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Antropodescentrismo: as fronteiras móveis entre o ser humano e as outras espécies

Em dois livros recentes, “Intelligenze plurime” [Inteligências plúrimas] e “Il tramonto dell’uomo” [O declínio do homem], Roberto Marchesini (foto) coloca em discussão a centralidade do “homo sapiens”, destacando como na esfera do “bios” não há hierarquias, mas sim especializações relativas aos contextos, não distâncias qualitativas entre o humano e o resto do mundo animal, mas sim contiguidade e diferenças entre as espécies, incluindo os humanos.

Marchesini participou, em 2008, do Simpósio Internacional “Uma sociedade pós-humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias”, organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na Unisinos.

Publicamos aqui a avaliação crítica de Alberto Giovanni Biuso, professor de Filosofia da Mente na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Catânia, na Itália, escrita para o jornal Il Manifesto, 30-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O século XX foi (também) o tempo em que o paradigma humanista que, por milênios, havia embasado a cultura e a vida do Ocidente começou a mostrar as suas falhas e as suas contradições. Esse paradigma vitruviano – tão admiravelmente expressado na célebre incisão de Leonardo da Vinci e nas páginas de Pico della Mirandola, e fundamentado na centralidade absoluta do humano, na sua separação de qualquer outro ente e na autopoiese, uma virtualidade ilimitada que permitiria que a nossa espécie se tornasse tudo o que quisesse – progressivamente caiu. De pouco valem as nostalgias humanistas, mesmo que diversamente declinadas: a antroposfera não existe – nunca existiu – fora de uma relação constante e dinâmica com a teriosfera (os outros animais), a tecnosfera (o chamado mundo artificial), a teosfera (a dimensão do sagrado).

Concentremo-nos na primeira, a teriosfera, partindo de um dado evidente: a “animalidade” não é uma categoria. É manifestamente um engano assimilar formigas, corvos os cavalos em uma ideal contraposição com o homem, a partir do momento em que muitíssimos animais são muito mais próximos – seja genética ou funcionalmente – à espécie humana que a outras. Um chimpanzé ou um cachorro são muito mais “parentes” do Homo sapiens do que das abelhas, dos moluscos, das cobras.

Na recorrente comparação distintiva entre a nossa espécie e os “outros animais”, pode-se, portanto, ler um sintoma ao mesmo tempo de presunção e de insegurança. A vida se expressa em uma multiplicidade de formas, todas ligadas entre si e todas diferentes, e não tem sentido a obsessão comparatista segundo as quais, toda a vez que se discute inteligência animal, ela é entendida como uma categoria unitária, que deve ser confrontada sempre e apenas com a inteligência humana, quase como se esta última constituísse o parâmetro sobre o qual deve-se medir qualquer outra habilidade cognitiva.

Tão radicados são esses estereótipos que uma perspectiva etológica e biológica mais rigorosa não poderá não levar senão àquela que Roberto Marchesini definiu no seu “Intelligenze plurime. Manuale di scienze cognitive animali” [Inteligências plúrimas. Manual de ciências cognitivas animais] (publicado pela editora Perdisa no ano passado) como uma nova “revolução copernicana”.

Escreve Marchesini: “Nós, homens, temos a surpresa de habitar em uma pequena e remota região cognitiva que naturalmente tem contiguidades, proximidades e até sobreposições com a das outras espécies”.

Mover-se rumo a um antropodescentramento do conhecimento significa, simplesmente, entender melhor a vida, tanto em sentido biológico como em sentido ético. São muitas as formas em que o antropocentrismo se expressa, do antropomorfismo, que tende a assimilar a cognição animal à humana, à reificação, que nega que nos animais não humanos haja inteligência. Em ambos os casos, é ignorado o fato de que a inteligência, citando ainda Marchesini, é “uma função biológica que – como a sensorialidade, a anatomia das artes, a digestão – se apresenta no universo animal de modo plural com uma multiplicidade de vocações e atitudes não sobreponíveis entre si”.

No bios, enfim, não há hierarquias, mas apenas especializações relativas aos contextos, não distâncias qualitativas entre o humano e o resto do mundo animal, mas sim contiguidade e diferenças entre as diversas espécies, incluindo os humanos. A oposição humano/animal se situa dentro de um círculo comum e mais amplo, biológico e tecnológico. Em uma perspectiva antropodescentrada e etológica, tanto o comportamento reducionista quanto o funcionalismo computacional mostram a sua insuficiência, pois ambos ignoram o fato de que o humano não possui e não habita um corpo, mas é corporeidade complexa e adaptada ao ambiente.

Oito formas de inteligência

Essa unidade plural do ser vivo, objeto em que Marchesini trabalha há anos, encontra em “Intelligenze plurime” e no posterior, o recentíssimo “Il tramonto dell’uomo. La prospettiva post-umanista” (Dedalo 2009) um rigoroso ponto de apoio. A pluralidade cognitiva se explica, para Marchesini, em oito formas de inteligência: social, enigmista, orientativa, abstrata, operativa, referencial, comunicativa, reflexiva.

A inteligência social, ou relacional, é a capacidade de pensar com o grupo/bando e a favor da sua sobrevivência. A inteligência solutiva é, pelo contrário, capaz de resolver problemas em solidão. A inteligência de mapa é capaz de visualizar mentalmente os contextos espaço-temporais mediante coordenadas astronômicas, sinalizações paisagísticas e autorreferenciais (como os feromônios ou as urinas). A inteligência conceitual abstrai da realidade os conceitos gerais mediante operações de mapeamento e orientação interiores. A pragmática inclina o mundo a suas próprias exigências de utilização. A inteligência mimética é capaz de aprender com a relação com membros do grupo, da espécie a que pertence ou também de outras espécies. A dialógica permite intercambiar conteúdos com outros da mesma espécie. E por fim a inteligência reflexiva ou introspectiva “refere-se à capacidade de fazer referência à mente como mundo interno e, portanto, ao estado mental vivido, à própria biografia, à abordagem simpatética do outro e da abordagem empática do outro.

Objetos

Com relação às críticas que são dirigidas à ciência por ser a maior responsável pela vexação de outras espécies, Marchesini rebate “ao contrário que é graças à ciência que o homem contemporâneo soube sair do antropocentrismo (seja por analogia quanto por distanciamento), começando assim a olhar com humildade e interesse o grande patrimônio de diversidade que o universo das outras espécies animais nos oferece”.

Se isso é verdade, não deve ser subavaliado, no entanto, o fato de que os laboratórios científicos e farmacológicos constituem ainda hoje lugares de tortura para muitíssimos animais. Horrores praticados não apenas em nome dos negócios, mas também “pelo progresso das ciências”. E, entretanto, a vivissecção é uma das práticas mais anticientíficas que existem, como argumenta Stefano Cagno, em “Imparare dagli animali” (Perdisa 2009), um livro que toca as questões mais urgentes da relação humano/animal, da engenharia genética à clonagem, do vegetarianismo à caça, da pet-therapy aos direitos dos animais – um argumento, este último, do qual o filósofo norte-americano Tom Regan se ocupa com vigor há diversos anos, cujo livro “Gabbie vuote” [Gaiolas vazias] foi republicado recentemente na Itália.

Cagno sustenta que a vivissecção é “um método de pesquisa arcaico”, que “se baseia no conceito de ‘semelhante’, sem valor científico”, tanto que “já causou danos à saúde humana”, pois “não existe nenhuma semelhança entre as doenças que surgem espontaneamente nos seres humanos e aquelas induzidas artificialmente nos animais”. A vivissecção não só “representa uma violação dos direitos animais”, que são “tratados como objetos”, mas também se presta a “qualquer forma de abuso e de sadismo (…) antessala para uma experimentação sobre o homem privada de regras”. Esse grave “desperdício de recursos econômicos (…) permite fáceis carreiras universitárias” e principalmente permite que “as indústrias farmacêuticas inundem o mercado com novos produtos”.

Pretensões autárquicas

Entre aquelas que Eugenio Mazzarella quis chamar, com uma bela definição, de “ciências da nova humildade” e que deveriam nos induzir a um repensamento sempre mais profundo sobre a inaceitabilidade das dores infligidas a outras espécies em nome da superioridade da humana, apresenta-se quase com um estatuto bem preciso a zooantropologia, cujo “assunto de base está em considerar o humano como um processo, não como um estado”, para retomar mais uma vez as palavras de Roberto Marchesini no livro assinado com Sabrina Tonutti, “Manuale di zooantropologia” (Meltemi 2007).

A zooantropologia rejeita as pretensões típicas do humano com relação ao mundo das outras espécies: a pretensão distintiva que vê na cultura uma posse exclusiva da nossa espécie; a pretensão autárquica que nos tornaria autônomos do resto do mundo vivo; a pretensão separativa que faz das características humanas o cume da vida e da sua evolução.

Nessa perspectiva, e como Marchesini argumentou em “Tramonto dell’uomo”, o corpo humano não constitui uma fortaleza fechada que se gera por si mesma e por si mesma alcança a vida, mas é um projeto dialógico e mundano. O corpo não é um equipamento que se possui, uma casa que se habita, interface instrumental, mas é a obra aberta na qual convergem os processos metabólicos, perceptivos, emotivos, relacionais, tecnológicos que, juntos, definem e fazem a nossa espécie. Um corpo que se é; não que se usa. Um corpo que é tempo germinado pelas memórias e pelos genes, constituído por aquela evidente transitoriedade que se chama finitude e morte. Bios e téchne não são duas, “toda tecnologia é, de fato, uma biotecnologia”.

Um planeta em perigo

Pensar a tecnologia de modo instrumental e exterior com relação ao caminho evolutivo da nossa espécie nos torna incapazes de compreender sua potência intrínseca além da evidente pervasividade da vida contemporânea. “As atitudes hiper-humanistas (a tecnociência como domínio do homem sobre o mundo) e trans-humanistas (a tecnociência como salvação do homem pelo mundo) – observa Marchesini – não colocam em discussão o conceito de homem-essência como centro gravitacional em torno ao qual tudo gira e ao qual tudo deve ser referido”.

O risco é, portanto, a (auto)destruição do humano e, com ele, do planeta. Mesmo que para contrastar esse perigo, a perspectiva pós-humana confere ao Homo sapiens características e funções específicas – que ele certamente possui, como qualquer outra forma de vida – que, no entanto, renunciam à ilusão epistemologicamente errada e pragmaticamente suicida da centralidade ontológica. “Por isso, falamos de antropodescentrismo como de uma progressão que constrói os predicados humanos contaminando-se sempre mais com o mundo e tornando o mundo partícipe do próprio projeto”.

Com a perspectiva zooantropológica e pós-humanista, declina a concepção do animal “bom de comer”, própria das filosofias e práticas mais antropocêntricas, que veem nas outras espécies só recursos e instrumentos para a espécie humana. Mas também do animal só “bom de pensar”, de grande parte da excelente pesquisa antropológica e histórica que analisa a esfera das outras espécies nas suas expressões e funções simbólicas, tecnológicas, estéticas, sagradas, culturais, como espelho fiel ou deformador – em todo caso – do humano. E acrescenta-se, pelo contrário, o animal “bom de ser” àquilo que nós mesmos somos na complexidade e na extrema variedade da natureza.

(Ecodebate, 12/11/2009) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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