Por um outro modelo agrícola, artigo de Osvaldo Russo
Agricultura familiar e orgânica, em foto de arquivo
[EcoDebate] Reportagem do Correio Braziliense de 4/1/2010, sob o título “Maldição da lavoura”, sugere que “o desafio da década para o governo será reverter o alto custo de financiamento do agronegócio, hoje maior que o valor da própria safra”. Isso traz à luz o debate sobre novos paradigmas para a agricultura, em especial em relação aos modelos da agroecologia/agricultura familiar e do agronegócio/agricultura empresarial.
Segundo a reportagem, o agronegócio representa 43,3% das exportações do país — o equivalente a U$$ 60 bilhões – e seus custos tiveram um crescimento elevadíssimo em comparação aos resultados da produção. Para a safra 2009/2010, segundo o levantamento efetuado, o custo para concluir a produção nacional será maior do que o valor que pode ser obtido com a venda dela. Os recursos de financiamento público e privado somados ao orçamento do governo para incentivar a agropecuária, chegariam a quase R$ 170 bilhões. Enquanto isso, a receita que pode ser obtida com a venda de toda a produção nacional em 2010 estimada em R$ 156,8 bilhões – R$ 13,2 bilhões a menos.
O déficit entre o que é gasto para produzir e o quanto a safra vale pode, segundo a reportagem, ser ainda maior, chegando a R$ 50 bilhões, se forem somados também empréstimos de trades e multinacionais, além de recursos próprios. Esse déficit é mais que o triplo do crédito para a agricultura familiar na safra 2009/2010 (R$ 15 bilhões).
Apesar do assentamento, desde a criação do Incra em 1970, de 1 milhão de famílias rurais, das quais mais da metade de 2003 pra cá, os dados do Censo Agropecuário 2006, divulgados pelo IBGE, reafirmam, no entanto, o velho quadro da concentração fundiária no Brasil. As pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais, enquanto as grandes (com mais de 1.000 hectares) ocupam 43% da área total. O quadro de desigualdade é ressaltado pelo fato de as pequenas propriedades representarem 47% do total de estabelecimentos rurais, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,9% desse total.
Nos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) estão quase 85% dos trabalhadores empregados. Embora a soma das áreas dos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) represente apenas 30,3% do total das áreas, eles respondem por 84,4% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores e seus parentes representam 77% do total de pessoas ocupadas.
Apesar de ocupar apenas ¼ da área, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção (R$ 54,4 bilhões). Mesmo cultivando uma área menor, a agricultura familiar é responsável por garantir a segurança alimentar do país gerando os produtos da cesta básica consumidos internamente. A agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. A cultura com menor participação da agricultura familiar foi a soja (16%).
As informações do IBGE revelam também como a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras: Geram um VBP de R$ 677/ha, enquanto que a não familiar gera um VBP de R$ 358/ha (89% a mais) Geram 15 postos de trabalho/100 ha, enquanto que a não familiar gera apenas 1,7 pessoas/100 ha.
Não por coincidência, o aumento observado da devastação das nossas florestas foi maior no Norte e no Centro-Oeste, exatamente onde se deu a expansão da pecuária extensiva, da plantação de soja e das atividades do agronegócio. As exportações de commodities agrícolas transformaram a alimentação em mercadoria, gerando lucros fabulosos sem qualquer preocupação com a necessidade de alimentar as pessoas. Segundo a Organização para as Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo.
A crise mundial do capital aponta para novas perspectivas de mobilização social e afirmação da agricultura camponesa como estratégica ao desenvolvimento sustentável, onde a reforma agrária tenha centralidade, democratizando a vida no campo, gerando empregos, respeitando o meio ambiente, promovendo o ser humano e produzindo alimentos saudáveis que garantam não só a segurança, mas a soberania alimentar do país. Os dados do Censo reafirmam a capacidade de resistência da agricultura familiar, que adota um modo de produção camponês diferente daquele do agronegócio, constituindo-se em uma das alternativas às crises econômicas, sociais, alimentares e ecológicas provocadas pela globalização capitalista.
Há necessidade, entretanto, de criação de um programa de incentivos para a organização de associações de agricultores familiares, garantindo o acesso dos camponeses e suas famílias a um sistema público, com a participação dos movimentos sociais. Para a viabilização desse novo modelo agrícola, é preciso apoiar a agricultura familiar para além do acesso ao crédito e acelerar, ampliar e qualificar a reforma agrária (a atualização dos índices de produtividade é apenas o passo inicial para possibilitar o aumento do estoque de terras reformáveis). É preciso, sobretudo, romper com o modelo atual, hegemonizado pelo agronegócio, priorizando a agroecologia e integrando a agricultura camponesa e familiar a um novo tipo de desenvolvimento sustentável.
Osvaldo Russo, Ex-presidente do Incra, é estatístico e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do PT
Artigo publicado em http://orusso.blog.uol.com.br e www.mst.org.br – 04/01/2010
* Colaboração de Osvaldo Russo, para o EcoDebate, 06/01/2010
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