O problema da Terra, artigo de Ricardo Honório
Imagem: IHU
[Correio Braziliense] A ciência nos ensina que a Terra precisou de alguns bilhões de anos até que fosse possível a existência de vida em sua superfície. Apesar de todo esse tempo, as primeiras espécies mais vegetavam que viviam. Eram mônadas, celenterados e espécies afins que serviam, ao que parece, de cobaias que testavam, para Alguém, a viabilidade da existência de vida no orbe recém-criado.
Com o passar do tempo, o planeta se resfriou e criou as condições para o recebimento de espécies mais complexas. Vieram os grandes animais aquáticos, os anfíbios, até que o orbe se tornou habitável. Quando tudo pareceu pronto, chegou a espécie mais complexa: o homem. E põe complexidade nisso!
No início, o homem vivia para se alimentar e se alimentava para viver. Depois, ele passou a viver para se alimentar e alimentar a sua prole. Quando a prole também começou a buscar alimentos para o grupo familiar, o homem passou a viver para se alimentar, alimentar a prole e armazenar o que não era consumido de imediato. Começava aqui a geração do que seria chamado de excedente de produção.
Com o excedente de produção, o homem percebeu que poderia diminuir o seu trabalho na busca de alimentos, haja vista que a prole se mostrara capaz de conseguir alimentos para todos. Em pouco tempo, se fez necessária a administração do excedente. Começa aqui a divisão de tarefas e de classes.
Com o aumento da população humana sobre a Terra, aumentou a demanda por alimentos. Os núcleos familiares, divididos em gestores do excedente e a prole produtora de alimentos, sentiram a necessidade de preservar os nichos que garantiam o fornecimento dos bens necessários. Iniciava-se, assim, a reserva estratégica das fontes de recursos que garantiam a produção, o consumo e o excedente.
Para garantir a apropriação dos nichos, foi preciso dividir a prole em administradores, produtores de alimentos e os defensores dos nichos. Para tanto, desenvolveram-se métodos e técnicas de defesa dos interesses individuais e grupais. Assim se iniciara a arte bélica como ferramenta de defesa desses interesses.
A vida espalhou-se pela Terra e o homem complexo disseminou a sua complexidade em todos os quadrantes do planeta. A forma de produzir, administrar e defender seus interesses foi difundida e copiada por todos os núcleos familiares. Quanto mais o homem complexo se desenvolvia, mais complexidade imprimia à sua forma de ver e viver a vida. A busca pelo excedente tornou-se tão importante que o foco deixou de ser a produção para a manutenção da vida e passou a ser a produção para a manutenção do excedente.
O tempo passou e os núcleos familiares se tornaram clãs, os clãs se tornaram castas, as castas se tornaram feudos, dos feudos surgiram as divisões territoriais e das divisões territoriais surgiram os países. Tudo muito complexo, conforme as complexidades do homem complexo.
Os métodos e técnicas para consecução de bens se aperfeiçoaram, mas mantiveram a mesma filosofia de criação de excedente, sem se preocuparem com detalhes importantes, como: até que ponto a Terra suportará a extração dos recursos naturais para a produção de excedentes? A fonte desses recursos é inesgotável? A acirrada e belicosa metodologia de defesa dos nichos de extração, produção e comercialização de produtos mais auxilia ou mais complica a complexa vida do homem complexo?
Algumas dessas perguntas já têm resposta. No entanto, surgem outras: quando Alguém utilizava as mônadas, os celenterados para testar a viabilidade de vida no planeta, será que imaginava uma Terra fragmentária e contenciosa, habitada por criaturas com tão alto poder de destruição e tão baixa capacidade de conciliação? Criaturas que aprenderam tanto a somar e tão pouco a dividir? Será que a complexidade do homem representada, sobretudo, pela sua capacidade de raciocinar, refletir, pensar não é capaz de fazê-lo ver que a exacerbada utilização dos recursos naturais e a implacável defesa de interesses individuais e de grupos levadas ao extremo poderão conduzi-lo, inexoravelmente, à autodestruição da espécie?
O homem está vivendo seu grande paradoxo. Enquanto a sua inteligência lhe favorece a consecução de vários estilos de vida, alguns altamente danosos à estabilidade da vida no planeta, vícios morais como a insensatez, o orgulho, a vaidade, a intolerância, a avareza… o impedem de encontrar alternativas que corrijam a trajetória de equívocos seculares.
O que Alguém levou bilhões de anos para construir, o Homem, pela sua incúria, poderá destruir em poucos séculos!
Talvez, este texto, como tantos outros, não mudará nada nos destinos do nosso planeta; quiçá, quando muito, levará você, leitor, a refletir por alguns minutos, até que sua reflexão seja interrompida por uma nova necessidade supérflua, garantindo a manutenção do nosso estilo de vida (ou de morte?). Isso porque a produção de excedentes supérfluos não pode parar; porque a concorrência interpessoal, interorganizacional e internacional que dita o ritmo da nossa vida, não pode ser perdida; porque mais vale morrer agarrado ao lucro, do que viver para ver o outro lucrar!
Enfim, a Terra tem um grande e complexo problema: o homem! Eis aqui o grande e complexo desafio: o problema resolver-se a si próprio.
# Ricardo Honório é Geógrafo
Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense.
EcoDebate, 09/01/2010
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