Da nascente do Yang-tsé para a nascente do Rio Amarelo: Megatransposição de água divide chineses
De pé, em meio aos destroços de sua casa, com o por-do-sol projetado sobre os túmulos de seus ancestrais, Li De irrompe em pranto ao descrever que está sendo realocada para abrir caminho para o mais recente grandioso projeto de engenharia do governo chinês. Sua casa, na Província rural de Henan, em breve ficará submersa, sob um reservatório que alimentará o duto central do maior projeto hídrico da história – o ” projeto sul-norte de transposição de águas”.
“[O governo] disse estar nos transferindo para novas terras para ficarmos ricos e prósperos, mas eles nos lançaram num buraco infernal”, soluça Li. “As novas terras e casas nada valem, e nossa vida lá é péssima.”
A camponesa faz parte do maior lote das 440 mil pessoas que serão deslocadas para abrir caminho para o reservatório e o canal que conduzirá água do Rio Yang-tsé e seus afluentes no sul da China para as áridas planícies setentrionais e para Pequim.
Esse projeto, com seus ecos de megalomania maoísta, não se coaduna facilmente com a China moderna, em que Pequim está fazendo esforços para limpar o ambiente e estimular sua revolução verde. Reportagem de Jamil Anderlini, do Financial Times, no Valor Econômico.
Está também ficando cada vez mais difícil para Pequim desenraizar centenas de milhares de pessoas para abrir caminho para obras faraônicas. Como os cidadãos estão ficando mais ricos, melhor organizados e exigindo seus direitos básicos, o governo cada vez mais receia provocar movimentos sociais de descontentamento que possam crescer, transformando-se em iniciativas políticas oposicionistas mais amplas.
Mas os governantes do país, em sua maioria engenheiros, estão seguindo em frente com o esquema a despeito da oposição até mesmo de alguns de seus próprios especialistas, em cuja opinião o projeto terá consequências involuntárias e provavelmente não conseguirá alcançar seu objetivo manifesto.
A escala da planejada transposição não tem precedentes. No leste, o governo construiu mais de 40 gigantescas estações de bombeamento ao longo das antigas vertentes do Grande Canal Imperial para levar bilhões de metros cúbicos de água para o norte. Na China central, o canal de 1,4 mil quilômetros passa, em determinado ponto, a ser subterrâneo, correndo através de um túnel sob o caudaloso Rio Hoang (o Rio Amarelo).
Por outro lado, engenheiros planejaram uma ambiciosa rota de 1 mil quilômetros para o oeste no platô tibetano, o que envolverá abrir caminho com explosivos através de alguns dos picos mais elevados do mundo para desviar água da nascente do Yang-tsé para a nascente do Rio Amarelo, interligando as duas maiores bacias fluviais pela primeira vez.
Apesar da oposição, a ritualística máquina de poder político chinês torna impossível para os líderes abortar o projeto, porque isso questionaria a credibilidade de seus antecessores e a legitimidade do Partido Comunista. Entretanto, no que pode ser uma importante mudança, pessoas envolvidas dizem que Pequim está reconsiderando a viabilidade da trajetória pelo oeste – em parte, devidos às dificuldades de construção e ao custo exorbitante; em parte, devido à percepção entre a elite política das consequências imprevisíveis de megaprojetos anteriores.
O projeto é um símbolo ultrapassado da China no Século XX que não se coaduna com a atual ênfase governamental em crescimento sustentado e equilibrado. Aos ouvidos ocidentais, frases como “desenvolvimento científico” e “sociedade harmoniosa” podem soar abstratos, mas repetidas frequentemente em cada nivel de governo elas são a base de uma nova filosofia oficial. Elas expressam a determinação do presidente Hu Jintao e de seu governo de migrar do cego empenho em crescimento econômico para uma versão mais sustentável, menos ambientalmente destrutiva, com distribuição mais equânime da prosperidade e uma ênfase em melhor qualidade de vida para os 750 milhões de cidadãos das zonas rurais.
Assim como a barragem de Três Gargantas – maior hidrelétrica do mundo, construída na década anterior -, o esquema é um legado dos antecessores de Hu. A obra traz o maior alto selo de aprovação: do próprio presidente Mao Tsé-tung, pai do sistema comunista chinês.
Em 1952, durante uma inspeção da bacia do Rio Amarelo, o “grande timoneiro” fez uma observação que acabaria tendo consequências de largo alcance: “Há muita água no sul da China e muito pouca no norte. Se for possível, poderíamos tomar um pouco emprestado e trazê-la para o norte”. Pode ou não ter sido um comentário casual. Mas, com certeza, foi tomado seriamente pelos subalternos de Mao. Engenheiros puseram-se a trabalhar em planos para transferir água do Yang-tsé para o árido norte e para o minguante Rio Amarelo. Entretanto, foi somente a partir de 2002 que os antecessores de Hu aprovaram o projeto, a um custo estimado em 500 bilhões de yuans, como um de seus últimos atos executivos, abrindo caminho para o início da construção.
Críticos dizem que o governo, em larga medida, engavetou seus planos de economia de água para o combate à crise hídrica no país – a China tem 22% da população mundial, mas sua disponibilidade hídrica é de apenas 25% da média per capita mundial – em favor de projetos de redirecionamento hídrico enormemente dispendiosos.
“A água vem sendo usada de modo extremamente insustentável no norte da China em parte devido a esse projeto, porque governos e população estão prevendo que virá água do sul para cobrir o déficit”, diz Ma Jun, do Instituto de Questões Públicas e Ambientais, em Pequim. “Mas, a menos que o uso de água seja contido no norte, persistirá um déficit enorme, mesmo com a água adicional proveniente do projeto de transposição.”
Nas planícies setentrionais da China, onde vivem 440 milhões de pessoas, a escassez de água é a mais aguda, com apenas 462 metros cúbicos per capita disponíveis por pessoa por ano, muito abaixo do 1 mil metros cúbicos usados pela ONU para definir uma sociedade com “escassez de água”. Nas cidades gigantes de Pequim e Tianjin, o nível é de apenas 292 metros cúbicos, um pouco acima de 3%, referência média mundial. A crise é exacerbada pela poluição cada vez mais severa que deixou 60% dos rios e lagos monitorados em condição inadequada para consumo potável ou contato humano.
Mas, apesar da escassez, há desperdício no consumo. Para cada US$ 4 de produto da economia, 1 metro cúbico de água é demandado – aproximadamente três vezes a média mundial. Em Pequim, onde uma população superior a 17 milhões de habitantes vive em estado de seca, abundam campos de golfe bem irrigados e diversões aquáticas, e o governo anunciou planos de conversão do complexo olímpico do “Ninho de Pássaro” num parque de esportes de inverno cobrindo mais de 20 mil metros quadrados com neve artificial.
Li e seus vizinhos na rota central do projeto de transposição acha impossível compreender que estejam sendo transferidos de seus lares ancestrais para que a elite privilegiada da capital possa desfrutar amenidades aquáticas e a prática de esqui.
Apenas 23 mil das pessoas programadas para transferência já foram transportadas e o governo deflagrou uma campanha de propaganda à moda antiga para convencer os habitantes remanescentes em vilarejos a partir pacificamente. Mas em dezenas de entrevistas ao “Financial Times”, as pessoas já transferidas manifestaram ira e insatisfação diante do que, disseram elas, foram indenizações inadequadas e indiferença oficial a suas agruras. A escala de indignação e ira provavelmente se multiplicará quando o restante dos 440 mil novos migrantes forem transferidos.
Ao ficarem mais ricos, os cidadãos chineses também se tornaram mais assertivos e melhor organizados em sua oposição a projetos que afetam diretamente suas vidas. Em vários casos recentes, residentes urbanos conseguiram bloquear a construção de fábricas de produtos químicos perto de suas casas, ao passo que nas zonas rurais e em cidades mais distantes a frequência de distúrbios de grandes proporções e manifestações violentas disparou nos últimos anos. Reservadamente, autoridades admitem a possibilidade de distúrbios sociais graves – e que esse é o seu maior desafio na tentativa de concluir o projeto.
Apesar disso, as primeiras fases das rotas central e oriental estão bem avançadas, com conclusão prevista para até 2013. Mesmo assim, a rota oriental tem enfrentado atrasos e complicações na forma de poluição industrial ao longo da rede do Grande Canal. De acordo com pessoas familiarizadas com o assunto, o governo de Tianjin, uma cidade portuária de quase 12 milhões de pessoas distante uma hora de carro de Pequim, recusou-se a usar água dessa vertente por estar preocupado de ela ser demasiado poluída para ser bebida.
O custo da primeira fase do projeto é estimado em 255 bilhões de yuans, e críticos dizem ser essa mais uma razão importante pela qual o governo é incapaz de reverter inteiramente seu andamento. Eles dizem que funcionários de governos locais estão contando com esses recursos para gerar empregos e crescimento econômico, para não mencionar as oportunidades de suborno. O governo central não tem, fundamentalmente, condições de reduzir a escala do projeto sem prejudicar gravemente sua autoridade nos escalões inferiores.
Confrontado com exorbitantes custos financeiros e humanos, mas impossibilitado de reverter a iniciativa, o governo mudou as justificativas para silenciar oponentes e seguir em frente com as obras. “A portas fechadas, a principal justificativa para o projeto parece ter a sua importância reduzida: a necessidade de água em caso de guerra ou alguma outra situação emergencial”, segundo um ex-funcionário do governo.
Apesar de o aquecimento mundial não ter estado na agenda de Pequim em 2002, muito menos em 1952, quando o plano foi originalmente concebido, o “marketing” do projeto de transposição também foi modificado, passando a ser propagandeado como parte da resposta às mudanças climáticas. Mas muitos suspeitam que essas razões são pouco mais do que um subterfúgio para um projeto que o governo é totalmente incapaz de reverter.
“Infelizmente vivemos num sistema em que nossos líderes eleitos põem em prática sonhos desvairados, em vez de assumir sua responsabilidade após impor catástrofes às pessoas comuns”, disse Dai Qing, um ambientalista que cumpriu pena na prisão política mais infame da China devido a suas críticas à destruição ambiental. “Mas, talvez, se os dirigentes realmente acreditam em seus slogans e realmente decidirem que é hora de viver em harmonia com a natureza, então esse será o último megaprojeto insano que veremos na China.”
EcoDebate, 06/01/2010
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