EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Estupro e proteção insuficiente, artigo de Fausto Rodrigues de Lima

[Correio Braziliense] A nova Lei nº 12.015, fruto da CPI da Pedofilia, foi promulgada em agosto último, prometendo aperfeiçoar o enfrentamento aos crimes sexuais. Não é isso que tem ocorrido na prática. Vários julgados têm interpretado a norma de forma mais benéfica a estupradores e pedófilos, criando um quadro pior do que o anterior. Quanto maior e mais repugnante o ato criminoso, maior será o benefício. Incrível? Vejamos.

Juristas pregam que, se forem praticados vários atos criminosos no mesmo contexto, o estuprador deve responder por apenas um crime. Assim, a prática forçada à conjunção carnal terá uma pena provável de seis anos de prisão. Se, além da conjunção carnal, houver sexo anal, a pena será a mesma – seis anos. Se for acrescido, ainda, o sexo oral, qual a pena? Seis anos. E se, após tudo isso, o criminoso repetir todos os atos e terminar por ejacular em várias partes do corpo da vítima? Adivinhem! Sim, seis anos!

Antes da nova lei, a jurisprudência dominante punia cada um dos crimes separadamente. No exemplo acima, a pena mínima seria bem superior a 12 anos de prisão. Com o novo entendimento, muitos estupradores contumazes, condenados a 12, 20, 50 ou mais anos de prisão, estão conseguindo a revisão da pena para 6 anos, ou próximo a isso. Vários já ganharam a liberdade. Outros estão na fila dos tribunais.

E não para por aí. Prega-se que a nova lei exige autorização das vítimas para a investigação e o processo. Se elas não tiverem forças pra isso (por trauma, conivência da família ou do meio social em que estão inseridas), ou temerem retaliações, qual o resultado? Impunidade.

Num país em que pessoas são violentadas apenas por usarem roupas curtas, essa alteração privilegia a tendência de culpar as vítimas, intimidando-as. As justificativas são as mesmas utilizadas para o quase estupro coletivo da estudante Geisy, na Uniban: “Ela provocou! Ela quis! Ela é perigosa!”

E mais: tem-se exigido a autorização das vítimas mesmo quando da prática do estupro resulte lesão “leve” (quebra de nariz ou mandíbula), lesão grave (aborto, perda de membro etc.) ou a própria morte. É a primeira vez que a punição de um assassino dependerá de autorização da vítima! Só não esclarecem como a morta vai se pronunciar (reviram o conselho de Paulo Maluf, para piorá-lo: “Se estuprar, mate!”).

É fato que a nova lei não é um primor de técnica e clareza. Porém, interpretá-la de forma omissa viola a Constituição e os tratados internacionais que regem a matéria, pois desprotegem os direitos fundamentais de todos à segurança e à dignidade sexual. Havendo aparente conflito entre estes e a liberdade dos condenados, resolve-se pelo princípio da proporcionalidade.

Desenvolvido para evitar os excessos do poder absoluto, e sintetizado na máxima “não se abatem pardais disparando canhões”(Jellinek), referido princípio tem sido repensado para resguardar a pessoa não apenas da ação (excessiva) estatal, mas também de sua omissão. Assim, a proporcionalidade ganhou outra vertente, consistente na proibição de proteção deficiente, oriunda da doutrina e jurisprudência alemã.

O Supremo Tribunal Federal já prestigiou esse princípio exatamente para garantir a dignidade sexual. Discutia-se se o estuprador que engravidasse a vítima e depois se amasiasse com ela poderia ser absolvido como previa a lei. O STF afastou a lei e optou pela condenação após voto do ministro Gilmar Mendes (RE 418376, 9/2/2006).

Nesse trilhar, é patente que cada ato sexual importante direcionado ao corpo humano ofende bens jurídicos variados. A introdução do pênis ou outro objeto em qualquer orifício corporal demonstra o grau de perversidade do criminoso e gera danos e dores diferentes e humilhantes às vítimas. Beneficiar os condenados com a impunidade servirá de incentivo à criminalidade sexual, pois será mais vantajoso “usar e abusar” das vítimas de todas as formas possíveis. O único limite dos tarados será a própria criatividade!

Por seu lado, a pena justa não gerará qualquer excesso punitivo contra os condenados, pois ninguém tem o direito de cometer vários crimes e responder só por um. Assim, os tribunais devem aplicar a nova lei conforme a Constituição, sob pena de nulidade das sentenças. Afinal, emendando Jellinek: “Não se protegem pardais alimentando gaviões!”

# Fausto Rodrigues de Lima, Promotor de Justiça do Distrito Federal.

Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense.

EcoDebate, 08/01/2010

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta utilizar o formulário abaixo. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

Participe do grupo Boletim diário EcoDebate
E-mail:
Visitar este grupo

2 thoughts on “Estupro e proteção insuficiente, artigo de Fausto Rodrigues de Lima

  • muito bom o texto, só tenho uma correção a fazer: Sr. Fausto Rodrigues, sobre sua frase “Num país em que pessoas são violentadas apenas por usarem roupas curtas”, há um certo equívoco. Real seria escrever “Num país em que MULHERES são violentadas apenas por usarem roupas curtas”.
    Se o estupro atingisse prioritariamente os homens, a pena com certeza seria a morte;

Fechado para comentários.