A respeito das inovações e características de Arruda no DF, artigo de Bruno Lima Rocha
[EcoDebate] Sempre defendi que a teoria é um conjunto de hipóteses coerentemente articuladas por conceitos-chave e dotada de lógica interna própria. Se a teoria não serve para interpretar, então ela não serve para nada. Nada é mais palpável do que um conjunto de conceitos operacionais. O problema não é de teoria de análise, mas do emprego das ferramentas. Enfim, não dá para quebrar concreto com colher de pau. Para transformar a democracia brasileira é necessária uma gramática política nova, com diferença substantiva para o pacto de silêncio em torno dos custos transacionais para formar maiorias.
O episódio do Mensalão do DEM, com José Roberto Arruda como protagonista, dá materialidade a uma série de conceitos inovadores e debates supostamente esquecidos. Dando nome para os bois: analisar a corrupção e combatê-la não é moralismo, é a necessidade de transformação da cultura política nacional. No país dos padrinhos e adjacências, separar o público do privado é fundamental.
De volta ao Planalto Central, o que lá ocorre, para a análise política, tanto em sua forma acadêmica como jornalística, é um prato cheio e rica fonte de pesquisa. Pena que o objeto, a corrupção endêmica e estrutural das elites políticas e suas respectivas bases fisiológicas, não é nada saudável para a democracia brasileira. Mas, como venho afirmando, a única chance da ciência social aportar algo para a sociedade é confrontar os problemas e não os ignorando.
Analisar o que ocorre em Brasília é complexo. Está além da pregação Udenista dos corruptores e corruptos. Atinge o conceito de política. Uma descrição crua diria. Os negócios de Estado são para fins privados, as contas do Tesouro Sub-nacional atravessam as negociações de repasse das verbas. É o toque de Midas tupiniquim; tudo pode virar ouro em formato digital de moeda corrente: contratos de limpeza; transporte público; processamento de dados; todo o território urbano ou em vias de urbanização selvagem; desvio puro e simples além de diversas outras facetas “criativas” das elites dirigentes brasilienses e sua dinâmica de luta e cooperação para abocanhar a gorda e grossa fatia de divisas transferidas da União para a capital política do Brasil.
Se formos às raízes do problema, a história de Brasília para além do Plano Piloto é a HISTÓRIA do Brasil como ele é, com mazelas e virtudes e a versão do coronelismo da expansão modernizante. Sai o latifundiário e entra o grileiro de posse de escrituras de fé pública. O jogo cartorial é da idade do país. Bingo, eis a roda do poder local no Planalto. Quem disse que a modernidade traria apenas novos vícios, errou rotundamente! Nada que grilos e restos de defecção do inseto em uma gaveta de mogno extraído de forma ilegal não o façam. Digo isso porque o fator controle da terra e do planejamento urbano se torna fonte de acumulação original de poder e força no Distrito Federal. Se as elites dirigentes do DF são em sua origem, grileiras, portanto, a norma de relação política brasiliense será da mesma base da praticada em governos anteriores. Gira a roda, e a sina candanga é reescrita na Brasília atual. Para completar a desgraça, pelo visto dessa fonte teria de jorrar de norte a sul do país. É o único governo estadual (distrital no caso) que a UDN controla, ou controlava, já que o próprio quase ex-governador ainda em exercício pedira afastamento d mui nobre e valorosa legenda, optando por um final melancólico temporário a enfrentar a ira das hostes pefelistas em ano eleitoral tendo-o como vitrine e vidraça para as pedradas da turma do outro Mensalão que ocorrera na mesma localidade, mas em esfera do Poder Central. Vai sem jamais haver partido.
Porque Arruda, neste sentido, é um autêntico representante de sua estirpe, tal e qual Joaquim Roriz e o finado José Aparecido. Com “habilidade”, compôs um governo com vários partidos, dentre eles legendas que compõem o governo de Lula, como PSB, PDT, PV e PMDB. Para garantir, e por conhecer a procedência sua e dos seus, resolvera seguir com a simples prática de remunerar o apoio político. Pagou, e muito, ao seu secretariado que custa caro. A fonte são os bens pouco ou nada tangíveis do capitalismo cognitivo: processamento de dados e publicidade estatal regiamente paga com o dinheiro do contribuinte ou do pagante em forma compulsória, já que nossa alta carga tributária tem como destino principal alimentar a ciranda financeira e o modelo de endividamento abençoado no Governo do Copom com Mr. Meirelles à frente. Outra fatia, não tão gorda, mas ainda vultosa, vai para o espólio do Estado com o botim organizado na forma de legendas oficiais e entra em disputa indireta com a choradeira crônica do empresariado que por estas bandas opera, seja tupiniquim (assimilado diria algum discípulo de Gilberto Freyre) ou transnacional. Bem, da parte que cabe às elites dirigentes operando no circuito da representação política, associadas de forma consorciada com prestadores das várias pátrias contratistas que nos cercam, temos a chave do tesouro e o duto cloacal por onde navegaram os recursos da população do DF. A mesma que jamais vira saneamento nem nada por estilo; a mesma base social cuja excrescência organizada em forma de clientela sai das cidades-satélite para defender bandidos com imunidade parlamentar e foro especial.
Acusemos de tudo menos de falta de “inovação”!
A inovação, fator essencial de novo aumento da taxa de lucro do capital financeirizado, também se aplica para o mercado da política. Assim, Arruda, paga mais gente do quem em 2006 ou no Mensalão mineiro. O apoio político, como se sabe, torna-se por exclusividade, a ser conquistado na ponta do lápis. Pagando, secretários e deputados distritais, a partir daí, o destino da mesada fica por obra e graça da base governista.
A relação fisiológica e a herança dos piores costumes da política brasileira me fizeram lembrar de um presidente do início da década passada. Sim, estou falando do grande amigo do vice-governador Paulo Octávio, o ex-presidente Fernando Collor de Mello. Vejamos.
Collor fora a TV e disse a célebre frase “não me deixem sozinho minha gente!”. Entre o desespero e a pretensão, convocou o povo a vestir verde e amarelo num domingo do inverno de 1992 para defender o presidente eleito. Se deu mal, gerando o efeito contrário, e cobrindo o Brasil de jovens vestidos de preto enquanto escutavam a música “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, transmitida na abertura do seriado global, Anos Rebeldes. Junta-se a fome com a vontade de comer vivo ao “caçador de marajás”, destituído do afã com Roberto Marinho, perfilado apenas com sua tropa de choque então comandada por Roberto Jefferson, o advogado criminalista e homem do PTB de Ivete Vargas. Recordemos que Luiz Inácio afirmara ser este um homem a quem passaria um cheque em branco assinado. Deu no que deu.
Adentrando ainda mais no túnel do tempo, este me leva para a corrida atrás de votos ocorrida em 1989. Arruda é diferente de Collor presidente e também do presidenciável, lembrando a notória marcha da direita, na ocasião, do Centro de Niterói, na campanha do mesmo ano em que o Botafogo dera fim ao jejum de 21 anos sem títulos! Na ocasião, entre poucos militantes e dezenas de favorecidos, o carateca com fama de bom lutador comandara uma leva de cabos eleitorais, alguns taxistas, vários capangas e politiqueiros profissionais através das avenidas construídas no período em que a cidade de Araribóia fora capital de estado. Vem daí a foto aquela dando banana para os adversários. Foi antes de gritar “eu nasci com aquilo roxo!” e muito antes de perder nas ruas o governo que ganhara na urna. Após essa balbúrdia, a de 1992, até Collor segurou seus impulsos. Collor, o brigão da juventude, não mandara bater, nem onde tinha o governador nas mãos ou próximo. Não me lembro de nenhuma grande repressão durante a campanha do Fora Collor. No DF, mais inovação, com cavalaria, capangas e violência. As coisas da política estão mudando.
Particularmente, tampouco me recordo de uma situação com tamanha evidência de corrupção endêmica e estrutural que ousou mobilizar bases próprias. É certo, algum crítico pode dizer que o próprio governo gaúcho de Yeda Crusius (PSDB), botou uma parte dos funcionários com cargo de confiança para se contrapor ao movimento de Fora Yeda. Na ocasião, por se tratar de maioria de CCs, custou só um refrigerante com cachorro quente de lanche. Saiu barato para Yeda, assim como vem saindo ao preço de R$ 1,99 para o rondoniense Ivo Cassol (PP). E, para espanto de quase todos os neófitos na política como ela é, afirmo. Yeda mesmo isolada tem base; Cassol também e Arruda tem muita, mas muita base. O preço é caro, mas garante alguma sustentabilidade. Que baita democracia hem?!
Da violência e da ironia
O uso de capangas e base fisológica não é nenhuma novidade no fazer e disputar poder no Brasil. As maltas de capoeira que foram heróicas quando da Revolta da Vacina, também eram utilizadas para caçar eleitor a laço e pau. A coisa vem de longe. O cabresto contemporâneo é o cartão ponto e o emprego digitalizado. Reconheço que é da gramática da política que o protesto se dê através de mobilização e contra-atos. A mobilização dos pró Arruda (e pró Roriz, no sentido amplo da política, pró Aparecido, pró Luiz Estevão, pró Paulo Octávio e Cia.) era até esperada e do ponto de vista da estratégia em sentido estrito, foi uma “bela manobra tática”. E, repito, não custou barato. Por mais que existam lealdades fisiológicas, os 30 vídeos divulgados e os outros 170 que estariam por circular deixam qualquer pai de família de cabelo em pé. Portanto, o que espanta é haver gente para dar a cara e defender o homem flagrado de forma acintosa, mesmo ganhando, ainda que recebendo uns caraminguás ou vários.
Já a versão de reprimir para garantir a livre circulação é mais tranqüila de ser aplicada. Nesta sexta, a lenga-lenga do governador foi bem escrita, dizendo sem dizer, afirmando sem afirmar, abrindo a vala para o milico de plantão se atirar a nadar na lama entre piranhas famintas e fotografias pixelizadas de cavalos pisoteando a cidadania indignada. Se o comandante da PM DF cair, depois volta para trabalho interno ou ganha aposentadoria integral e quem sabe algo aprazível o aguardará para depois da tempestade.
Reprimir é um recurso, sempre o foi, na Praça da Paz Celestial de 1989 ou no 11 de junho de 2008 no supermercado Nacional em Porto Alegre. Governo acuado e com brios, manda baixar o cacete! Debaixo do capacete é algo quase anônimo, dá para exercer o poder na forma de vilania sem nenhum incômodo maior. Nas Avenidas desenhadas por Lúcio Costa, bater, correr ou ironizar com palhaços, pizzas e panetones é um recurso. O importante, do ponto de vista dos que se manifestam, é expor a debilidade, que é política. Se continuar a haver manifestações e com a base de incentivo como está – razoavelmente desatrelada da agenda eleitoral – haverá resistência civil, mesmo que isolada no Plano Piloto. Em geral um governo com evidência de corrupção não segura a falta de legitimidade. Manter esse nível repressivo não será nada tranqüilo, nem aqui nem em Tegucigalpa. Quem ganhar a batalha das ruas, ou sobrevive no Palácio do Buriti, ou será empurrado de lá, pela porta dos fundos.
Bruno Lima Rocha é editor do sítio Estratégia & Análise: a política, a economia e a ideologia na ponta da adaga.
Colaboração de Bruno Lima Rocha para o EcoDebate, 21/12/2009
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