Onde estamos indo na questão ambiental, artigo de Apolo Heringer Lisboa
Imagem: IHU
[EcoDebate] Teia delicada, universal e multidimensional de relações sistêmicas, com presença crescente em todas as agendas globais e locais, eis a questão ambiental. Ela só pode ser compreendida e equacionada na perspectiva transdisciplinar. Ganhou dimensão internacional desde as reuniões de 1972 em Estocolmo (ONU) e Roma. Os povos e estados começaram a entender e a proclamar que nem todos os recursos naturais são renováveis e mesmo que fossem, também provocam impactos ambientais negativos. Em resumo: a Terra tem limites para atender a demanda crescente de uma população que se multiplica; o desperdício e o consumismo, inerentes ao modo de produção, se assentam em matrizes energéticas insustentáveis, sobretudo fósseis, que degradam o meio ambiente e afetam o clima da Terra; os rios, lagos, oceanos e solos estão poluidos, o ar irrespirável; a biodiversidade e ecossistemas preciosos são diariamente erradicados para sempre; a humanidade tem condições e o dever de agir num sentido positivo em defesa da vida na Terra.
Da forma que temos agido não estamos criando riquezas, estamos empobrecendo o planeta e os povos. Não é uma crise que possa ser equacionada e resolvida no mesmo nível de realidade que a gerou e a agrava continuamente. Ela exige mudança de paradigma. Se a sociedade vier a compreender esta situação certamente não irá aceitar o extermínio da vida na Terra pelo uso da tecnologia que poderia libertá-la. Se o atual nível de consumo já está insustentável, imagine a situação diante do acesso universal da crescente humanidade aos bens fundamentais à sua sobrevivência e dignidade?
Num cenário futuro a política econômica e a razão de Estado terão novos fundamentos civilizatórios. A questão alimentar, por exemplo, será decidida à luz de nova racionalidade, que para atender o direito de todos levará em conta os custos energéticos e ambientais, o caráter do uso da terra e outros princípios, podendo vir a priorizar radicalmente o consumo de proteínas vegetais. O manejo inteligente das florestas, a agricultura orgânica, o respeito à vida e aos direitos das outras espécies se imporão num modelo biocêntrico de coexistência. Os meios de transporte, as moradias, a logística urbana todos adquirirão uma nova racionalidade econômica e energética. Estas mudanças virão mescladas num processo de conflitos culturais e políticos.
Atualmente as decisões políticas institucionais estão à reboque da economia. Como os interesses da máquina financeira e produtiva adquirem vida própria e a alma dos empreendedores está cativa do ciclo reprodutivo do capital e do lucro, a sociedade se tornou refém da economia. Mas a força bruta exuberante da economia tem um calcanhar de Aquiles: ela não tem juízo. Não pode nos governar, precisa ser governada. Seu poderio organizacional e tecnológico vem da força produtiva do trabalho e do conhecimento sociais expropriados pelo capital.
O nível de consciência do sistema é mecanicamente decorrente do andar do mercado, das suas contas, da pressão dos estoques e dos juros. Quando esta lógica toma a direção do Estado, ela faz o poder de um interesse setorial sobre coisas se impôr aos outros interesses de outros grupos de pessoas e isto fere os mais elementares princípios dos direitos humanos.
Perguntei há dois anos ao presidente da Vale senhor R. Agnelli se uma transnacional se preocupava politicamente ou filosoficamente com o uso final de seus produtos; se a política da empresa tinha algum imaginário de sociedade a partir de um projeto democrático de convivência internacional. Pareceu-me pelas respostas que a Vale só se preocupava com a quantidade de minério a vender e a satisfação financeira dos seus proprietários. Não tinha a mínima preocupação se o minério seria transformando em armas, em carros particulares, ou em máquinas agrícolas, residências, escolas, transporte coletivo. Trata-se de produção alienada e desvinculada de conteúdos sociais e ambientais estratégicos.
Imagine leitor, esta pergunta feita aos presidentes de todas as grandes empresas e bancos que dominam a política internacional? Dominam o mundo mas não têm projetos para a humanidade. Se a economia não tem juízo, como construir um governo sábio, acima de interesses de clãs, de classes, de uma única espécie, e com racionalidade biocêntrica se as instituições estão sob controle financeiro dessas empresas e a informação da população é manipulada por eles? Todas estas indagações apontam para a necessidade de uma revolução cultural-política apoiada em tecnologias de comunicação e mobilização sociais em nível global que crie a democracia.
O modelo antropocêntrico de governo do planeta Terra, diante dos desastres provocados, tem sido questionado. Mas esta não é a contradição de fundo, é apenas conjuntural. A humanidade é a única espécie que tem condições de governar a Terra e é sua responsabilidade inalienável assumir este dever, evoluindo sua mentalidade para uma perspectiva biocêntrica.
O fato das sociedades dominantes tecnologicamente, como EUA e Europa, estarem forçadas a debater a questão ambiental é um sinal dos tempos. Mas o documentário coordenado por Al Gore colocou a discussão ambiental no campo da hegemonia capitalista, com os inerentes limites conceituais e ideológicos. Quando os cientistas do IPCC alertaram para as evidências de que o modelo econômico mundial está influenciando o clima da Terra, no sentido do seu aquecimento, através das emissões de carbono, sobretudo devido à queima dos combustíveis fósseis e às dimensões do desmatamento, colocaram o debate superando as fronteiras nacionais. Esta é uma conquista cultural, que os demais animais já possuem, haja em vista as migrações sazonais. A globalização acontece no ciclo hidrológico, com as correntes aéreas e marítimas. Mas longe de tirar todas as conclusões possíveis, de forma metodologicamente inteligente, verificou-se brutal acomodação do plano intelectual aos limites do sistema ao qual o ex-vice-presidente dos EUA está vinculado. Criou-se toda uma linha de ação em torno do mercado de carbono, visão de novo negócio no velho paradigma. São propostas que não prejudicam as classes dominantes e os EUA, ficando restritas à questão do sequestro de carbono e redução de emissões, sem questionar o modelo econômico e os desastres sociais.
Em que pesem os efeitos positivos dessa intervenção cinematográfica fica evidente que não assumem questões fundamentais. O projeto carbonífero de Al Gore omite do debate questões centrais como a defesa da biodiversidade. Seu modelo de intervenção é compatível com o desmate do Cerrado e outras florestas nativas, desde que amplie-se a produção de monoculturas como o eucalipto ou a cana (capturando carbono) para produção de biomassa e de combustível verde! Mas não se prioriza a urgente mudança da matriz energética e dos costumes de consumo.
O norte-americano Noam Chomsky tem dúvidas de que o presidente Obama consiga implementar mudanças radicais na matriz energética dos EUA diante dos interesses da oposição conservadora. Neste sentido, acredito que Al Gore estava envolvido na preparação de um projeto de governo Hillary Clinton e foi surpreendido pela evolução política dentro do partido Democrata e pela vitória de Obama, bem mais ousado em suas propostas de mudanças, pelo menos enquanto candidato.
Levanto aqui uma questão estratégica muito importante, referente à hegemonia da questão climática no debate ambiental internacional. Esta hegemonia parece servir ao controle ideológico capitalista do debate, pelo exposto anteriormente. O debate da questão ambiental promoverá maior potencial de conexões sistêmicas e de equacionamento de problemas e soluções universais, na medida em que tiver eixo metodológico nas águas e seus ecossistemas, como foco de mobilização social, monitoramento da qualidade dos demais ecossistemas e de transformação da mentalidade. A água também nos brinda com o território da bacia hidrográfica que nos serve de referência territorial básica na superação das atuais fronteiras da divisão política-administrativa em escala global. Os territórios tradicionais são a base das dominações políticas e culturais incluíndo as religiosas.
As águas, através do ciclo hidrológico, possuem extrema mobilidade e suas moléculas percorrem o planeta permanentemente, mantendo sua quantidade inalterada mas alterando suas condições em função da gestão humana do território. Neste sentido, monitora a mentalidade humana expressa por suas atividades econômicas e outras expressões culturais de vida. Sendo o único mineral existente em estado predominantemente líquido à temperatura ambiente, e o mais abundante, a água além de ser o solvente universal tem a característica ímpar na natureza de ser seu estado sólido menos denso que seu estado líquido, permitindo a vida sob o gelo que sobrenada o meio líquido.
A biota aquática permite o monitoramento biológico dos ecossistemas terrestre e da mentalidade humana, aproximando critérios da história natural com a história cultural. O espelhos d`águas mostram a nossa cara, refletem a nossa mentalidade civilizatória. Esta mentalidade é a responsável pelo modo de produção e consumo da sociedade, pelas emissões do efeito estufa e dos gases destrutivos da camada de ozônio, além de responsável pelos desastres sociais. Ela pode ser diretamente monitorável nas águas, que estão diretamente vinculadas ao uso cotidiano dos seres humanos, flora e fauna em todo o planeta.
O Brasil poderia ter responsabilidade crescente nas decisões internacionais acerca do meio ambiente. Mas estamos preparados para exercer uma influência intelectual e prática positiva? Atualmente não.
A gestão ambiental no Brasil é errante e desintegrada, apoiada em dois sistemas legais cujos instrumentos de gestão definidos em lei não foram implementados de forma proposital. A lei federal 6938 de 1981 vige sob controle autoritário dos níveis executivos da federação. Trata-se do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA. Já a lei das águas, lei federal 9433 de 1997, de conteúdo democrático, é quase letra morta, não tem vigorado como foi concebida. Possibilitaria a articulação política e administrativa entre os três segmentos: governamental, empresarial e sociedade civil, numa gestão descentralizada e compartilhada por território de bacia hidrográfica. Trata-se do Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos – SNGRH. Só vige quando não conflita com a lei 6938.
Os licenciamentos e outorgas de água para empreendimentos são dominados pelos executivos, no espírito da lei de 1981. Não levam em conta o efeito cumulativo e sinérgico de seus atos administrativos sobre o Enquadramento dos cursos d`água de uma bacia hidrográfica em classes de qualidade, prerrogativa dos comitês. O poder dos comitês de bacias hidrográficas é nulo, não delibera de fato. Estão sendo usados para promover a cobrança pelo uso das águas, que é o que interessa ao executivo para racionalizar despesas. A sociedade civil que acreditou na proposta de gestão compartilhada dos conflitos está sendo enganada, excluída ou cooptada.
Devido à insustentabilidade técnica, legal e política das ações e decisões de licenciamentos e outorgas por parte dos executivos, a mentira tem sido muito utilizada no trato com a sociedade civil. O apelo ao Ministério Público é de eficácia aleatória diante do dilema que ele enfrenta: to be or no to be, diante da pressão ou acenos dos executivos.
Nestas circunstâncias o Estado e as leis murcham, enquanto os governos e os partidos ocupam todo o espaço institucional como num país sem leis. Isto é mais visível acompanhando-se o calendário eleitoral. As consequências materializam-se nos perfis do desmatamento em todas as regiões do país, na degradação dos nossos rios, na ausência de um projeto ambiental para o país, na ecodelinquência impune. Podemos incluir aqui os absurdos praticados tanto pela indústria da seca no Nordeste (caso da má gestão do semi-árido e do projeto desnecessário da transposição do São Francisco) quanto pela indústria das enchentes que domina nossas metrópoles, insistindo em tirar rios dos leitos naturais, promovendo suas canalizações e avenidas marginais ditas sanitárias, o que tem provocados tragédias como em Belo Horizonte no ribeirão Arrudas e em São Paulo, no Tietê. Outra indústria perversa que age à sombra dos executivos é a do lixo, que prioriza enterrar energia e matéria prima em aterros pois ganha por tonelada. Além de produzir impactos ambientais graves deixa de beneficiar o meio ambiente através da reciclagem industrial e da compostagem.
Estas mensagens oficiais não podemos levar ao concerto dos povos e países.
Colaboração de Apolo Heringer Lisboa, apololisboa{at}gmail.com, para o EcoDebate, 19/12/2009
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