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Artigo

Como mudar atitude na agropecuária em um mundo de ameaças, artigo de Carlos R. Spehar

desmatamento e agricultura

"Maior número de espécies de plantas e animais resulta em melhor aproveitamento dos fatores de produção e da oferta ambiental, diminuindo riscos, baixando custos enquanto se maximizam retornos"

Que o Brasil tenha vocação agrícola é inegável. Estaremos, cada vez mais, marcando presença, suprindo a nação e o mundo com alimentos e matérias-primas da agropecuária. Tudo isto a despeito do arroto do boi, pois, como já foi dito, importa mais o saldo e que este seja positivo. Ou seja, a diferença entre os gases e o imobilizado.

Tem-se que consolidar a agricultura, demonstrando que, quando bem feita, em base tecnológica, retira mais do que lança ao espaço os temidos gases de efeito estufa.

Por outro lado, as ameaças que alguns relutam em aceitar, já se fazem sentir: irregularidades na distribuição de chuvas, tornando as incertezas cada vez maiores. São perdas na produção e na colheita, que enfraquecem o agricultor. Isto sem considerar os problemas de mercado, mesmo diante da mais alta tecnologia.

Vejam-se exemplos: em soja, quando subtraídos os custos de produção, caso os agricultores atinjam os valores médios nacionais de rendimento, a margem de lucro varia entre 250 a 350 reais, em valores de 2009. Com arroz e milho, pode ser até pior, a depender do ano, em função da demanda.

Trata-se de uma questão de escala. Se a área cultivada é de 100 hectares, consideravelmente grande para muitos países europeus, a renda não é suficiente para gerar prosperidade. É só calcular para descobrir. Essa evidência serve para se refletir sobre a situação de assentados em pequenas propriedades – muitas com 10-30 hectares.

Tome-se o caso do Cerrado, onde, na atualidade, predominam propriedades de médio a grande porte (300 ou mais hectares). Ainda se podem manter perspectivas. Porém, quando se considera a tendência do comércio mundial de produtos agrícolas, aí a situação se agrava.

Não é apenas um problema que afeta o agricultor mas que compromete a segurança alimentar no planeta. Como entender isto melhor?

Os agricultores, na sua tomada de decisão, são altamente influenciados pelas forças de mercado, condicionadas por grandes empresas, as chamadas traders. Daí, se cultivar o que é fácil de ser comercializado. A tendência mundial é a mesma.

Caso se confirmem os efeitos nefastos do clima, aí sim a coisa fica pior: agricultores cultivando um pequeno grupo de espécies vegetais e animais, sujeitos às limitações de mercado e incertezas climáticas. É tudo que se precisa, a indicar que aumentaremos a vulnerabilidade a um ponto de não retorno.

Na agricultura moderna, cultivos homogêneos de poucas espécies estarão perigosamente expostos às duas situações: clima e mercado. Assim, se toda a tecnologia desenvolvida até o momento para essas mesmas plantas e animais for aplicada, possibilitando atingir rendimentos econômicos, o sistema é altamente vulnerável.

Para contornar o impasse crescente, em que mudanças do clima apenas se somam às previsões catastróficas, o que pode ser feito?

Primeiro, há que se buscar alternativas de diversificação. Elas existem, apenas precisando ser implementadas. As políticas públicas têm de ser focadas, com a visão de futuro, se espelhando no passado e aproveitando a experiência do presente. A natureza, exuberante nos trópicos, atinge o equilíbrio na diversidade, ensinando o ser humano.

Se quisermos estabelecer bases duráveis, temos de nos ajustar a essa realidade. Isto implica que estímulos à pesquisa e ao desenvolvimento de espécies inovadoras tenham de fazer parte das pautas dos governantes.

Neste sentido, os meios de comunicação podem desempenhar um importante papel, mobilizando a opinião pública. Povo mais consciente saberá cobrar com firmeza ação positiva dos políticos que elege.

Somente para substanciar a importância de se iniciar, sem delongas, a caminhada rumo à diversidade: maior número de espécies de plantas e animais resulta em melhor aproveitamento dos fatores de produção e da oferta ambiental, diminuindo riscos, baixando custos enquanto se maximizam retornos. Por outro lado, permitem maior balanceamento da dieta das pessoas e dos animais domésticos.

Cultivos integrados são o exemplo, onde espécies de plantas crescem simultaneamente ou por um período em comum, como produtoras de grãos e forragem; grãos e grãos, onde o segundo plantio se faz por meios não convencionais, como sobre-semeadura. Estudos iniciais confirmam que se podem ampliar as combinações favoráveis, embasadas na tecnologia de cultivo.

Ou seja, ainda não se colheram os grãos ou outros produtos e atiram-se sementes a lanço, aproveitando umidade residual até que as plantas do primeiro plantio amadureçam; depois da colheita, já com algum crescimento finalizam o ciclo com a água das últimas chuvas, resultando em uma segunda safra.

Quando se diversifica, as oportunidades são infinitamente maiores, aproveitando-se a interação entre as plantas, como sinergia e antagonismo (alelopatia). Enfim, tem-se que conhecer mais sobre o papel de cada espécie para decidir sobre as melhores combinações, sob o ponto de vista biológico, econômico e ambiental.

Aqui cabe um adendo sobre as políticas públicas. Sistemas mais complexos exigem maior capacidade gerencial. Portanto, as mesmas ações que contemplam diversificação devem prever maior treinamento técnico e de gerenciamento dos agentes de extensão e agricultores. Sem isto, não se assimilam mudanças de paradigma.

Em seguida, e como complemento, tais leis deverão prever métodos e inserção no mercado, facilitando a disponibilidade de novos produtos ao consumidor e indústria, de forma independente.

Com a redescoberta em escala das qualidades agrícolas e de utilidade das plantas em um sistema diversificado, consegue-se viabilizar o que hoje parece sonho: máximo aproveitamento dos recursos, com rendimento econômico e mínimo impacto ao ambiente. E os habitantes urbanos agradecem, com mais saúde, evitando onerar desnecessariamente o estado.

Isto sem levar em conta que a intensificação de cultivos permite que se conservem áreas de vegetação nativa ainda mantidas, ao incorporar o que se degradou no passado.

Como já afirmamos, complementado em textos anteriores, a agricultura bem alicerçada pode ajudar significativamente a reverter tendências nebulosas sobre os gases de efeito estufa, além de consolidar-se como atividade rentável.

Cabe aos que enxergam sensibilizar legisladores rumo ao futuro. Certamente, nosso desafio, nos anos vindouros, estará dependendo de explorarmos a capacidade criativa que está ao alcance de todos.

A consciência coletiva deve se avivar, incorporando o universal no indivíduo. O ponto de virada é percebermos que não há inimigo maior do que nossa indiferença e irresponsabilidade para com a atividade agropecuária. Sem ela e os produtos que agrega, tudo se esvai: sonhos, perspectivas, visões, habilidades, cultura, poesia e lógica.

Temos de continuar, com a visão do amanhã bem próxima, a depender de como nos posicionamos. Somos nós diante do espelho, refletindo antes que o referencial se perca.

Carlos R. Spehar é professor da Universidade de Brasília (UnB).

Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência, JC e-mail 3914, SBPC.

EcoDebate, 22/12/2009

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4 thoughts on “Como mudar atitude na agropecuária em um mundo de ameaças, artigo de Carlos R. Spehar

  • Osvaldo Ferreira Valente

    Meu Caro Professor: A tese da diversificação de atividades na propriedade rural é muito bonita na teoria, mas de difícil aplicação. Em outros países, os produtores recebem subsídios e aí tudo fica mais fácil. O trabalho na pequena propriedade acaba criando escravos modernos, pois a dificuldade em contratar mão-de-obra (aspectos legais) leva o produtor a trabalhar desde a madrugada e avançando pela noite. Por isso muitos filhos não querem mais a vida no campo.

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