e oligopólios em todos os setores das comunicações; a elaboração de um novo marco regulatório para os trabalhadores autônomos, propostas de apoio e financiamento público para criação de veículos de comunicação que priorizem a produção das periferias, movimentos sociais, minorias; a proposta de um novo marco civil para a Internet (que já está em curso) etc. E muitas outras proposições em termos de financiamento público, jornalismo público e cidadão, democratização das verbas publicitárias públicas.
Em resumo, vejo como principal avanço a ideia de uma Comunicação pública, produzida, regulada, voltada para a radicalização da democracia neste país, para além das corporações e da mídia tradicional, e a entrada em cena de novos atores ligados à cultura digital, blogs, periferias.
“É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo. Explodindo o jornalismo corporativo” |
Ao mesmo tempo muitas propostas importantes não passaram, foram barradas, negociadas, o que não significa que não possam vir ser implementadas, desde que a sociedade se mobilize para isso.
IHU On-Line – Concorda que houve um boicote das grandes empresas de telecomunicações à Confecom? Por quê?
Ivana Bentes – Houve boicote de algumas emissoras de TV e entidades de classe, ligadas aos empresários da Comunicação, que se sentem ameaçados por todas as mudanças, tecnológicas, políticas, de comportamento que forçam uma mudança do negócio e democratizam a comunicação. E que não tem volta. Diferentemente dos jogos de futebol, em que o adversário não aparece, e o outro ganha por “W.O”. Em inglês Walk Over, o verbo significa “to win without difficulty against”, ganhar sem dificuldade. Mas as conquistas da Confecom não foram sem dificuldades, e houve ameaças e jogo pesado até o último momento, mesmo com esse W.O. das emissoras de TV, pois todas as propostas ainda terão que ser implementadas, ou seja, serão disputadas uma a uma. Tem muito jogo para se jogar.
A parte boa é que a não participação de algumas emissoras de TV, que seria uma estratégia para “esvaziar” e neutralizar a Confecom, não deu certo. O documento está aí, uma bandeira fincada e reconhecida pela sociedade e pelo governo. Outras entidades e representantes e donos de canais de TV aceitaram discutir e disputar propostas. Houve embate de posições, negociações, e o texto consensuado da Confecom é o “estado da arte” do que a sociedade brasileira, neste momento, consegui consensuar, com todas as limitações e estratégias de esvaziamento. Foi um momento histórico, vivo, vibrante das possibilidades e limites da atual democracia brasileira.
(Reportagem de Greyce Vargas e Moisés Sbardelotto)
(Ecodebate, 23/01/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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