A ciência e os perigos do aquecimento global, artigo de Hugh Lacey
"Alguma incerteza caracteriza as análises do IPCC, mas isso não justifica o adiamento de ações decisivas para reduzir as emissões de gases-estufa"
[Folha de S.Paulo] O IPCC apresentou provas convincentes de que a temperatura da atmosfera está subindo globalmente, que isso está causando mudanças climáticas com impacto ambiental perturbador e que as concentrações de gases-estufa decorrentes de atividades humanas são um fator principal do aquecimento global.
Essas evidências também foram usadas para testar diversos modelos (matemáticos computadorizados) que projetam que, se as emissões de gases-estufa não forem reduzidas drasticamente em prazo muito breve, as mudanças climáticas serão intensificadas e provocarão consequências catastróficas e irreversíveis.
Algum grau de incerteza caracteriza necessariamente as análises do IPCC e, especialmente, suas projeções. Seus modelos não possibilitam previsões de quando precisamente devem ocorrer as consequências projetadas nem com que intensidade.
Essa incerteza precisa ser corretamente compreendida. Ela não significa que existam modelos científicos concorrentes disponíveis coerentes com evidências não testadas e que neguem a importância causal central para o aquecimento global dos gases-estufa gerados pelo homem.
Ademais, em vista da abertura e da complexidade da Terra, sempre haverá maior incerteza ligada a previsões do que ao mapeamento de fenômenos e identificação de suas causas.
Mesmo assim, nenhum modelo disponível permite qualquer incerteza significativa quanto à afirmação de que, a não ser que os gases-estufa sejam reduzidos rapidamente, haverá consequências catastróficas. A incerteza importante diz respeito apenas a quando elas vão se manifestar e à sua gravidade. Modelos que levam em conta as evidências de mudanças de temperatura e climáticas muito recentes projetam a iminência de consequências de magnitude maior.
Se os perigos projetados pelo IPCC forem genuínos, pesquisas científicas adicionais diminuirão as incertezas que os cercam. Sem dúvida isso tornará mais fácil motivar governos a adotar ações decisivas para reduzir as emissões. Só que o tipo de incerteza que existe não justifica o adiamento de tais ações agora. Apesar disso, essa incerteza vem sendo usada em tentativas de justificar esse adiamento.
Hoje, o crescimento econômico está estreitamente vinculado a práticas que envolvem grandes emissões de gases-estufa. Muitos governos e empresas têm grande interesse em seguir com essas práticas, e esse fato pode levá-los a adiar a ação ou empreender ações insuficientes.
Ademais, alguns governos de países ditos “em desenvolvimento” veem a ação de mitigação como algo que prejudica suas aspirações de “desenvolvimento” e podem justificar sua demora em agir alegando que a igualdade requer que a responsabilidade ética, social e econômica pelas ações reparativas caiba sobretudo àqueles (os países industrializados avançados) que são os principais responsáveis pelo aquecimento em termos causais.
Alguns benefícios imediatos, com certeza, podem ser auferidos com o adiamento da ação ou a ação insuficiente, mas ao custo de correr o risco de sofrer as consequências catastróficas projetadas -e o risco é aceito com base apenas na esperança de que tais consequências não ocorram ou, pelo menos, que não ocorram logo.
Entretanto essa esperança é insensata, não tendo fundamento em nenhum dos modelos científicos disponíveis. O fato de que modelos científicos não são capazes de prever o início e a gravidade de uma catástrofe com a mesma precisão com que cientistas preveem eclipses solares não significa que a incerteza tenha a natureza e o grau para justificar que sejam ignoradas as previsões do IPCC.
É preciso tomar medidas agora para reduzir drasticamente a concentração atmosférica de gases-estufa. Os modelos científicos não nos dizem como. Isso envolveria grandes transformações em muitas áreas da atividade humana e nos estilos de vida aos quais tantas pessoas aspiram.
Desenvolvimentos científicos também serão necessários para informar tudo isso -para informar não só novas tecnologias “verdes” mas também (por exemplo) formas alternativas de produção agrícola, baseadas em métodos sustentáveis em pequena escala que reflitam políticas de soberania alimentar. É impossível evitar questões políticas, econômicas e éticas.
Enfrentar o aquecimento global oferece a oportunidade de desenvolver práticas e modos de vida que não só sejam ambientalmente sustentáveis mas também contribuam para o fortalecimento da democracia e da justiça social e para melhorar as condições de vida dos pobres -ou seja, que contribuam para o bem comum. Negar ou ignorá-lo ameaça a todos com uma catástrofe irreversível.
Hugh Lacey, filósofo da ciência, é professor emérito do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA) e pesquisador visitante frequente da Faculdade de Filosofia da USP. É autor de “Valores e Atividade Científica 1”.
Tradução de Clara Allain, publicada na Folha de S.Paulo.
EcoDebate, 22/12/2009
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