O fato é que a sociedade já discute o PNDH-3, artigo de Flávia Piovesan
[O Estado de S.Paulo] O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) tem como mérito maior lançar a pauta de direitos humanos no debate público, como política de Estado, de ambiciosa vocação transversal.
São 521 ações programáticas, alocadas em seis eixos orientadores: interação democrática entre Estado e sociedade civil; desenvolvimento e direitos humanos; universalizar os direitos humanos em um contexto de desigualdades; segurança pública, acesso à Justiça e combate à violência; educação e cultura em direitos humanos; e direito à memória e à verdade. O PNDH-3 é fruto da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, de dezembro de 2008; um processo aberto e plural, contando com a participação da sociedade civil e de atores governamentais, no exercício democrático marcado por “tensões, divergências e disputas”, como reconhecido no prefácio ao PNDH-3.
Os diversos ministérios foram convidados a participar desse trabalho, contando o PNDH-3 com suas assinaturas, tendo em vista a “transversalidade e a interministerialidade de suas diretrizes”. Espelha a própria história dos direitos humanos, que, como lembra Norberto Bobbio, não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Direito ao meio ambiente, ao desenvolvimento sustentável, à verdade, à livre orientação sexual, aos avanços tecnológicos, direitos dos idosos, entre outros, são temas da agenda contemporânea de direitos humanos. O programa reflete as complexidades da realidade brasileira, a conjugar uma pauta pré-republicana (por exemplo, o combate e prevenção ao trabalho escravo) com desafios da pós-modernidade (como o fomento às tecnologias socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis).
O primeiro PNDH, lançado por FHC, em 1996, contemplava metas em direitos civis e políticos. Em 2002, são incluídos os direitos econômicos, sociais e culturais. O PNDH-3 atualiza e amplia o programa anterior. O novo programa é reflexo da abrangência que os direitos humanos assumem desde a Declaração Universal.
Como noticiado, a mais polêmica é a criação da Comissão Nacional da Verdade para examinar violações de direitos humanos praticadas no período da repressão política de 1964 a 1985. A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações no campo dos direitos humanos. A Corte Interamericana considerou que essas leis perpetuam a impunidade, impedem o acesso à Justiça de vítimas e familiares e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, consistindo numa direta afronta à Convenção Americana. Destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile, em que a mesma corte, em 2006, decidiu pela invalidade do decreto-lei 2191/78 – que previa anistia aos crimes perpetrados de 1973 a 1978 na era Pinochet – por negar justiça às vítimas, bem como contrariar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-humanidade.
Quanto ao aborto, o PNDH-3 endossa a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, em respeito à autonomia das mulheres. A ordem internacional recomenda aos Estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e sejam revisadas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado um grave problema de saúde pública.
A respeito das uniões homoafetivas, o PNDH-3 apoia a união civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os direitos dela decorrentes, como a adoção. Em 2008, a Corte Europeia de Direitos Humanos ineditamente condenou a França por afronta à cláusula da igualdade e proibição da discriminação, ao ter impedido uma professora francesa, que vive com sua companheira desde 1990, de realizar uma adoção. No dia 8 de janeiro, Portugal une-se à Bélgica, Holanda, Espanha, Noruega e Suécia, países que permitem o matrimônio entre homossexuais.
Sobre a liberdade religiosa, o PNDH-3 propõe a construção de mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos. Uma decisão da Corte Europeia de 2009 condenou a Itália a retirar crucifixos de escolas públicas, em nome do direito à liberdade religiosa. No Estado laico, todas as religiões merecem igual consideração e respeito, não podendo se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião.
Se na época dos regimes ditatoriais a agenda dos direitos humanos era contra o Estado, com a democratização os direitos humanos passam a ser também uma agenda do Estado – que combina a feição híbrida de agente promotor de direitos humanos e, por vezes, agente violador de direitos.
O PNDH-3 desde já presta especial contribuição ao ampliar e intensificar o debate público sobre direitos humanos, acenando com a ideia de que não há democracia, tampouco Estado de Direito, sem que os direitos humanos sejam respeitados.
Flávia Piovesan – Professora de Direitos Humanos; procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.
Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 18/01/2010
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